Processo Familiar

Guarda alternada ou guarda compartilhada com duas residências?

Autor

  • Mário Luiz Delgado

    é doutor em Direito Civil pela USP mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco professor de Direito Civil na Escolas da Magistratura e da Advocacia diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFam membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) ex-assessor na Câmara dos Deputados da relatoria-geral do projeto de lei que deu origem ao novo Código Civil Brasileiro autor e co-autor de livros e artigos jurídicos.

23 de dezembro de 2018, 7h00

Spacca
O Código Civil brasileiro faz alusão a apenas duas modalidades de guarda: a guarda unilateral, caracterizada pelo exercício exclusivo ou prioritário das responsabilidades parentais; e a guarda compartilhada, por meio da qual aquelas responsabilidades são repartidas conjuntamente por ambos os genitores. Não vou aludir aqui à guarda estatutária, disposta nos artigos 33 a 35 do ECA.

Além da guarda unilateral e da guarda compartilhada, existe, ainda, a guarda de nidação ou “aninhamento”, que não encontra previsão no ordenamento jurídico pátrio e é caracterizada pela permanência dos filhos na mesma residência em que vivia o casal antes do divórcio. Os pais se retiram de casa e retornam em períodos fixos pré-estabelecidos, de modo que a criança não tem qualquer alteração em sua rotina espacial. Apesar de não regulada, não existe vedação legal a que essa modalidade de guarda seja adotada no Brasil, desde que haja consenso entre os genitores, especialmente em razão dos altos custos financeiros, uma vez que os pais estarão envolvidos no custeio de três residências.

Também não foi prevista no Direito positivo brasileiro a chamada “guarda alternada”: nela os genitores se sucedem, de forma alternada, no exercício exclusivo das responsabilidades parentais. Em outras palavras, na guarda alternada tem-se sucessivas guardas unilaterais ou exclusivas, exercidas pelo genitor que estiver com a custódia física naquele período. Afora a inexistência de previsão legal, penso que esse tipo de guarda não atende ao princípio do melhor interesse da criança, pois, além da mudança constante de residência, deixa a criança confusa, sem saber a que autoridade parental deve respeito, o que interfere nos seus hábitos, valores e padrões de vida. O que é bem diferente da guarda compartilhada com duas residências, onde o compartilhamento efetivo da autoridade parental incute na criança o sentimento de pertencimento a dois lares, afastando o paradigma do filho “mochileiro”, que passa a vida a transitar entre a “casa do pai” e a “casa da mãe”.

Impende esclarecer que “guarda alternada” e “residência alternada” são situações completamente distintas, não obstante a “guarda alternada” sempre pressuponha a alternância de residências. A expressão “residência alternada” tem sido utilizada para caracterizar um regime de distribuição igualitária do tempo de convivência “doméstica” dos filhos com os genitores, nos termos previstos no artigo 1.583, parágrafo 2º do CCB, de forma consistente e estável, quer seja semanalmente, no sistema quatro dias vs. três dias alternativamente, quer seja mensalmente, no modelo “mês com o pai”/“mês com a mãe”, ou ainda por qualquer outro período de rodízio previamente estabelecido e cumprido com rigor, mantendo-se, em qualquer hipótese, a estabilidade dos períodos de convivência.

Essa divisão da convivência entre duas residências não se vincula, necessariamente, à modalidade de guarda. Até mesmo na guarda unilateral, que normalmente abrange a custódia física exclusiva, é possível, em caráter excepcional, tanto aos pais acordarem pela alternância de residências, como ao juiz impor uma repartição mais isonômica do tempo de convivência. Na guarda compartilhada, da mesma forma, é possível a divisão do tempo seguindo o standart tradicional de fixação de uma residência exclusiva e, por consequência, maior tempo de convivência com o genitor residente[1]; ou a fixação de duas residências, ou residências alternadas, com divisão isonômica do tempo de convivência.

No Brasil, especialmente após a edição da Lei 13.058/2014, essa subespécie de guarda compartilhada, com duas residências, passou a ser chamada de guarda alternada, o que constitui grave equívoco, repetido de forma irrefletida em inúmeras decisões judiciais e artigos doutrinários, o que só contribui para reforçar o estigma que existe em relação à fixação de duas residências. Aliás, a meu sentir, a expressão “residências alternadas” sequer consegue traduzir com fidelidade esse regime de convivência. A uma, porque propicia confusão terminológica e conceitual com a guarda alternada. A duas, porque as residências, a rigor, não são alternadas, mas simultâneas, concomitantes, de modo que os filhos sintam que possuem duas casas, dois lares, pouco importando em qual quarto eles estejam dormindo naquela noite.

Em suma, o locus da convivência dos pais com os filhos, ou o fato de as crianças disporem de um ou de dois quartos de dormida, independe do tipo de guarda, enquanto que a fixação de duas residências não transforma a guarda compartilhada em guarda alternada.

Finalmente, registro minha incompreensão em relação às duras críticas que tal modelo de convivência tem recebido na doutrina e na jurisprudência. Costuma-se repetir, sem qualquer embasamento empírico, que esse regime é prejudicial ao desenvolvimento da criança. Trata-se de um estereótipo bastante sedimentado entre nós e que faz com que pouquíssimas residências simultâneas sejam fixadas pelo Judiciário brasileiro. E pior do que isso, o que assume exponencial gravidade, é a existência de decisões judiciais que se negam a homologar acordos consensuais em que os pais acordaram a divisão de residências. Outrossim, não são poucos os representantes do Ministério Público que interferem de forma contrária à homologação desses acordos, com base em um clichê, repito, jamais comprovado.

No Brasil não existem pesquisas sobre os efeitos nas crianças, da fixação de duas residências, mesmo porque são raríssimas as decisões de fixação de residências alternadas ou simultâneas. Entretanto, nos diversos países em que realizados esses estudos, os resultados têm se mostrado fortemente favoráveis ao modelo de residências simultâneas.

Em Portugal encontram-se relatos muito consistentes com conclusões inquestionáveis no sentido de um melhor desenvolvimento das crianças, com reflexos na qualidade de vida dos pais[2]. Na Suécia, segundo Malin Bergström, pesquisadora do Instituto Karolinska de Estocolmo, “crianças em residências alternadas têm melhor saúde física e mental”[3].

Pesquisas feitas na Austrália e Nova Zelândia demonstraram que a maioria dos filhos desejava passar mais tempo com o pai não residente. Uma dessas pesquisas, direcionadas a adolescentes, comprovou que jovens submetidos à guarda unilateral (ou mesmo à guarda compartilhada sem divisão de residências) expressaram mais sentimentos de perda do que aqueles que cresceram em lares de custódia conjunta com divisão igualitária do tempo de convivência[4].

Por todas essas razões, faço coro com o que disse Rodrigo da Cunha Pereira:

O próximo passo evolutivo em direção à proteção das crianças e adolescentes é entender que, na maioria dos casos, os filhos podem ter duas casas. Crianças são adaptáveis e maleáveis e se ajustam a novos horários, desde que não sejam disputadas continuamente e privada de seus pais. O discurso de que as crianças/adolescentes ficam sem referência, se tiverem duas casas, precisa ser revisto, assim como as mães deveriam deixar de se expressarem que “deixam” o pai ver e conviver com o filho. Ao contrário do discurso psicologizante estabelecido no meio jurídico, e que reforça a supremacia materna, o fato de a criança ter dois lares pode ajudá-la a entender que a separação dos pais não tem nada a ver com ela. As crianças são perfeitamente adaptáveis a essa situação, a uma nova rotina de duas casas, e sabem perceber as diferenças de comportamento de cada um dos pais, e isso afasta o medo de exclusão que poderia sentir por um deles. Se se pensar, verdadeiramente, em uma boa criação e educação, os pais compartilharão o cotidiano dos filhos e os farão perceber e sentir que dois lares são melhor do que um (sic)[5].

A questão central que envolve a guarda dos filhos após a dissolução dos laços de conjugalidade é, justamente, a concretização do melhor interesse da criança no âmbito da divisão dos períodos de convivência entre os pais.

Os ex-cônjuges ou ex-companheiros precisam estar conscientes de que os vínculos familiares precedentes permanecem, por intermédio dos filhos, de modo que o divórcio ou a dissolução da união estável deixam de representar o fim do um relacionamento para se transformarem em fonte geratriz de um novo relacionamento reestruturado, que continua a existir pelo envolvimento de ambos os pais na vida dos filhos, na máxima extensão possível para a concreção do seu desenvolvimento e realização de seu melhor interesse.

A legislação prioriza a proteção da criança e do adolescente e reforça a ideia da indissolubilidade da parentalidade pelo divórcio, que mantém intactos todos os poderes e deveres inerentes ao poder familiar.

Já disse isso em outras ocasiões e reitero: é preciso entender as necessidades das crianças. E parar com essa verdadeira guerra de gêneros (gender war) que se esconde por trás das disputas sobre divisão do tempo de convivência na guarda compartilhada. Pai e mãe não se podem portar como ganhadores ou perdedores, pois cada um tem contribuições únicas a fazer ao desenvolvimento e à individualidade de seus filhos. A divisão isonômica do tempo assegura o envolvimento de ambos os pais em importantes aspectos (e verdadeiros rituais) da rotina diária dos filhos, incluindo o “pôr para dormir”, o “acordar”, o “levar e buscar na escola” e tudo o mais de que os pais não residentes ficam privados.

Continuo convencido do entendimento de que a guarda compartilhada, com o exercício conjunto por ambos os pais dos deveres parentais, demanda, inevitavelmente, a custódia física conjunta igualitária, pois a divisão do dever de cuidado exige, cada vez mais, a proximidade daqueles que dividem o exercício dos demais deveres parentais.


[1] Esse formato, na prática, faz com que a guarda compartilhada se esvazie e se equipare à guarda unilateral. Infelizmente, grande parte das sentenças judiciais, apesar da alteração do artigo 1.583, parágrafo 2º, do CC pela Lei 13.058/2014, ainda continua a adotar esse formato de residência única, mantendo um dos genitores na incômoda posição de “visitante”, tal como se dá na guarda unilateral.
[2] Cf. Plenitude da Guarda Compartilhada. Revista IBDFAM. Edição 40, Ago/Set, p.9.
[3] Revista IBDFAM cit., p. 10.
[4] Cf. Guarda e divisão do tempo de convivência: reflexões à luz do direito comparado. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-ago-06/processo-familiar-reflexoes-guarda-compartilhada-luz-direito-comparado.
[5] Cf. Guarda compartilhada: o filho não é de um nem de outro, é de ambos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-abr-22/processo-familiar-guarda-compartilhada-filho-nao-ou-outro-ambos

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  • Brave

    é advogado, professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP, presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), diretor de Assuntos Legislativos do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro (IDCLB).

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