Opinião

A (de)formação do ensino jurídico: notas para se (re)pensar o 2019

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21 de dezembro de 2018, 8h24

É preciso superar as problemáticas do ensino jurídico, transpassando o mal-estar do atual paradigma da mera reprodução irrefletida de conteúdo à la carte. Isso está presente já nas ementas pré-formatadas das disciplinas jurídicas que acabam por fornecer um conforto epistêmico ao professor: basta buscar o termo constante na ementa em algum dos mais utilizados manuais da matéria (do tipo dos que não “fazem doutrina”, pois apenas reproduzem chavões e conceitos que não passam por qualquer filtro de juízo crítico, muitas vezes limitando-se meramente a reproduzir entendimentos jurisprudenciais) e pronto. Tem-se ali a base da aula a ser dada — seguindo sempre os slides, claro, muleta sem a qual o manco não consegue andar. Fácil assim. Não precisa nem mais estudar. Qualquer um pode se candidatar ao cargo, cujo escopo acaba sendo, para muitos, apenas uma fonte de renda complementar ou mero status. É justamente aqui que reside a problemática da qual se fala. Quando será superada?

Claro que esse é apenas um dos vários problemas que permeiam o ensino jurídico no Brasil. Há tempos Lenio Streck denuncia o problema que assola a formação dos juristas no Brasil (dentre tantos, ver aqui, aqui e aqui) Vários fatores podem ser apontados, cada qual com a sua parcela de culpa. Desde metodologias inoperantes e professores que enganam os alunos (do tipo ‘fingem que ensinam’), até os reflexos disso que são sentidos por quem senta nos bancos da sala de aula (os alunos que são enganados). O fenômeno é complexo, mas somente assim é por se ter permitido que se transformasse nessa grande coisa que segue (in)operante nas faculdades de Direito de todo o país. O que fazer ao considerar o estágio em que o problema se encontra?

Dentre tantos exemplos que podem ser extraídos para se ilustrar o problema, aponta-se para alguns: o fator preguiça presente no desinteresse de muitos alunos[1]; professores mal preparados que se aventuram na docência como fosse apenas um passatempo (qualquer matéria disponível está valendo); bibliotecas de faculdades que insistem em permanecer com os mesmos manuais batidos de sempre, desapostando numa produção mais crítica e de qualidade ao “renovar” a biblioteca adquirindo os mesmos livros em edições mais recentes; professores que “ensinam”, enganando os alunos; alunos que “aprendem”, enganando os professores; alunos que passam um semestre inteiro sem ler um único livro; professores que passam um semestre inteiro sem ler um único livro… e assim o Direito segue sendo vilipendiado já nas cadeiras em que deveria se ensiná-lo.

Não se trata de uma ode idealista por um ensino puro, uniforme e intransmutável. Os tempos mudam, e hoje há diversas plataformas que podem contribuir de maneira efetiva para uma boa didática em sala de aula. Mas a seriedade no campo do ensino jurídico é o mínimo que se espera – dos professores, dos alunos e das faculdades. Um ensino crítico, profundo, que enfrente o cerne dos problemas que os manuais facilitados não tratam, é o mínimo que pode se exigir. As faculdades de Direito formam bacharéis aos montes sem se dar conta (ou sem se importar) deste grande buraco que existe, mas que se esconde tapado por um tapete de falsas ilusões. Afinal, o que importa é passar na prova do concurso ou da OAB. O que fazer?

O estado atual das coisas enseja em constrangimento para aqueles que levam o ensino a sério. Para os professores comprometidos, por exemplo, ensinar processo penal virou novela mexicana. Para os alunos dedicados, o estudo por conta, com o auxílio de outras fontes, é a saída, uma vez que os slides que são tediosamente lidos por aquele professor que nada entende da matéria, pouco contribuem para a sua formação. A coisa vai mal, e os que realmente enxergam o tamanho do problema se veem num beco com poucas saídas. Mas é possível fazer algo[2].

O problema se divide em vários espaços, expondo suas entranhas, imperceptíveis para muitos, nos livros jurídicos, nas rodinhas dos que dão aula e dos que as recebem, nos grupos de Whatsapp e nas salas de aula. Não se quer mais aprender Direito direito, e isso é bastante perceptível nos bancos da graduação, conforme expôs Alexandre Morais da Rosa:

O tédio é a palavra de ordem na sala de aula, onde alunos ficam pendurados na internet, vagando pelo mundo virtual. A mesma situação acontece nas reuniões entre professores, pois invertendo-se o lugar, os então professores permanecem linkados nos seus smartphones. Cambiaram-se as coisas. E não adianta proibir celulares. A inquietação, o burburinho, o agito, tomaram conta das salas de aulas. Todos se sentem autorizados a dizer, uma vez que não existe mais o velho lugar do professor.[3]

Jogar futebol se aprende jogando bola. E o Direito, como se aprende? Não se vislumbra outra forma que não com as constantes e muitas leituras, com os debates, com os seminários, com as atividades acadêmicas em geral, enfim, com tudo aquilo que pouco quer se fazer. Não se quer ler. As pessoas entram na faculdade de Direito desinteressadas pela leitura — como fosse possível aprender Direito sem ler (e muito). O pior é que muitos professores sequer dão o exemplo, e quando dão, as poucas e rasas obras sugeridas para tanto são os manuais-mastigados-decorebas-para-concurso. Daí que não resta opção que não a de concordar com as constantes críticas e denúncias de Lenio Streck contra o estado situacional do ensino jurídico brasileiro

o ensino jurídico — que cada vez mais reproduz do tipo de literatura jurídica facilitada-simplificada-resumida (etc) — produz uma blindagem, de modo que sua alienação é tamanha ao ponto de impedir o desenvolvimento de qualquer senso crítico. Aqueles que buscam um senso crítico passam a ser desdenhados e chamados de elitistas.[4]

Aos (assim chamados) elitistas, puristas ou até mesmo chatos, cabe, portanto, emitir o alerta. Constranger epistemologicamente. Chamar a atenção. Denunciar o problema. Dissecar a coisa e expor o conteúdo podre que a compõe. Deslegitimar o discurso raso que a muitos convence. Combater a (de)formação jurídica que já nem mais de aparência (sobre)vive. A academia é coisa séria. Lugar de muito estudo, de (profundas) leituras, de (bons) livros, de (críticos) debates. Não há mais espaço para o senso comum teórico e para os aventureiros de plantão. Não pode haver.

Claro que o leitor pode ignorar todos os problemas aqui expostos e seguir feliz enganando (aos outros e a si mesmo) e sendo enganado, ainda mais quando, ao que parece, nada disso é necessário para ser f*** em direito constitucional. É a opção de cada um. Mas há a necessidade latente e devida de se registrar a crítica, o alerta e o alento por mudanças.

Que no ano de 2019 possa ser melhor (re)pensado no ensino jurídico. Batalhemos por isso.


[1] A respeito do “fator preguiça”, já se discorreu sobre o tema. O artigo não está mais no ar, mas sua íntegra ainda pode ser conferida aqui.

[2] Pode-se começar com uma desde já preparação para os estudos (levados a sério) em 2019 – como sugerem Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa aqui, dicas essas que podem ser aproveitadas em qualquer outra matéria.

[3] ROSA, Alexandre Morais da. O jurista Dr. Google não precisa mais de professores?. Conjur. Disponível em : <https://www.conjur.com.br/2014-abr-26/diario-classe-jurista-dr-google-nao-professores>. ISSN: 1809-2829. Acesso em: 21/10/2018.

[4] STRECK, Lenio Luiz. Resumocracia, concursocracia e a “pedagogia da prosperidade”. Conjur. Disponível em : <https://www.conjur.com.br/2017-mai-11/senso-incomum-resumocracia-concursocracia-pedagogia-prosperidade>. ISSN: 1809-2829. Acesso em: 21/10/2018.

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