Interesse público

Indulto de natal e abuso de poder político

Autor

  • Adilson Abreu Dallari

    é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação  do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (IBEDAFT);  membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.

20 de dezembro de 2018, 7h00

Spacca
Em sua notável obra sobre “República e Constituição”[1] o consagrado Geraldo Ataliba assim se manifestou: “A adoção de instituições republicanas teve por principal escopo a exclusão do arbítrio, como expressão de poder. A segurança dos direitos e a fixação destes em leis impessoais e genéricas impede peremptoriamente o emprego caprichoso dos instrumentos do poder”.

A República é incompatível com privilégios, com desigualdades intrínsecas, com potestades ou imunidades imanentes, incontrastáveis ou eternas. Pode-se dizer, apesar da aparente ilogicidade, que o governo republicano é o governo dos iguais, ou seja, daqueles que, temporariamente, receberam de seus iguais o poder/dever de governar.

Ocorre, com lamentável frequência, que a autoridade legalmente investida de poder e no exercício de suas atribuições, pratica determinados atos visando a satisfação de interesses pessoais, embora aparentemente esteja cumprindo a finalidade visada pela norma de competência. Hely Lopes Meirelles[2] mostra que o desvio de poder ou de finalidade é uma das modalidades de abuso de poder que apresenta especiais dificuldades para sua percepção e, principalmente, para o exercício do controle judicial: “O desvio de finalidade ou de poder verifica-se quando a autoridade, embora atuando nos limites de sua competência, pratica o ato por motivos ou com fins diversos dos objetivados pela lei ou exigidos pelo interesse público. O desvio de finalidade ou de poder é, assim, a violação ideológica da lei, ou, por outras palavras, a violação moral da lei, colimando o administrador público fins não queridos pelo legislador, ou utilizando motivos e meios imorais para a prática de um ato administrativo aparentemente legal”.

No âmbito do Direito Administrativo, no exercício da função administrativa, o desvio de poder e o abuso de poder ocorrem quando da prática dos chamados atos discricionários. A doutrina tradicional entendia que, no exercício da discricionariedade, a autoridade competente tinha plena liberdade de decidir pela conveniência e oportunidade da decisão, cujo mérito seria insuscetível de controle judicial. A moderna doutrina evidenciou que não existem atos discricionários, mas, sim, uma competência discricionária, que é sempre limitada e que, no fundo, se configura como um poder/dever. “Discricionariedade é a margem de “liberdade” que remanesce ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente”[3].

O Direito Administrativo contemporâneo já não discute mais a possibilidade de controle judicial dos atos administrativos discricionários, mas sim, os meios e modos de exercício desse controle e, principalmente, os limites do controle judicial. Em sua excelente tese sobre o assunto (com a defesa da qual conquistou a Livre-Docência na FDUSP) Marcos Augusto Perez, demostra que, com a amplitude atual do conceito de legalidade (juridicidade) está definitivamente sepultada a teoria da imunidade judicial do mérito do ato administrativo. Entretanto, diz ele que no âmbito do Poder Executivo, existem atos, designados pela doutrina como atos de governo, insuscetíveis de controle judicial: “Os atos de governo têm, ao contrário, uma função importante no edifício constitucional das normas, pois, preservando determinadas decisões de sua eventual revisão judicial – por razões de ordem política – confere-se estabilidade e governabilidade para algumas ações fulcrais do Estado”. Note-se que a inviabilidade do controle judicial, por razões de direito, de legalidade e de constitucionalidade não está afastada. Mas, imediatamente em seguida o autor se pergunta: “Mas quais são os atos que, a partir da Constituição de 1988, poderiam ser considerados atos políticos ou de governo?”. Como a CF não contém critérios para a identificação de tais atos, o novel Livre-Docente indica como um dos possíveis critérios a tradição histórica: “ou seja, o critério de coerência para com o tratamento ou para com a interpretação que normalmente vem se dando às competências criadas diretamente pelo texto constitucional”.

Entretanto a interpretação dada a um determinado dispositivo pode variar no tempo. Por exemplo, nos termos do Art. 84 da CF, compete privativamente ao Presidente da República nomear Ministros de Estado. Isso era inquestionável até recentemente, quando o STF bloqueou a nomeação de dois ministros: um pela ocorrência de desvio de poder e outro pela falta de idoneidade para o exercício da função.

Outro caso, com sinal trocado, é o da extradição de Cesare Batisti. O pedido de asilo político foi negado pelo Conselho Nacional para os Refugiados, pois ele havia sido julgado e condenado por crime comum (e não por crime político). Entretanto, o Ministro da Justiça Tarso Genro, em 2009, lhe concedeu o status de refugiado político, contra expressa disposição da lei. Por fim, em 31/12/10, no último dia de seu mandato, o Presidente Lula negou o pedido de extradição do terrorista e homicida condenado pela justiça italiana.

Tanto na legislação então vigente (Lei nº 6.815, de 19/08/80, Art. 86), quanto na legislação atualmente em vigor (Lei nº 13.445, de 24/05/17, Art. 90) a palavra final sobre a concessão da extradição cabe ao STF. No caso Battisti, o STF (“acovardado” – na expressão literal do próprio Lula) calou-se em eloquente silêncio. No presente momento, o Brasil passa por um vexame internacional, pois o Presidente Michel Temer determinou a extradição, mas o extraditando está foragido. Na perspectiva jurídica, pelo menos o ato de um Presidente pode ser revisto por outro, mostrando que a decisão não é da pessoa do Presidente, mas, sim, da função de Presidente da República, que não é “inviolável e sagrada”, mas se sujeita a responsabilização.

Atualmente, há uma enorme controvérsia em torno do Indulto de Natal, concedido pelo Presidente Michel Temer pelo Decreto nº 9.246, de 21/12/17, no exercício da competência que lhe é dada pelo Art. 84, XII, da CF. Essa competência nunca foi questionada, porém, esse específico Decreto, exorbita fantasticamente na benevolência, indo muito além dos anteriores, e, acima de tudo, beneficia os condenados por corrupção, podendo até mesmo, livrar Lula da cadeia. Segundo a PGR, o decreto viola os princípios da separação dos Poderes, da individualização da pena, e da vedação constitucional para que o Poder Executivo legisle sobre Direito Penal, e da moralidade administrativa, por evidente desvio de finalidade. Nas palavras da Procuradora Raquel Dodge: “Uma medida dessa natureza interfere diretamente com a jurisdição penal, com seus efeitos, e tem reflexos diretos na confiança e na credibilidade do sistema de administração de Justiça”. “Houve o intuito inequívoco de alcançar condenados por crimes contra a administração pública (corrupção e peculato), os quais não vinham sendo beneficiados de forma tão generosa em anos anteriores”. Tudo isso indica uma clara ocorrência de abuso de poder político, conforme a doutrina acima comentada.

A questão está sendo examinada na ADIN 5.874, mas a controvérsia está no tocante à possibilidade, ou não, de controle judicial do Indulto de Natal. Uma corrente (até agora majoritária) sustenta que o Presidente da República dispõe dos mesmos poderes que o Imperador do Brasil, o qual, nos termos da Constituição de 1824, era pessoa inviolável e sagrada, não estando sujeita a responsabilidade alguma (Art. 99) e que, no exercício do Poder Moderador (Art. 101) poderia inquestionavelmente decidir “VIII. Perdoando, e moderando as penas impostas e os Réus condenados por Sentença”. Espera-se que o STF se dê conta da abissal distinção entre o Império e a República, e de que o Brasil é um Estado Democrático de Direito. Geraldo Ataliba está fazendo muita falta.


[1] RT, 1985, p. 135

[2] “Direito Administrativo Brasileiro”, Malheiros, 18ª ed., 1993, págs. 94 e sgts.

[3] CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, “Curso de Direito Administrativo”, 26ª edição, Malheiros, 2009, p. 963

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!