Opinião

Incentivos fiscais concedidos às empresas petrolíferas são inconstitucionais

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18 de dezembro de 2018, 6h41

Em 12 de dezembro de 2017 a Câmara dos Deputados aprovou, por 208 votos a 284, a Medida Provisória 795/2017, que concede incentivos fiscais às empresas petrolíferas que exploram as camadas do pré e pós-sal no território brasileiro. Posteriormente, em 28 de dezembro daquele ano, o texto da chamada “MP do Trilhão” — assim apelidada pela grande imprensa por importar em renúncia fiscal supostamente equivalente a um trilhão de reais ou mais até 2040 — foi convertido na Lei 13.586/2017, por sanção do presidente da República. Há de se ressaltar, entretanto, que nem todo o texto legal entrou em vigor na data da publicação da Lei, ante à necessidade de respeito ao princípio da anterioridade de exercício, consubstanciado no artigo 150, III, b da Carta Magna.

O texto da Lei 13.586/2017 dispõe sobre a concessão de tratamento tributário diferenciado às empresas que empreendem atividades de exploração e desenvolvimento no campo do petróleo, do gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos no território brasileiro. Sua entrada em vigor importou na alteração de diversos diplomas legais que dispunham sobre o tratamento tributário dispensado à atividade econômica em mote. Assim, com a consolidação de um regime tributário especial, as referidas corporações, inclusive estrangeiras constituídas sob a modalidade offshore, passaram a gozar de diversos benefícios fiscais, dentre os quais, em relação a tributos decorrentes da aquisição de equipamentos e instrumentos facilitadores do desenvolvimento da produção (artigo 1º, §5°)[1]. Ficou estabelecida, dentre outras providências, a possibilidade de dedução das importâncias aplicadas nas atividades de exploração de petróleo e gás natural do montante a ser recolhido a título de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), a aplicação de alíquota zero para o cálculo de Imposto de Renda retido na fonte incidente sobre contratos de afretamento ou aluguel de embarcações marítimas e de prestação de serviços envolvendo a exploração e produção de petróleo e gás natural, bem como a isenção fiscal dos tributos federais incidentes sobre os bens destinados às atividades de exploração das aludidas substâncias.

Decerto não se desconhece atualmente a utilização de tributos como indutores do comportamento econômico. A extrafiscalidade tributária, nesse ponto, deve estar alinhada com os objetivos expressos na Constituição Federal. Assim, o estabelecimento de políticas fiscais diferenciadas deve necessariamente passar pelo crivo de compatibilidade com os preceitos da Ordem Constitucional Econômica Brasileira.

Em uma breve análise, percebe-se a preocupação do constituinte em erigir a defesa do meio ambiente como um dos pilares da Ordem Econômica Nacional, assegurando tratamento diferenciado de acordo com o potencial poluidor da atividade, em descrição no artigo 170, VI da Lei Maior. Deste modo, a política fiscal não pode ir de encontro com a efetiva proteção ambiental, sob pena de notória inconstitucionalidade material.

Passando à observação da atividade econômica objeto dos benefícios tributários descritos em lei, percebe-se que indústria petrolífera é uma das de maior potencial poluidor, sendo possível citar a contaminação hídrica decorrente do lançamento de efluentes, águas de lavagem, águas de resfriamento, entre outras substâncias[2]. Além disso, as atividades desenvolvidas na planta de exploração de petróleo liberam, na atmosfera, Gases do Efeito Estufa (GEE), tais como óxido de enxofre e óxido de nitrogênio, o que contribui sobremaneira para o aquecimento global, problema este que o Brasil se comprometeu a combater quando instituiu, em 29 de dezembro de 2009, a Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC (Lei Federal 12.187/2009)[3] e ao ratificar, em 12 de setembro de 2016, o Acordo de Paris.

Confrontando as premissas anteriores se percebe a nítida contradição entre a novel legislação e a proteção ambiental como preceito fundamental da Ordem Econômica. A própria previsão constitucional estabelece o compromisso de instituição de tratamento jurídico diferenciado conforme o impacto ambiental causado pelos processos de elaboração e prestação de produtos e serviços[4], em clarividente previsão baseada na extrafiscalidade tributária — deve-se incentivar, através da cobrança de tributos, o desenvolvimento daquilo que for compatível com a defesa do meio ambiente, e restringir atividades que o sujeitem à degradação.

Assim, o mandamento constitucional estabelece a necessidade de diferenciação do tratamento fornecido pelo Poder Público e pela sociedade em geral, compatível com o grau de preservação ou poluição ambientais proporcionadas pela atividade econômica em desenvolvimento, sendo certo que qualquer dispositivo legal que conceda benefícios àqueles que empreendam atividades potencialmente danosas ao meio ambiente não se coaduna com a proteção constitucional ao meio ambiente, trazida pela Constituição Federal não só em seu artigo 170, mas também no artigo 225[5]. O direito ao meio ambiente equilibrado, consubstanciado no artigo 225 da Constituição Federal, tem ligação direta com o direito à saúde, sendo ambos direitos fundamentais cujo dever de proteção incumbe não só ao Poder Público, mas também à coletividade, em benefício das gerações atuais e futuras — o que se convencionou chamar de responsabilidade intergeracional[6] ou solidariedade planetária[7].

Nota-se que a Lei 13.586/2017 inverte a sistemática de tratamento pelo Estado, concedendo incentivos fiscais a uma atividade econômica com grande potencial poluidor, enquanto olvida de empreender um tratamento adequado às fontes de energia limpa. O patrocínio estatal a uma atividade como a exploração petrolífera não só sanciona a perpetuação do sistema energético atual, pautado no consumo de combustíveis fósseis, bem como desencoraja a promoção e a busca de utilização de fontes de energia menos degradadoras.

É perceptível que, mesmo com os avanços tecnológicos ocorridos nas últimas décadas, o custo de fontes de energia limpa ainda é superior ao das fontes mais poluentes. Entretanto, com os benefícios fiscais compreendidos na lei, a diferença entre custos tende a crescer, desequilibrando ainda mais um mercado que já é tencionado ao uso crescente de energias poluentes, bem mais baratas sob um ponto de vista estritamente econômico. O Poder Público não pode intervir na economia de maneira a resultar ou a acentuar as externalidades[8] ou injustiças do mercado, somente podendo agir para mitigá-las ou extingui-las. Por isso, nas hipóteses de intervenção admitidas na Constituição, o Estado deve fazê-lo pautado nos princípios constitucionais da ordem econômica, dentre eles o da defesa do meio ambiente[9] (esse, inclusive, é o entendimento de decisão do Supremo Tribunal Federal[10]). No caso sob análise, ao conceder incentivos o Poder Público não somente desequilibra o mercado, como o faz em favor de uma fonte de energia significativamente poluidora. Essa atuação, conjugada com o intento cada vez maior de taxar energias renováveis, a exemplo da PEC 97/2015[11], tende a ignorar o preceito constitucional e retroceder os pequenos avanços obtidos no uso de energias menos poluidores dos últimos anos.

Ressalta-se que não é a primeira vez que se discute a incompatibilidade material de normas cujos ditames vão de encontro ao princípio constitucional da defesa do meio ambiente. Em 2016 o Decreto 8.950 foi editado para conceder incentivos fiscais aos agrotóxicos, e foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade – Psol. A na ADI 5.553/DF se defende que a noção de meio ambiente equilibrado é incompatível com o afrouxamento da produção, comercialização e manejo dos agroquímicos, dada a sua potencialidade para expor a riscos não somente aqueles que consomem produtos contaminados por aquelas substâncias, mas também os trabalhadores que lidam com elas.

Outro ponto que merece destaque na análise da Lei 13.586/2017 diz respeito ao princípio da essencialidade tributária, segundo o qual as normas jurídicas tributárias devem atuar no sentido de garantir uma subsistência mínima para a sociedade, consubstanciada na implementação de uma política fiscal diferenciada para aqueles produtos considerados essenciais à dignidade humana[12]. A concessão de benefícios fiscais nos moldes da legislação analisada busca facilitar a instalação de plantas petrolíferas, bem como a aquisição de insumos e bens de produção ligados sobretudo a fase de prospecção de óleo bruto e seu transporte. A constitucionalidade e coerência do ponto de vista fiscal dos subsídios trazidos, muito embora questionável, não é o enfoque do presente trabalho. No caso, faz-se necessário a compreensão de que o regime fiscal diferenciado afetará de forma ínfima o preço final do combustível vendido ao consumidor no final da cadeia produtiva, se é que chegará a fazê-lo.

Isto porque, os incentivos destacados se revertem em sua maioria a instalação e ampliação das atuais instalações petrolíferas, em um esforço para aumentar a produção que só poderá dar resultados em muitos anos, haja vista o lapso temporal necessário a ampliar as cadeias produtivas de modo relevante. Deste modo, mesmo sendo reconhecida a necessidade atual da população por combustíveis fósseis e seus derivados, percebe-se que o pacote de incentivos foca no consumidor final, somente beneficiando cadeias produtivas na sua atividade de prospecção do óleo bruto. Não vertendo em benefícios à população, o caráter essencial do produto resta afastado, desrespeitando o preceito da essencialidade tributária[13].

Na verdade, houve uma tentativa de maquiar o pacote de incentivos para aparentar estar revestido de essencialidade, quando o benefício tão somente se estende à grandes empresas. Assim, através da concessão do tratamento diferenciado que pretende instituir a Lei 13.586/2017, estar-se diante de uma essencialidade às avessas[14]. Cumpre salientar que os incentivos fiscais também colidem frontalmente com as previsões da Lei 12187/09, instituidora da já citada PNMC, em maior destaque ao artigo 5 º, VII[15].

Em vista disso, verifica-se que o pacote trazido pela novel legislação está carreado de vícios, em que constam a afronta às diretrizes da ordem econômica trazida pela constituição, ofensa aos acordos internacionais firmados pelo país, contradição em relação à Política Nacional sobre Mudança do Clima, desvirtuamento de princípios do Direito Tributário, bem como uma intervenção apta a acentuar ainda mais o desequilíbrio no mercado energético. Não bastasse a extensa lista explanada acima, ainda há de salientar que a promoção de tantas violações constitucionais importará em altíssima renúncia fiscal, pendente até o ano de 2040[16]. A Lei 13.586/17 se destaca por conseguir reunir tamanha incoerência que afronta cumulativamente preceitos constitucionais caros ao Direito Ambiental, Econômico, Tributário e até mesmo Financeiro.


1 artigo 1o. (…) § 5º Quanto às máquinas, aos equipamentos e aos instrumentos facilitadores aplicados nas atividades de desenvolvimento da produção, a depreciação dedutível, para fins de determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, deverá ser realizada de acordo com as taxas publicadas periodicamente pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, para cada espécie de bem, em condições normais ou médias.

2 MARIANO, Jaqueline Barbosa. Impactos ambientais do refino de petróleo. Dissertação (Mestrado em Ciências em Planejamento Energético) – Programa de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2001, pp. 6-7.

3 artigo 4o. A Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC visará: I – à compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a proteção do sistema climático (…).

4 artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…) VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (…).

5 artigo 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

6 CMMAD. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: FGV, 1988.

7 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: estudos sobre a constituição, os direitos fundamentais e a proteção do ambiente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 36.

8 Sobre o conceito de externalidade Fábio Nusdeo afirma o seguinte: “Imagine-se uma lavanderia que estenda roupa lavada em um gramado a fim de secá-las ao sol. Após algum tempo, uma usina metalúrgica instala-se nas vizinhanças e de sua chaminé é expelida fumaça preta, bojada de partículas de fuligem que se depositarão sobre a roupa estendida. Haverá aí um custo adicional para a lavanderia, imposto pela usina. Ou, o que dá na mesma, ela transferiu um custo que era seu, pois ela é a responsável pela combustão imperfeita de onde provém a fuligem. (…) O exemplo pode ser levado adiante. A fumaça preta, certamente, afetará as vias respiratórias dos moradores locais – clientes ou não da lavanderia –, os quais terão custos adicionais com a compra de remédios, consultas médicas ou temporadas para mudança de ar” (NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997). Isso significa que o processo produtivo costuma repassar à sociedade determinado ônus a que se convencionou chamar de externalidades, como se o empresariado socializasse os prejuízos com a coletividade e mantivesse o viés capitalista com relação aos lucros. Daí Ricardo Carneiro entender que a função da legislação ambiental é promover a internalização e a consequente correção das externalidades negativas sob o aspecto ambiental causadas pelo desenvolvimento (Direito ambiental: uma abordagem econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2003).

9 De acordo com o artigo 170 da Constituição Federal, são os seguintes os princípios da ordem econômica: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

10 Segundo o STF, “(…) A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. – A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a ‘defesa do meio ambiente’ (CF, artigo 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural” (ADI 3540 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 01/09/2005, DJ 03-02-2006 PP-00014 EMENT VOL-02219-03 PP-00528).

11 A Procuradora Geral da República, Dra. Raquel Dodge, já se manifestou pelo conhecimento e pela procedência da ADI por meio do Parecer 273.198/2017-SFConst/PGR.

12 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

13 MARIANO, Jaqueline Barbosa. Impactos ambientais do refino de petróleo. Dissertação (Mestrado em Ciências em Planejamento Energético) – Programa de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2001, pp. 6-7.

14 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADIn 5.553/DF. Relator Min. Edson Fachin. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5011612>. Acesso em: 06 de jul. 2018.

15 artigo 5o São diretrizes da Política Nacional sobre Mudança do Clima: (…) VII – a utilização de instrumentos financeiros e econômicos para promover ações de mitigação e adaptação à mudança do clima, observado o disposto no artigo 6o (…).

16 artigo 7o As suspensões de tributos previstas nos arts. 5o e 6o desta Lei somente se aplicarão aos fatos geradores ocorridos até 31 de dezembro de 2040, sem prejuízo da posterior exigibilidade das obrigações estabelecidas nos referidos artigos.

 

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