Contas à Vista

Pode ser reduzido o salário do servidor público? O ano 2018 e um olhar para 2019

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

25 de dezembro de 2018, 7h00

Spacca
caricatura Fernando Facury Scaff [Spacca]Tão certo quanto o peru de Natal e o show do Roberto Carlos na Globo é a retrospectiva da coluna Contas à Vista, referente ao Direito Financeiro, que desde 2012 faço para a ConJur. A deste ano coincidentemente circula no dia de Natal e é um presente coletivo aos leitores, pois, embora redigida por mim, tive auxílio de um grupo de pessoas qualificadas na coleta de várias das informações que seguem[i]. A ideia é relembrar os principais eventos sobre a matéria ocorridos em 2018, sendo que acrescerei um olhar, mesmo que de relance, para uma pauta que deverá bombar em 2019.

2018 foi um ano de arrocho financeiro no setor público, com algumas ressalvas em setores específicos. Desorganizado, bagunçado, sem coordenação. Há uma fugaz impressão no ar de que 2018 fecha um ciclo iniciado com as manifestações de rua ocorridas em junho de 2013. Será verdade? Só o passar dos dias de 2019 dirá.

Um dos grandes temas de 2018 foram as eleições, vencidas pelo capitão reformado Jair Bolsonaro, que fez parte do baixo clero da Câmara dos Deputados por quase 30 anos. Desde a campanha eleitoral foi indicado o economista Paulo Guedes para ser o poderoso Ministro da Economia. O fato é que, excetuadas as fake news e a polêmica dos gastos eleitorais não declarados com WhatsApp, nenhum tema foi debatido durante a campanha eleitoral, e se chega ao finalzinho do ano sem ter uma clara ideia do que ocorrerá, exceto pelo elenco escalado para fazer parte da equipe econômica, como Joaquim Levy, Marcos Cintra, Roberto Campos Neto e Mansueto de Almeida, dentre outros. Diversas notícias têm circulado pela imprensa, como a entrevista do Presidente eleito afirmando que a dívida pública é impagável e que as reservas internacionais serão utilizadas para sua amortização, e que todas as estatais serão privatizadas. Ou ainda, que em 2020 será apresentada uma proposta de orçamento base zero. Tais notícias têm sido negadas no dia seguinte. É certo que vários ministérios foram fundidos, chegando a 22 ou 23 — número superior aos 15 prometidos —, porém inferior ao atual.

Teremos à frente da Receita Federal o economista que se notabilizou pela pregação a favor do imposto único, Marcus Cintra. Todavia, dificilmente conseguirá emplacar essa proposta nos dias atuais, sendo mais provável assumir a ideia do IVA, elaborada pelo CCiF – Centro de Cidadania Fiscal, capitaneado por Bernard Appy. Embora tenha sido aprovado na Câmara o Parecer elaborado pelo deputado Carlos Hauly sobre a reforma tributária, a bolsa de apostas coloca pouca fé em sua transformação em norma. Por outro lado, as apostas são altas no sentido da reintrodução da polêmica tributação de dividendos. Espera-se uma forte guinada liberal na economia. Aguardemos.

O fato é que desde o início do ano há fortes indicações que a regra de ouro do direito financeiro não vem sendo cumprida, isto é, o governo está se endividando para pagar despesas correntes, e não em investimento. O próprio TCU já avisou que em 2019 o que é uma suspeita se tornará realidade. Existiram até mesmo propostas de revogar essa norma da Constituição, o que foi prontamente negado pelo então Ministro Meirelles, que se candidatou a Presidente da República, queimou R$ 54 milhões do próprio bolso e teve cerca de 1% dos votos válidos na eleição. Seu bordão de campanha Chama o Meirelles, foi ouvido pelo governador eleito de São Paulo, que o convidou para ser Secretário da Fazenda, no que foi aceito. Até parece que a campanha presidencial de 2022 já está na rua…

Segundo a imprensa, consta que o Brasil já gasta 10% do PIB com salários de servidores, ou R$ 725 bilhões por ano, a despeito de ter sido adiado para 2020 o reajuste do funcionalismo federal através da MP 840/18, a qual teve seus efeitos suspensos no apagar das luzes de 2018. O reajuste para os ministros do STF foi aprovado, passando a valer para todo o Poder Judiciário brasileiro, em todos os níveis federativos. Com isso, de forma pouco ortodoxa, foi revogada a liminar anteriormente concedida pelo ministro Fux, sobre o auxílio moradia, concedido indistintamente para toda a magistratura. Pessoalmente penso que os ministros do STF deveriam ganhar muito mais do que hoje recebem, porém o problema é a reação em cadeia, pois, da forma atual, em razão do efeito cascata, até o meirinho do fórum de Santana, no norte do Amapá, recebe aumento salarial em decorrência do que tiver sido concedido em Brasília. Durma-se com um barulho desses. É bem verdade que o CNJ passou a tentar segurar os aumentos autoconcedidos pelos Tribunais de Justiça. Aguardemos os resultados.

2018 caracterizou-se também pelo prosseguimento de muitas novelas que se arrastaram ao longo dos meses, com fortes reflexos financeiros. Uma delas foi a prisão do ex-presidente Lula, com fortes reflexos eleitorais, e o debate sobre a prisão em 2ª instância . No apagar das luzes de 2018 os ministros Marco Aurélio e Dias Toffoli protagonizaram outro capítulo desse prende e solta. Aliás, os aspectos penais e financeiros do tema corrupção estão presentes no debate político brasileiro desde 2013, e tudo indica que vão se acirrar, com a presença do ex-magistrado Sérgio Moro no Ministério da Justiça, para cuja alçada foi deslocado o COAF. Uma das medidas anunciadas pela imprensa é revisar a repatriação de recursos do exterior realizada nos anos anteriores. Denúncias sobre corrupção não faltam, tais como as acusações que atingiram a família do presidente eleito.

Ainda remanesce a novela sobre quem dá a última palavra sobre os efeitos financeiros dos acordos de leniência — assunto inconcluso no ano em curso. Outras novelas financeiras foram protagonizadas ao longo do ano: a da exclusão do ICMS da base de cálculo do Pis e da Cofins, a criminalização da inadimplência e sua exposição vexatória pelo Poder Público. A conceituação de insumos de Pis e Cofins para fins de creditamento teve um ponto final dado pelo STJ, porém tem todo o jeito de surgirem novos capítulos em 2019, em face do Parecer Normativo 5, de 17/12/18, que pode vir a reabrir o tema.

Os debates sobre federalismo fiscal também merecem destaque nesse ano que finda. As dificuldades fiscais dos entes públicos ocasionaram um ataque político contra a Lei de Responsabilidade Fiscal. Governadores eleitos pediram sua modificação , mas quem obteve sucesso na flexibilização normativa foram os prefeitos, que estão no meio de seu mandato. Por outro lado, foi ampliado o poder fiscalizatório dos estados e municípios contra a opacidade da União no rateio das verbas do FPE e FPM, e foi apresentado importante voto pelo ministro Fachin sobre o re-rateio federativo das verbas do FUNDEB. A despeito disso, constataram-se atrasos no repasse de ICMS e IPVA para municípios.

Ainda sobre federalismo fiscal, foi prorrogado o prazo para convalidação dos incentivos fiscais estaduais, através do Convênio 51/18, para julho/19 (Convênio 190 e LC 160). E ocorreram intervenções da União em dois Estados da federação: Rio de Janeiro (fevereiro/18) e Roraima (dezembro/18), o que travou os debates constitucionais sobre a reforma da previdência.

O TCU também teve muito destaque em 2018. Estendeu seu âmbito fiscalizatório, cada vez mais alargado, como aponta Egon Bockmann Moreira para os lados da OAB, o que certamente forçará uma manifestação do STF, que em tempos idos entendeu de modo distinto do que o TCU deliberou atualmente. Outra manifestação importante do TCU foi a apresentação do plano de redução e controle de renúncias fiscais, o que também foi uma preocupação do Congresso, no âmbito da LDO, comentada por Élida Graziane e do Poder Executivo, através do Decreto 9.588/18. O tema das renúncias fiscais é importantíssimo e vai ser potencializado em 2019, como se vê na recente declaração do presidente eleito sobre a dívida dos produtores rurais. Ademais, o Congresso aprovou a prorrogação de incentivos fiscais para Sudam e Sudene – haverá sanção ou veto?

No âmbito das disputas com o Congresso, verificou-se uma movimentação diferente, pois o Legislativo derrubou muitos vetos apostos pelo presidente da República, como se viu no caso do Refis das PMEs e a liberação do parcelamento de dívida tributária do Simples. Júlio Marcelo bem apontou a curiosidade financeira, pois, será que o respeito ao veto decaído descumpre a LRF? Registra-se ainda como um aspecto positivo de 2018 a aprovação de limitação para a dívida pública da União, ainda em fase de tramitação interna no Congresso Nacional.

Em janeiro de 2018, a Petrobras anunciou um acordo de US$ 2,95 bilhões com acionistas da empresa nos EUA para pôr fim a uma disputa judicial. Houve quem entendesse precipitado tal acordo, uma vez que os precedentes norte-americanos sempre ocorreram com empresas privadas, e não com empresas com participação acionária estatal, mas foi realizado e a demanda encerrada. Ainda sobre a Petrobras, registra-se a greve dos caminhoneiros e a criação de uma curiosa subvenção às empresas importadoras de óleo diesel, que deverá cessar ainda em 2018. E, no âmbito minerário, finalmente foi instalada a Agência Reguladora da Mineração (ANM), o que é uma boa notícia para o setor — aguardemos o início de seu funcionamento em 2019.

O debate envolvendo os temas que geram intersecção entre direito financeiro e direitos sociais foram destaque em 2018, começando pela triste constatação da estagnação do índice de Gini (acerca da redução da desigualdade) após 15 anos consecutivos de subidas. Nesses casos, o papel do Estado na reversão das desigualdades deveria ser mais incisivo, porém não foi o que ocorreu. Nem mesmo a comemoração dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 2018 reverteu esse quadro. Afinal, reduzir desigualdades pode salvar o capitalismo, e não, como diz a vulgata, implantar o comunismo. Veja-se que os recursos dos royalties do petróleo decorrentes da Cessão Onerosa da Petrobras, que iriam para as áreas de saúde e educação, irão para o rateio federativo, o que não me parece alvissareiro. Existe mesmo a possibilidade de zerar financiamento para pesquisas através do corte de bolsas da Capes e de outras escassas fontes de financiamento. Nesse tópico, registra-se, com alegria, a liminar concedida pelo ministro Lewandowski na Reclamação 30.696, acerca da EC 86, e que traz reflexos diretos na ADI 5.595 e nos debates da EC 95, o que será importante para a área de saúde. Ou seja, tratam-se de escolhas trágicas que devem ser arbitradas pelo governo, e não pelo mercado.

Outro grande tema de 2018 foi a comemoração dos 30 anos da Constituição Federal. A pergunta mais candente foi: Haverá o que comemorar? Além de qualificados textos produzidos para a análise de direito positivo, um autor clássico muito lembrado foi Karl Loewenstein, em razão de sua tipologia constitucional. E dentre os autores contemporâneos foram muito cotados Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (que escreveram Como as Democracias Morrem) e Daron Acemoglu e James Robinson (da obra Por que as Nações Fracassam). O direito financeiro teve destaque através de alguns autores brasileiros que também trataram de temas constitucionais: Heleno Taveira Torres teve seu livro Teoria da Constituição Financeira vertido para o espanhol, editado pela Marcial Pons; no início do ano circulará a mais recente edição do prestigioso Curso de Direito Financeiro de Regis Fernandes Oliveira, agora pela Editora Malheiros, e meu Orçamento Republicano e Liberdade Igual, pela Editora Fórum, foi lançado em São Paulo, Brasília e Belém, já se encontra em sua terceira tiragem. Uma nota de pesar foi o falecimento de Ricardo Lobo Torres, nome de destaque no direito financeiro e tributário nacional.

Outro ponto importante foi a alteração da LINDB, com fortes reflexos nas áreas do direito administrativo e financeiro, embora também se apresente em outras áreas jurídicas, como no tributário, a despeito das ingentes reações no CARF.

No âmbito internacional, constata-se que a OMC condenou cinco de sete programas de incentivos fiscal do Brasil, tendo sido salvo o Reintegra, importantíssimo para o setor exportador brasileiro. Já os Estados Unidos, em guerra comercial com a China, estão perto de um novo shut down, ameaçado por Trump, caso não sejam aprovadas verbas para a construção do muro na fronteira com o México — quando aprenderemos que muros destroem ao invés de construir relações verdadeiramente humanas?

Enfim, o que esperar em 2019? Entendo que um dos alvos do novo governo será a redução dos custos com pessoal, incluindo a reforma da previdência. Daí vem a pergunta: Pode ser reduzido o salário do servidor público? A Lei de Responsabilidade Fiscal no artigo 23, §2º, prevê tal hipótese, prescrevendo ser “facultada a redução temporária da jornada de trabalho com adequação dos vencimentos à nova carga horária”. Ocorre que desde o ano 2000, por força de liminar concedida na ADI-MC 2.238, tal norma teve sua eficácia suspensa. Logo, não é possível, até aqui, a redução do salário do servidor público. Todavia, após cerca de 19 anos de tramitação, o STF pautou o julgamento da ADI 2.238, agendado para 27.2.2019, sendo relator o ministro Alexandre de Moraes. Tudo pode ocorrer nesse julgamento, desde um pedido de vistas de longo curso, ou mesmo que tal parágrafo seja declarado inconstitucional. Ou mesmo que seja declarado constitucional e, com isso, abrindo uma porta para o novo governo que, se inicia daqui há uns poucos dias. E tornando a reforma da Previdência algo a ser debatido ao longo do mandato, e não como uma única bala de prata no revólver.

Enfim, muita coisa pode acontecer nesse 2019 que chegará ao calendário em menos de uma semana. É certo, contudo, que nossa sensação de alienação orçamentária permanece presente. Terá cura?

Além de desejar um Feliz Natal a cada qual dos leitores que esta coluna teve em 2018, espero que todos tenhamos um fraterno 2019, no qual as relações humanas sejam presididas mais pelo amor do que pelo ódio.


[i] Refiro-me a um grupo de meus orientados e ex-orientados de mestrado e doutorado, aos quais agradeço a colaboração: Alexandre Silveira, Bruno Guedes, Carolina Martins, Daniel Athias, Matheus Carneiro, Evandro Azevedo, Fabio Castilho, Francisco Secaf, Gustavo Lana, Isabela Morbach, Ivan Alegretti, Lucas Bevilacqua, Mariana Correa, Marina Macedo, Marina Tanganelli, Michel Haber, Pedro Mantoan, Rafael Fonseca, Raquel Lamboglia, Ricardo Torres e Stanley Botti. Nesta coluna os erros permanecem meus, compartilhamos os acertos.

Autores

  • Brave

    é sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados, Professor Titular de Direito Financeiro da USP e Professor Titular de Direito Financeiro e Tributário da UFPA.

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