Opinião

O ADI 5 da Receita Federal, o sigilo e a segurança jurídica

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22 de dezembro de 2018, 9h03

No último dia 6 de dezembro de 2018, a Receita Federal, por meio do Ato Declaratório Interpretativo (ADI) 5, modificou o item 40 do Perguntas e Respostas sobre a Dercat (Declaração de Regularização Cambial e Tributária), gerando estranhamento no meio jurídico.

Para entender a celeuma em torno a esse ADI-5, recorda-se, em breves palavras, o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (Rerct). Trata-se de programa instituído pela Lei 13.254/2016, com o objetivo de possibilitar a declaração de recursos de origem lícita enviados por brasileiros ao exterior, visando à sua regularização.

Isto é, o programa buscou atingir aqueles milhares de brasileiros que, no passado, enviaram recursos para o exterior sem comunicar as autoridades nacionais, não porque os valores foram obtidos de forma ilícita, mas simplesmente para ocultar renda, independentemente do motivo para tanto, se instabilidade econômica ou outra razão.

Com a instituição do Rerct, portanto, possibilitou-se a declaração desses recursos às autoridades nacionais, para sua regularização, por meio do pagamento de tributo e multa, sem que, com isso, houvesse repercussão penal quanto aos delitos aplicáveis à espécie, notadamente: sonegação fiscal, evasão de divisas e crimes conexos (conforme dispõe a Lei 13.254/2016).

De fato, a adesão ao Rerct implicava ao contribuinte, dentre outras condições, o pagamento de multa e do tributo devido, que chegava a 30% do valor regularizado, assim como declaração a respeito da origem lícita dos recursos.

Por outro lado, a Administração restou comprometida a extinguir a punibilidade dos crimes relacionados à evasão, elencados na Lei 13.254/2016; a extinguir obrigações de natureza cambial ou financeira; impossibilitada de utilizar a declaração para instauração de procedimento investigativo, seja criminal, seja administrativo; bem como restou vedada a divulgação, publicidade ou compartilhamento das informações recebidas em função da Dercat.

Pois bem. Quanto à declaração a respeito da origem lícita dos ativos, a Receita Federal esclareceu, à época, por meio do ADI nº 5, de julho de 2016, o seguinte: “O contribuinte deve identificar a origem dos bens e declarar que eles têm origem em atividade econômica lícita na Dercat. Não há obrigatoriedade de comprovação. O ônus da prova de demonstrar que as informações são falsas é da RFB”.

Agora, em dezembro de 2018, dois anos após a regulamentação, a Receita Federal modifica sua interpretação fazendo constar três novas notas ao item 40: (i) de que a “desobrigação de comprovar documentalmente a origem lícita dos recursos se refere ao momento de transmissão da Dercat”; (ii) de que “a subsunção da hipótese legal de ingresso e permanência no Rerct poderá ser objeto de procedimento de ofício específico para tal fim”; e (iii) de que “a RFB, mediante intimação, concederá prazo razoável para que o optante ao Rerct apresente a comprovação sobre a origem lícita dos recursos regularizados”.

Quer dizer. Quando, antes, a presunção era de veracidade, cabendo à RFB demonstrar a falsidade; agora, de forma repentina e unilateral, a Receita quer fazer crer que incumbe ao contribuinte, quando intimado, comprovar a licitude da origem dos recursos regularizados.

Esta alteração, além de ser contrária ao objeto especial da lei, fere a segurança jurídica que já se perfez quando da adesão dos contribuintes ao Rerct. Os problemas decorrentes de referida alteração são vários.

Afinal, as informações declaradas por ocasião da regularização não podem ensejar, por si só, suspeita criminosa, tampouco são aptas à abertura de procedimento investigatório, seja administrativo, seja criminal. Pelo contrário, a presunção sempre foi de licitude e o sigilo deve ser resguardado, inclusive e principalmente, pela Receita Federal contra seus próprios agentes.

Ora, a adesão ao Rerct atribui ao declarante o direito de não ser processado pelos crimes elencados na Lei. Ou seja, quando da declaração, observando-se o direito no tempo de vigência do Rerct, o contribuinte tinha condição absolutamente diversa.

Ainda, apresentada a Dercat no prazo de vigência e cumprida a condição, se porventura vier o declarante a ser autuado, investigado ou acusado pela prática de crimes, poderá, somente ele contribuinte, se utilizar de sua declaração para impugnação e defesa, em oposição a eventual persecução pretendida. O regime é temporário justamente para demonstrar seu viés de excepcionalidade.

O contrário não é possível. Diante da presunção de veracidade e da segurança quanto à não divulgação e garantia de sigilo.

Quer dizer, o sigilo fiscal das informações constantes da Dercat, garantido pela lei, deve ser mantido por vários motivos. Num primeiro ponto, em respeito ao princípio da isonomia, pois a lei instituiu tratamento diferenciado aplicável a todas as pessoas físicas e jurídicas aderentes ao programa, de forma impessoal.

A preservação do sigilo é também importante para a consecução das finalidades de interesse público perseguidas por meio do regime especial, inclusive para atrair o interesse do contribuinte em confiar no Poder Público, majorando a almejada arrecadação. Afinal, não se pode esquecer os objetivos desta Lei, que, na linha seguida por outros países, almejou o incremento da arrecadação.

Nesse sentido, trecho da exposição de motivos da lei:

A ideia de conceder anistia em fórmula similar ao Rerct já foi bastante exitosa em outros países: na Argentina, cerca de U$ 4,7 bilhões foram repatriados; a Itália recuperou cerca de 100 bilhões de euros; a Turquia, 47,3 bilhões de euros. Assim, espera-se que a repatriação de ativos financeiros injetará uma grande quantidade de recursos no País, o que contribuirá para o aquecimento da economia brasileira e permitirá o emprego de recursos consideráveis em investimentos nacionais, sem que haja qualquer aumento de tributação e trazendo como consequência indireta a melhoria do sistema de controle interno e de trocas de informação entre o Brasil e outros países.

Para a consecução deste objetivo, era imprescindível a adesão dos contribuintes, a qual, posto que voluntária, dependia — e segue dependendo — das contrapartidas por parte do Poder Público. Tais contrapartidas dizem respeito, em grande medida, ao sigilo e, agora, ao respeito à legalidade e à segurança jurídica.

Portanto, não há dúvida de que o princípio da publicidade do ato administrativo praticado com a Dercat comporta restrições diante da garantia ao sigilo. De modo que a não divulgação ou não compartilhamento de informações fiscais se inicia pela própria Receita Federal e se estende a qualquer outro órgão ou autoridade e a todos os membros da Administração Pública (artigo 7º, § 2º, da Lei 13.254/2016), quanto mais neste regime excepcional, em que há expressa determinação de guarda de sigilo, sob pena de responsabilidade e demissão do cargo (artigo 7º, § 1º, da Lei 13.254/2016).

A Receita Federal, por não poder divulgar, com o fim de preservar o sigilo, substituiu os CPFs e CNPJs dos participantes aderentes ao regime especial pelo CNPJ da Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda, impossibilitando até mesmo aos auditores fiscais o conhecimento acerca da titularidade dos ativos objeto de regularização. O DARF é armazenado num módulo de documentação de arrecadação, a não permitir a identificação do contribuinte participante e a declaração de imposto de renda é retificada sem necessidade de menção aos dados da Dercat.

Assim, eventuais medidas para investigar a origem dos R$ 174,5 bilhões pertencentes a brasileiros que estavam no exterior e que foram regularizados licitamente por intermédio do Rerct, caracterizam quebra ilícita de sigilo, se originadas de informações constantes da Dercat.

Ou seja, o mero fato de ter obtido conhecimento da existência da Dercat, seja pela Receita Federal, seja por qualquer outro meio, torna ilícita a obtenção da informação e caracteriza quebra de dados das informações acobertadas pelo sigilo. Oficiar para obter informação ou intimar para apresentação de documentos ou informações atreladas à Dercat, de igual forma caracterizaria o meio ilícito.

Pode-se acolher, como exemplo, a hipótese de depoimento em colaboração premiada ou acordo de leniência, do qual conste menção pelo delator ao fato de determinada pessoa ter omitido receitas e utilizado a Dercat de forma falsa ou fraudulenta, pois a atividade econômica desenvolvida não seria lícita. Neste caso, tanto a declaração do colaborador não se presta para ensejar sozinha a instauração de procedimento investigativo, como também torna ilícita a própria solicitação ou obtenção das informações constantes da Dercat. Ademais, tratando-se de outro crime não acolhido pelo Rerct, não há se utilizar como início de prova a Dercat ou suas informações, mas sim seguir por outros instrumentos a investigação.

Outro exemplo seria o Coaf informar ao Ministério Público ou à Polícia Federal sobre movimentações financeiras ou acréscimo patrimonial de contribuinte, considerando-os atípicos, e, ato contínuo, indagar à Receita Federal sobre eventual existência de Dercat desse contribuinte e seus dados. Nesta hipótese, de igual forma, não poderia a Receita Federal fornecer qualquer informação, nem positiva, nem negativa.

A Receita Federal não pode deslacrar a declaração em hipótese alguma! Há de se preservar o sigilo com que a Dercat é protegida. Veja-se que mesmo na hipótese de exclusão do Rerct, a lei prevê expressamente que não poderá haver instauração de procedimento investigativo quanto à origem dos ativos objeto de regularização. A Receita ou qualquer outra autoridade somente poderiam iniciar investigação na hipótese de existência de outras evidências documentais, mas jamais relacionadas à declaração do contribuinte (artigo 9º, § 2º, da Lei 13.254/2016).

A Dercat trata de situação fática especial, excepcional, caracterizada pela oportunidade concedida de regularização dos recursos, bens ou direitos de origem lícita. Defender, agora, que poderia a Receita Federal descumprir o que a lei federal assegurou, seria o mesmo que defender a possibilidade de o contribuinte ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. O que, entretanto, jurista nenhum defenderia, haja vista a consagração do princípio do nemo tenetur se detegere.

As normas devem ser interpretadas em conformidade e consonância com a natureza especial do regime jurídico instituído pela Lei Federal 13.254/2016, sem as quais restaria inviabilizada a obtenção efetiva das informações e bem assim o alcance do principal benefício oferecido pelo Rerct aos contribuintes e ao interesse público de arrecadar.

O fato é que esta violação à lei, operada mais de dois anos após as regularizações, não pode trazer consequências jurídicas aos contribuintes que voluntariamente aderiram ao programa e recolheram os valores devidos para tanto. As normas, repete-se, contribuem para a concretização do princípio da segurança jurídica e do direito fundamental à não incriminação.

Eventual procedimento investigatório criminal dependerá, portanto, de indícios outros e não competirá ao ministro da Justiça sua abertura, mas aos órgãos competentes para tanto, seja o Ministério Público, seja autoridade policial.

Se é garantido o sigilo, sob pena de responsabilidade, caso qualquer agente público publicizar dados e informações da Dercat, com o intuito de utilizar-se das informações protegidas por lei para início de persecução penal, sujeitar-se-á como responsável às penas previstas na Lei Complementar 105, de 10 de janeiro de 2001, e no artigo 325, do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e, no caso de funcionário público, à pena de demissão.

Enfim, a Receita Federal não pode mais pedir explicação ou demonstração de origem quanto aos recursos regularizados, eis que a adesão ao Rerct envolve ato jurídico findo e perfeito com o cumprimento das condições.

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    é advogado, sócio do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri. Presidente da Comissão de Estudos sobre Corrupção e Crimes Econômicos, Financeiros e Tributários do IASP.

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