Opinião

Efeitos do cancelamento da súmula sobre "mero aborrecimento" do TJ-RJ

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20 de dezembro de 2018, 5h23

Contando com quase 15 anos desde a sua edição, eis que datada de 2005, a Súmula 75 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, estranhamente, se tornou para um grande número de operadores do direito uma Geni, Maria Madalena ou mesmo o próprio demônio, no âmbito das indenizações por danos morais.

A campanha para o seu cancelamento arregimentou (principalmente pelas redes sociais) muitos seguidores, pois, de forma muito simplista, se repetia que a súmula transformava (todo) o sofrimento dos consumidores em “mero aborrecimento” impedindo o recebimento de indenizações e “facilitando a vida dos perversos fornecedores”.

Será mesmo?

O que diz — exatamente — o texto da Súmula 75 TJ-RJ
O referido enunciado dispõe que “O simples descumprimento de dever legal ou contratual, por caracterizar mero aborrecimento, em princípio, não configura dano moral, salvo se da infração advém circunstância que atenta contra a dignidade da parte” e, de maneira muito óbvia, sob qualquer ângulo ou forma de interpretação que se adote, não se presta a dizer que tipo de situação enseja (ou não) danos morais[1].

Observa-se, também, a inclusão das seguintes “janelas”: (i) simples descumprimento; (ii) mero aborrecimento; (iii) em princípio.

Está, pois, bem nítida a ideia de conceito aberto, pois, a depender da situação descrita (e provada) nos autos, o julgador pode entender que o descumprimento não foi simples e, portanto, ultrapassada a esfera do mero aborrecimento. Isso sem contar o mencionado em princípio, caracterizando que uma “primeira impressão” pode ser alterada.

Não há, desse modo, qualquer comando positivo ou negativo na Súmula 75, inexistindo motivos para se amar ou odiar uma súmula que, como se demonstrará linhas abaixo, serve para muito pouco, podendo ser utilizada tanto para conceder, quanto para se negar as pretendidas indenizações.

Divergências na forma de se entender o dano moral
No primeiro momento existia a corrente daqueles que negavam a própria existência do dano moral, sendo o principal argumento a impossibilidade de se poder pagar um preço pela dor. Todavia, passados os anos, não mais se encontrou espaço para tal discussão, restando superada a argumentação (CRFB/88 – artigo 1º, III[2]). Já num segundo momento se enfrentou a grande dificuldade de quantificar o sofrimento e a angústia das pessoas, não sendo, por isso, o dano indenizável (no exato sentido desta palavra: tornar indene), mas meramente compensável.

E depois, já noutra fase, surgiram as divergências quanto as causas justificáveis de indenização do dano moral. Como nessa questão não houve muita pacificação, duas correntes bem distintas passaram a digladiar através de dois entendimentos, um mais amplo (dano moral in re ipsa) e outro mais restrito (industrialização, banalização ou vulgarização do dano moral).

Para melhor compreensão, remonta-se às discussões sobre as provas dos danos morais, quando se firmou a conclusão de que a prova necessária era a do fato gerador e não a da consequência, pois, para muitas ocasiões, se dizia que “o dano decorria do fato” (damnum in re ipsa), ou seja, seria possível estabelecer uma presunção lógica de que em certas situações (perda de um ente querido em decorrência de um ato ilícito, a deformidade física permanente, abalo da idoneidade etc.) haveria prejuízos extrapatrimoniais ao “homem médio”.

E a confusão teve início com o abrandamento no rigor da seleção dessas situações, gerando aumento expressivo no número de ações que, aos olhos de parte dos julgadores, não merecia compensação por danos morais. Assim, como de um lado alguns começaram a entender que “tudo” deveria gerar dano moral in re ipsa (e assim se forçaria as empresas a melhorar a prestação dos serviços), de outro, em total oposição, “tudo” se considerava mero aborrecimento (porque os litigantes eram aventureiros caçadores de indenizações).

Resta bastante óbvio que nenhum desses entendimentos extremados deve ser considerado, pois, o correto mesmo está em se separar adequadamente o que são as causas de dano moral in re ipsa e, em outra vertente, o que se pode considerar mero aborrecimento. Como nem todas as situações são possíveis de se prever ou medir, haverá uma natural pacificação da jurisprudência quanto algumas e, ainda, uma “zona mista” na qual haverá entendimentos díspares, ainda que analisadas as peculiaridades de cada caso concreto…

Para a correta aplicação do bom direito, ao que parece, pouco importa existir ou não a Súmula 75, pois, como demonstrado, trazendo em si um comando aberto, sua aplicação tanto servirá para um lado, como para o outro, tudo dependendo da análise subjetiva das consequências para enquadrá-las, ou não, como mero aborrecimento.

Cancelamento da Súmula 75 do TJ-RJ
Assim como ciclos e marés, há épocas em que a jurisprudência se mostra mais condescendente com os pedidos de danos morais e outras, em revés, que os julgadores se tornam mais exigentes.

Pelo menos no contencioso de volume (aquele em que estão inseridos os grandes fornecedores: concessionários de energia elétrica, telefonia, bancos etc.), isso parece ter uma explicação. Já há algum tempo que, ao “surgir uma causa de pedir”, essa passa a ser vista como oportunidade e gera aumento exponencial no número de demandas através dos “aventureiros acoplados”, sempre beneficiados pela gratuidade de justiça (ou seja, sem custos e sem riscos).

No âmbito do TJ-RJ já são famosos alguns desses casos: Megabônus, apagão em São Gonçalo, festival do Kibe em Italva, festa do tomate em Paraty, anúncio de TV com preço equivocado pelas Casas Bahia e muitos outros. O enredo é semelhante: após as primeiras indenizações, vem a avalanche (por vezes com poucos advogados).

Mas o que isso tem a ver, diretamente, com o tema desse artigo, ou seja, a Súmula 75? Não muito. Ou melhor, não deveria ter muito.

Um desses entendimentos ambíguos mencionados acima, o que “chama tudo de mero aborrecimento”, passou a servir de “fundamentação abreviada” para a não concessão de indenizações por danos morais em algumas dessas hipóteses de enxurradas de ações, desagradando, por óbvio, os consumidores e advogados patrocinadores dos feitos.

Iniciou-se, então, há cerca de dois anos alguns movimentos buscando cancelar a Súmula 75, sendo que, a partir de 2017, passou-se a adotar, como novo argumento, uma teoria lançada em 2011 (Desvio Produtivo do Consumidor, Marcos Dessaune, RT, 2011) que concluía: “tempo desperdiçado pelo consumidor na solução de problemas poderia se converter em indenização por danos morais”.

Não se compreende essa suposta incompatibilidade entre a mencionada teoria e a Súmula 75, como se o pleiteado cancelamento fosse necessário para resolver todos os equívocos pela não concessão de danos morais. Tal posição, repita-se, deriva de análise muito simplista do assunto.

O diploma consumerista (Lei 8.078/90) e a doutrina produzida pelos autores do anteprojeto são unânimes no entendimento de que um “problema” (produto defeituoso ou serviço mal prestado) pode gerar vício (corrigido com a solução do problema) ou fato (compensado por meio de indenização). E, ainda sem divergências, se entende que ao fornecedor é concedido um prazo para solução (artigo 18§1º do CPDC).

A teoria do desvio produtivo não busca, com certeza, evitar que sejam colocados produtos ou serviços defeituosos no mercado, mas, sim, que os consumidores que se desgastam, além do necessário, sejam indenizados por essa perda excessiva de tempo útil.

Na mesma direção está o movimento que busca o empoderamento dos consumidores, dando a ideia de que esses deveriam tentar resolver seus problemas sem a intervenção do judiciário e, somente em caso de impossibilidade, judicializar as questões[3]. Nessa seara algumas das turmas recursais começaram a rechaçar os pedidos de danos morais nessas situações corriqueiras, utilizando a Súmula 75 como razão de decidir, sob alegação de que os consumidores não haviam (sequer) procurado os fornecedores para tentar solucionar o impasse.

O processo de cancelamento da Súmula 75 movido pela OAB-RJ (0056716-18.2018.8.19.0000) teve seu julgamento concluído ontem pelo Órgão Especial do TJ-RJ, e, de forma rápida, sem debates, unânime, foi acolhido o voto do relator desembargador Mauro Martins.

Conclusão
Embora totalmente divergente do que constou no pedido manejado pela OAB-RJ e, também de algumas manifestações exaradas nos autos do processo e do julgamento, entende-se que a Súmula 75 não merece tanta atenção e tampouco seu cancelamento servirá para resolver quaisquer supostas injustiças cometidas na concessão (ou não) de indenizações.

Como se demonstrou, o enunciado não possui qualquer comando e se submete ao poder discricionário do julgador, como ocorre (por escolha do legislador) em tantas outras situações do direito pátrio. Os grandes criadores de injustiça são os excessos (nas análises genéricas e não individualizadas das causas), e seu enquadramento injustificado, tanto nos conceitos de “dano moral in re ipsa”, quanto no de “mero aborrecimento”, muitas das vezes efetuado somente com a citação da Súmula 75 em uma dessas suas vertentes.

Ousa-se, então, dizer que a Súmula 75 se equipara a visão do copo com água até a metade. Para uns meio-cheio, para outros meio-vazio, pois, a depender do julgador, a súmula servia para conceder ou negar a indenização, bastando interpretar tudo, ou nada, como mero aborrecimento e/ou dano moral in re ipsa.

O cancelamento do enunciado não deve, de modo algum, ser compreendido como alargamento do conceito de danos morais ou, pior, mensagem de que “mero aborrecimento gera danos morais”, porque não foi essa a fundamentação para pleitear e nem a adotada para deferir o pedido de cancelamento.

O efeito prático será sua retirada do mundo jurídico, impossibilitando, com isso a simples invocação da Súmula 75 (como vinha ocorrendo), como motivo justificador da concessão (ou não) das indenizações.


[1] Como, por exemplo, ocorre no caso da Súmula 230 do mesmo TJRJ: “Cobrança feita através de missivas, desacompanhada de inscrição em cadastro restritivo de crédito, não configura dano moral, nem rende ensejo à devolução em dobro.”

[2] CRFB/88 – Artigo 1º – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – a dignidade da pessoa humana.

[3] No Tribunal de justiça do Rio Grande do Sul-TJRS um movimento semelhante teve início e, durante algum tempo, se o consumidor não comprovasse a impossibilidade de resolver o problema “administrativamente”, as ações eram extintas por falta de interesse de agir (ausência de pretensão resistida).

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