Opinião

A questão das drogas na perspectiva da redução de danos

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18 de dezembro de 2018, 7h27

Abordar a questão das drogas na perspectiva da redução de danos, sob a ótica tradicional, significa desenvolver um discurso sobre alternativas valiosas para minimizar os danos provocados pelo uso problemático das substâncias classificadas como drogas ilícitas. Por isso, qualquer abordagem de redução de danos passa, inevitavelmente, pela ideia de fortalecimento da autonomia individual da pessoa envolvida com a droga. É preciso, portanto, que entre o profissional redutor de danos e o usuário, se estabeleça uma relação de troca, respeito e confiança.

Dessa constatação surge a primeira conclusão relativa à política de drogas atualmente vigente: o próprio diploma legal prejudica a abordagem terapêutica – o objetivo declarado da atual política de drogas, conforme se lê do artigo 1º da Lei 11.343 de 2006) –, ao manter a criminalização das condutas relacionadas ao uso de drogas (artigo 28 da mesma Lei). É prejudicial seja pelo reforço dos estigmas negativos que pesam sobre o usuário – criminoso na visão da lei –, seja pela costumeira truculência com a qual se desenvolve a abordagem repressiva, gerando desconfiança por parte dos usuários em relação ao aparato estatal[1], inclusive o de cuidado.

De outro lado, embora num primeiro momento o valor simbólico da despenalização do crime de porte de drogas para uso pessoal possa ter animado mentes progressistas, na prática, o resultado não foi positivo.

Explica-se: mesmo antes da vigência da Lei 11.343 de 2006, era raro que um usuário de drogas cumprisse pena privativa de liberdade em virtude dos instrumentos processuais, mais notadamente a transação penal[2], previstos pela Lei 9.099 de 1995. A alteração legislativa de despenalização, portanto, só traria efetivas mudanças na realidade prática se sua implementação tivesse sido acompanhada de uma política intensa de conscientização dos operadores do direito sobre essa nova forma de ver o usuário: uma pessoa dotada de autonomia e digna de atenção no campo da saúde, e não um objeto do poder repressivo exercido pelo Estado.

A ausência desse movimento de conscientização, com a reprodução de um discurso acrítico de demonização das drogas, aliada à falta de critérios claros para diferenciação entre usuários e traficantes[3] resultou – nos anos posteriores à entrada em vigor do novo diploma legal – no aumento significativo do número de pessoas presas por tráfico de drogas que teve, por sua vez, teve a pena mínima aumentada de 3 para 5 anos em 2006. Veja-se:

Hoje, no Brasil, 26% dos homens presos estão encarcerados pela prática de delitos associados à droga. No caso das mulheres, a porcentagem sobe para 62%[4]. Dentre outras hipóteses para o encarceramento massivo, é possível que pessoas que antes tivessem sido classificadas como usuárias tenham sido, a partir de 2006, classificadas como traficantes[5].

Isso porque, segundo estudo realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, que analisou 667 autos de prisão em flagrante por tráfico de drogas lavrados entre 2010 e 2011 em São Paulo[6], 85,5% das abordagens nos casos de tráfico de drogas são feitas pela polícia militar, decorrentes de patrulhamento de rotina (62,8%) ou denúncia (24,70%), na via pública em (82,28%). Só 4,04% dos flagrantes decorrem de investigações empreendidas pela polícia.

Além disso, em 62,13% dos casos, o sujeito preso portava menos de 100g de droga, em 62,17% exerciam atividade remunerada na ocasião do flagrante e em 94,3% dos casos não há menção de pertencimento a organizações criminosas[7].

Todos esses dados sugerem que a grande maioria dos presos por tráfico no Brasil são ou microtraficantes ou usuários que foram presos como se traficantes fossem. Claro, pois podemos imaginar que os grandes chefes do tráfico não são aqueles que vagam por aí com menos de 100h de droga no bolso, na tão conhecida “atitude suspeita”que dá ensejo à abordagem policial…

Inseridos num sistema penitenciário superlotado, dominado por facções criminosas e que apresenta um índice de reincidência, segundo pesquisa feita pelo Conselho Nacional de Justiça, de 24,4%[8], esses pequenos traficantes saem não ressocializados, mas filiado e especializado. Não é, portanto, uma política que garante bons resultados, pelo contrário: pressupõe um agravamento da violência, pelos efeitos nefastos que o sistema penitenciário opera nos indivíduos a ele submetidos. Como diria Victor Hugo, sobre o Miserável Jean Valjean: “Jean Valjean entrou para as galés soluçante e trêmulo, saiu de lá impassível. Entrou desesperado, saiu sombrio”[9].

No caso das mulheres encarceradas, há ainda que se considerar o impacto negativo sobre a manutenção da casa e cuidado com os filhos[10].

A despeito do já dito e embora não tenhamos atingido resultados satisfatórios na erradicação ou diminuição do uso e tráfico de drogas, nem no enfraquecimento do crime organizado, seguimos, mantendo a política proibicionista que criminaliza algumas drogas sob a justificativa de que, assim fazendo, estaríamos protegendo o bem jurídico “saúde pública”.

Se o objeto último de proteção é a saúde, poderíamos dizer que tudo que prejudique a saúde, mais do que proteja ou que dela desvie recursos seria rechaçado, pois ineficaz, certo? Não, errado. Vejamos.

Os custos decorrentes da criminalização superam, e muito, aqueles referentes às políticas de saúde relacionadas a drogas. Num estudo sobre o Impacto Econômico da Legalização de Cannabis no Brasil, Luciana da Silva Teixeira aponta que, no ano de 2014, o Brasil gastou aproximadamente R$ 4 bilhões com a repressão das drogas (pouco mais de R$ 3 bilhões só para custear os quase 30% de presos por crimes relacionados a drogas). Com saúde pública, chegou-se a uma despesa com o tratamento de usuários de drogas no Sistema Único de Saúde de R$ 798 milhões[11].

Ademais, o encarceramento massivo, como já dito, gera a superlotação – o Brasil, em junho de 2016, tinha uma população prisional de 726.712 pessoas e apenas 368.049 vagas[12] – o que, por sua vez, tem como consequência o convívio de pessoas em condições insalubres, incrementando, obviamente, a lesão à saúde pública. Como exemplo, a Consulta Nacional sobre HIV-Aids no sistema Penitenciário constatou que a prevalência da doença entre a população prisional é dez vezes maior que a da população geral[13].

O Instituto Igarapé realizou um estudo das causas de morte de presos das unidades prisionais do estado do Rio de Janeiro entre 2010 e 2016. De 442 óbitos, 278 ocorreram por doença. No estudo, ainda é possível ler relatos da calamidade sanitária na qual vivem os presos[14].

Chega a ser uma política contraditória, para dizer o menos, na medida em que encarcera pessoas em massa sob o argumento de resguardo à saúde pública e, na mesma proporção, coloca-se uma enorme quantidade de pessoas à exposição de riscos à saúde criados pela superlotação do sistema carcerário.

Além disso, a política de proibição inviabiliza o controle da composição substâncias[15][16] — é dizer: consumo sem saber ao certo o que estou consumindo, pela presença sempre constatada de adulterantes nas drogas ilícitas —, bem como dificulta o desenvolvimento de pesquisas científicas sobre o uso de drogas — um bom exemplo foi a intimação do Professor Elisaldo Carlini, de 87 anos, que estuda drogas há 60, para prestar esclarecimentos sob acusação de fazer apologia a uso de drogas[17].

Como se já não bastasse o quanto exposto, no quesito segurança pública, o tempo que a polícia gasta para combater o tráfico de drogas (crime bons para estatísticas já que, para condenação, dependem, no geral, apenas do flagrante mais o testemunho do policial que o conduziu[18]) poderia ser redirecionado para repressão e investigação da prática de crimes violentos, que seguem com uma taxa de elucidação de apenas 8%[19].

Por fim, a falta de critérios racionais para diferenciar drogas lícitas e ilícitas dificulta o trabalho de conscientização, principalmente da população mais jovem. Para não usarmos o costumeiro exemplo do álcool, fiquemos com os agrotóxicos: um país que já lidera rankings de uso de agrotóxicos[20] e estuda, atualmente, flexibilizar as regras a esse respeito[21], não parece ter como norte a proteção da saúde pública.

Diante disso, nos resta questionar: a quem interessa a manutenção dessa uma política proibicionista? Para quem interessa essa guerra? Por que gastar os recursos que poderiam ser destinados à educação e desenvolvimento da nossa população mais carente para trancafiá-la em celas fétidas, abarrotadas, insalubres? Qual a nossa justificativa para enviar nossos policiais para essa guerra e, com a nossa política de proibição, aparelhar o seu adversário, o crime organizado? Por que insistir numa guerra que gera tantas mortes reais sob a justificativa de evitar danos apenas possíveis? Por que ocupar nossa polícia com as drogas, em vez de garantir-lhe tempo para solucionar crimes graves? A quem interessa a manutenção desse inimigo, do medo? Entre outras…

Respondo, sugerindo a reflexão, com George Orwell, em 1984: “A consciência de estar em guerra, e, portanto em perigo, faz com que o comissionamento de todo o poder a uma pequena casta seja visto como uma condição natural e inevitável de sobrevivência (…) Não interessa se a guerra está de fato ocorrendo e, visto ser impossível uma vitória decisiva, não importa se a guerra vai bem ou mal. A única coisa necessária é que exista um estado de guerra”[22].


1 DELLA VEDOVA, Gabriela Prioli. A influência da repressão penal sobre o usuário de crack na busca pelo tratamento. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014.

2 Pra quem não é do Direito, a Lei 9.099 prevê a possibilidade de, nos crimes cuja pena máxima não supere os dois anos (o caso do porte de drogas para uso pessoal, na sistemática anterior), o réu celebrar com a acusação um acordo para cumprir penas alternativas à restrição de liberdade e, assim, não ser processado.

3 A Lei n. 11.343 de 2006 não estabelece critérios objetivos para que se diferencie a conduta do usuário e do traficante. Diz apenas que “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Um jovem branco de classe média, surpreendido portanto 50g de cocaína e dinheiro em notas miúdas no campus de uma faculdade privada, será enquadrado, por esses critérios, no mesmo tipo penal do que um jovem negro e pobre, portando 50g de cocaína e dinheiro em notas miúdas na favela?

4 INFOPEN. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, Junho de 2016. Secretaria Nacional de Segurança Pública, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, dezembro de 2015. IBGE, 2016.

5 BOITEUX, Luciana et alli. Tráfico de drogas e Constituição. Série Pensando o Direito. Brasília (Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça), 2009.

6 JESUS, Maria Gorete Marques de. (Org.). Prisão Provisória e Lei de Drogas: estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo. Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP), 2011. Disponível em: <http://www.nevusp.org/downloads/down254.pdf> , acesso em 04.12.2018.

7 Idem.

8 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Reincidência Criminal no Brasil. IPEA. Brasília: 2015. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/arquivo/2015/07/572bba385357003379ffeb4c9aa1f0d9.pdf, acesso em 04.12.2018.

9 HUGO, Victor. Os Miseráveis. Cosac Naify: São Paulo, 2012.

10 Vale a pena conhecer o trabalho do pesquisador James Heckman que defende que “cada dólar gasto com uma criança pequena trará um retorno anual de mais 14 centavos durante toda a sua vida”. Disponível em https://veja.abril.com.br/revista-veja/james-heckman-nobel-desafios-primeira-infancia/

11 TEIXEIRA, Luciana da Silva (Coord.). Impacto Econômico da Legalização de Cannabis no Brasil. Câmara dos Deputados, Consultoria Legislativa, 2016.

12 INFOPEN. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, junho de 2016. Secretaria Nacional de Segurança Pública, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, dezembro de 2015. IBGE, 2016.

13 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Consulta Nacional sobre HIV-Aids no sistema Penitenciário. Brasília, 2009. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/consulta_nacional_hiv_sistema_penitenciario.pdf, acesso em 04.12.2018.

14 Disponível em https://igarape.org.br/rio-tem-pelo-menos-23-mil-presos-mais-que-sua-estrutura-prisional-comporta/, acessado em 04.12.2018.

15 Estudo realizado pelo professor Resende, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) que avaliou amostras de ecstasy em laboratórios da UFMG e da Polícia Científica do Estado de São Paulo revelou que a droga ilícita apreendida no Brasil tem sua composição original adulterada. “Apenas 44,7% das amostras continham o princípio ativo 3,4-metilenodioximetanfetamina (MDMA) e, destas, só 22% eram puras”, resume o professor. RESENDE, Rodrigo R.. The Variability of Ecstasy Tablets Composition in Brazil. Journal of Forensic Sciences, august, 2014. Disponível em https://onlinelibrary.wiley.com/doi/pdf/10.1111/1556-4029.12584, acesso em 04.12.2018.

16 Outro estudo realizado pelo Centro de Reeferência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas – Cratod, em São Paulo, que analisou fios de cabelo dos usuários, constatou que a cocaína estava presente em 98% das amostras. Os adulterantes encontrados foram lidocaína (em 92% das amostras), fenacetina (69%), levamisol (31%), benzocaína (19%), procaína (5%) e hidroxizina (2%). Esses adulterante, caso consumidos em grande quantidade podem provocar problemas como câncer, necrose, problemas renais e diminuição da imunidade. Disponível em http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2016/01/crack-e-adulterado-com-substancias-que-potencializam-danos-diz-estudo.html, acessado em 04.12.2018.

17 Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43176883, acesso em 04.12.2018.

18 Segundo o estudo realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência, dos casos acompanhados até a sentença, 91% resultaram em condenação. Isso pode ser explicado pela facilidade na “elucidação” dos casos de tráfico que, em sua maioria, não dependem de nada além do flagrante, laudo de materialidade e testemunho dos policiais que conduziram a ocorrência (74%).Para uma polícia mal remunerada, mal aparelhada, sem treinamento e que é avaliada por estatísticas, perseguir crimes de tráfico parece ser uma boa opção. JESUS, Maria Gorete Marques de. (Org.). Prisão Provisória e Lei de Drogas: estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo. Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP), 2011. Disponível em: <http://www.nevusp.org/downloads/down254.pdf>, acesso em 04.12.2018.

19 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Investigação Criminal de Homicídios. Brasília, 2014.

20 CARNEIRO, Fernando Ferreira, RIGOTTO, Raquel Maria, AUGUSTO, Lia Geraldo da Silva, FRIEDRICH, Karen, BURIGO, André Campos. Dossiê Abrasco: um alerta sobre o impacto dos agrotóxicos na saúde. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/dossieagrotoxicos/wp-content/uploads/2013/10/DossieAbrasco_2015_web.pdf, acesso em 05.12.2018.

21 PL 6299 de 2002. Disponível em https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=46249, acesso em 04.12.2018.

22 ORWELL. George. 1984. Companhia das Letras: São Paulo, 2017, p. 228.

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