Opinião

A arbitrária inovação infralegal no âmbito do Rerct

Autor

  • Arthur Ferreira Neto

    é mestre e doutor em Direito Tributário e em Filosofia. Professor de Direito Tributário na PUC-RS. Vice-presidente do Instituto de Estudos Tributários (IET).

17 de dezembro de 2018, 6h19

Em 2016, o Governo Federal editou a Lei 13.254/16 que criou o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (Rerct). Estabeleceu-se, assim, um programa temporário para regularização de ativos mantidos no exterior por contribuintes que haviam omitido tal informação das autoridades brasileiras, buscando-se, com isso, perdoar crimes relacionados a esse patrimônio estrangeiro, desde que tais bens tivessem procedência lícita (isto é, a fonte produtora riqueza não fosse ela própria criminosa, por exemplo, oriunda de corrupção, tráfico de drogas, descaminho, contrabando etc). Importante destacar, porém, que esse Regime Especial não surgiu como uma simples benesse do Estado, como se esse tivesse, graciosamente, concedido vantagens indevidas a grupo de particulares que estariam sendo liberados de qualquer responsabilização por ilícitos cometidos. Em verdade, o Governo Federal, seguindo uma tendência mundial, estabeleceu uma espécie de mecanismo de negociação coletiva, o qual exigiu compromisso das duas partes – Estado e Contribuintes – afetadas por circunstâncias específicas dos nossos tempos.

De um lado, surgiram, nos últimos anos, avançados instrumentos de trocas de informações entre órgãos governamentais acerca da situação financeira e patrimonial de cidadãos das mais variadas nacionalidades, ferramentas essas que se ampliam em velocidades impressionantes, tornando inócua a ideia de sigilo fiscal. A isso se somou outro elemento, de natureza cultural, que perdurou por décadas no Brasil – e em outros países – envolvendo certa sensação de tolerância em relação à manutenção de bens no exterior sem o devido reporte às autoridades locais, o que, mesmo justificando os ilícitos cometidos, exige que tal fator social seja considerado quando da avaliação da reprovabilidade das condutas praticadas no passado. Diante desse contexto, milhares de contribuintes aderiram a tal programa de anistia, confessando ilícitos cometidos, pagando tributos e multas exigidos, imaginando que estariam adentrando em um cenário de conformidade jurídica, sem maiores riscos de sofrerem questionamentos futuros pelo Estado.

Quanto a esse cenário consolidado, nenhuma modificação relevante se materializou em nosso contexto nacional desde 2016 – a não ser a iminente mudança de Governo –, de modo que inexistiria razão aparente que justificasse uma revisão em larga escala das adesões ao Rerct. No entanto, mesmo que assim seja, a Receita Federal agora edita o Ato Declaratório Interpretativo 5/18, o qual pretendeu atualizar o “DERCAT – Perguntas e Respostas”, introduzindo Notas Explicativas na Questão 40 que dispõe sobre o ônus probatório acerca da origem lícita dos bens regularizados nos anos de 2016 e 2017. Sob as vestes de mero esclarecimento, tais Notas agora introduzidas não apenas ampliaram o até então restritivo espaço para se iniciar expedientes fiscalizatórios no âmbito do Rerct, como veio a contraditar dispositivo legal, subvertendo as “regras do jogo” traçadas quando da edição da Lei de Repatriação. É o que se passa a demonstrar.

Inicialmente, importante relembrar o ambiente político no qual foi editada a Lei de Repatriação, de modo a reconhecer que as duas partes envolvidas na referida negociação pública se encontravam em posições não-ideais e reciprocamente desvantajosas, como diante do famoso “dilema do prisioneiro”. De um lado, o Estado, necessitando de nova fonte de recursos, mostrou-se disposto a perdoar os ilícitos cometidos por aqueles com bens não revelado no exterior, na medida em que sabia das dificuldades que enfrentaria para processar todos os particulares em tais situações, sabendo que, mesmo com o acesso às informações relacionadas a tal riqueza, os custos desses processos seriam altíssimos e redundariam em demora na arrecadação dessas novas receitas. A motivação, portanto, desse programa de anistia não foi a generosidade estatal, mas sim uma escolha política de natureza puramente pragmática. De outro lado, os contribuintes que mantinham patrimônio no exterior e que desejavam regularizar tal situação, necessitariam revelar a sua posição de ilicitude, confessando de modo irretratável os crimes cometidos e abdicando de parcela relevante dos bens localizados fora do país. No entanto, além disso, tais contribuintes teriam que assumir o ônus de acreditar no (não sempre confiável) Estado brasileiro, tendo assim que aceitar a arriscada presunção de que esse iria, de fato, perdoar as ofensas cometidas no passado, abrindo mão, nesses casos, do seu intuito punitivo.

Com efeito, fez-se uma promessa oficial de que tais particulares não ficariam submetidos ao livre e amplo escrutínio fiscalizatório dos agentes públicos no que tange aos atos que seriam anistiados. Por isso, a Lei de Repatriação, visando estimular a adesão pelos mais desconfiados, dando o mínimo de segurança e tranquilidade aos contribuintes, estabeleceu, no seu artigo 4º, § 12, uma regra especial de fiscalização aplicável aos casos do Rerct, dispondo que a declaração de regularização (DERCAT) não poderia “ser, por qualquer modo, utilizada … como único indício ou elemento para efeitos de expediente investigatório” nem “para fundamentar, direta ou indiretamente, qualquer procedimento administrativo”. Ora, esse dispositivo valeu-se de expressões firmes e categóricas, não deixando dúvidas de que a intenção do legislador foi a de limitar o exercício de poderes fiscalizatórios no âmbito do Rerct. Tal terminologia indica que, nesses casos, somente poder-se-á dar início a qualquer tipo de expediente investigatório, chamando o contribuinte a prestar esclarecimentos, quando os agentes públicos já estiverem munidos de algum indício concreto ou elemento probatório que permita recair suspeitas sobre a presumida licitude na origem dos bens mantidos no exterior. Tal regra, pois, acabou atribuindo ao Estado o ônus probatório de identificar e apresentar previamente algum elemento demonstrativo mínimo acerca da real origem dos ativos submetidos ao Rerct, não bastando apenas invocar o conteúdo já disponível às autoridades fiscais na DERCAT espontaneamente fornecida pelo Contribuinte. A Lei, pois, veio a excepcionalmente afastar, nos casos do Rerct, a prerrogativa da livre e irrestrita fiscalização por parte das autoridades tributárias, conferindo certo grau de tranquilidade ao contribuinte anistiado, garantindo que não seria importunado por motivos infundados nem por mera frivolidade de algum agente fiscal. Sem tal regra, o número de adesões ao Rerct teria sido drasticamente inferior, o que redundaria no fracasso desse programa. Por esse mesmo motivo, não há se invocar no âmbito excepcional do Rerct o rito normal de fiscalização aplicável nos demais casos do IRPF.

Ocorre que ADI 05/18 pretendeu alterar o texto e o sentido da lei, principalmente ao introduzir as Notas 1, 2 e 3 na Questão 40 dessa orientação fiscal, a qual previa o seguinte: “O declarante precisa comprovar a origem lícita dos recursos? O contribuinte deve identificar a origem dos bens e declarar que eles têm origem em atividade econômica lícita na Dercat. Não há obrigatoriedade de comprovação. O ônus da prova de demonstrar que as informações são falsas é da RFB.” Tal redação mantinha-se fiel ao texto e ao espírito da Lei, pois reconhecia que caberia ao contribuinte reportar todos os bens mantidos no exterior, autodeclarando a natureza lícita da sua origem, independentemente de qualquer comprovação documental prévia. Ao assim proceder, reconheceu que a presunção da origem lícita dos bens deveria pender favoravelmente ao contribuinte, a qual, por óbvio, assumiria natureza apenas relativa, podendo ser desconstituída pelo Fisco, mediante a apresentação prévia de indício ou prova.

O recente ADI 05, porém, introduziu as seguintes Notas “Explicativas”: “1: A desobrigação de comprovar documentalmente a origem lícita dos recursos se refere ao momento de transmissão da Dercat, assim como ocorre na demais declarações prestadas à RFB. 2: A subsunção da hipótese legal de ingresso e permanência no Rerct poderá ser objeto de procedimento de ofício específico para tal fim. 3: A RFB, mediante intimação, concederá prazo razoável para que o optante ao Rerct apresente a comprovação sobre a origem lícita dos recursos regularizados.” Tais Notas possuem claro o propósito de desconstruir o sentido original do Enunciado 40, negando o conteúdo projetado pelo citado artigo 4º, § 12.

Primeiramente, a Nota 1 pretende convencer que os poderes fiscalizatórios no âmbito do Rerct são irrestritos e ilimitados, mesmo que tenha o texto legal categoricamente afirmado que a DERCAT não poderá “ser, por qualquer modo, utilizada” na instauração de qualquer “expediente investigatório ou procedimento criminal” nem poderá servir para “para fundamentar, direta ou indiretamente, qualquer procedimento administrativo”. Ora, mostra-se um escandaloso contrassenso pretender agora – passados mais de dois anos das adesões ao Rerct – sustentar que tal garantia valeria apenas para o momento exato de adesão ao Programa de Anistia, como se as restrições excepcionais à fiscalização teriam tão somente perdurado de janeiro de 2016 (momento de publicação da Lei) a outubro do mesmo ano (momento de envio das DERCATs). Tal interpretação mostra-se simplesmente incongruente diante da cronologia natural dos fatos, pois antes de o contribuinte enviar a DERCAT seria impossível aos agentes fiscais quererem instaurar qualquer tipo de procedimento que se pautasse única e exclusivamente nesse documento eletrônico, pela simples e boa razão de que essa declaração nesse período ainda não existia. Portanto, os termos do artigo 4º, § 12 somente podem assumir relevância para todo o período posterior ao envio da DERCAT (e não anterior), o que demonstra a existência de claras limitações ao poder fiscalizatório dos agentes fiscais, os quais assumem o ônus de reverter a presunção de licitude na origem dos bens regularizados.

Por sua vez, a Nota 2 persistiu de modo ainda mais arrojado no esforço de desconstituir os termos do artigo 4º, § 12, passando a admitir a livre e irrestrita abertura de “procedimento de ofício” que tenha como objeto a análise do “ingresso e permanência no Rerct”, mesmo que o citado dispositivo legal, como se viu, tivesse se valido de rigoroso texto ao proibir a instauração “por qualquer modo”, “direta ou indiretamente”, de “qualquer procedimento administrativo”, quando não apresentado previamente algum indicio ou elemento que rompesse com a presunção de licitude consagrada pela Lei.

Por fim, a Nota 3 rompe com o arcabouço normativo estruturado pela Lei de Repatriação, passando a sustentar que os agentes fiscais estariam autorizados a espontaneamente intimar todos os contribuintes que aderiram à Rerct, de modo a lhes conceder “prazo razoável” para assumirem a inciativa de reforçar a presunção legal que já lhes protege (ou para indiretamente desconstitui-la, no caso de insatisfação com a documentação apresentada). Assim, a curiosa técnica interpretativa agora adotada pela Receita Federal exige que: onde, na lei, lê-se “é proibido de qualquer modo, direta ou indiretamente, a instauração de qualquer procedimento administrativo, sem apresentação prévia de algum indício ou elemento”, seja lido “é permitida a livre instauração de procedimento fiscalizatório em qualquer caso, bastando dar-se prazo razoável ao contribuinte para que produza a prova que mantenha ou desconstitua a presunção legal que o favorece”. Além disso, chama atenção a referência à concessão de “prazo razoável” para o contribuinte ter que assumir o ônus probatório que não lhe pertence, como se fosse possível confiar na razoabilidade daqueles que já demonstraram irrazoabilidade em construir interpretação retroativa que nega o sentido que claramente se extrai da Lei!

Com base no exposto, pode-se concluir que o ADI 05/18 agrediu o ordenamento jurídico nos seguintes aspectos:

(i) Violação à legalidade: o ato normativo infralegal não possui natureza meramente explicativa de texto de lei nem pretende preencher lacuna normativa que seria fiel à intenção do legislador. Em verdade, produz conteúdo normativo contraditório com o disposto no citado artigo 4º, § 12, adentrando ilegitimamente no campo de competência do legislador. Com isso, subverte-se, por completo, o arcabouço normativo estruturado pela lei, rompendo com a presunção de licitude na origem dos bens regularizados que favorece o contribuinte e invertendo o ônus da prova que ficava a cargo das autoridades fiscais, as quais estão impedidas de iniciar qualquer procedimento investigatório, sem previamente apresentar indício ou elemento que embase a suspeita de procedência ilícita do bem regularizado.

(ii) Violação à irretroatividade: a inovação normativa trazida pelo ADI 05/18 afeta diretamente os atos jurídicos praticados nos anos de 2016 e 2017, momento em que nenhum contribuinte possuía conhecimento de que, ao aderir ao Rerct, teria ele o ônus incondicional de produzir à satisfação das autoridades fiscais os documentos que demonstrariam a licitude na origem dos bens regularizados. Assim, a retroação promovida pelo referido Ato normativo diz respeito à modificação para o passado por ato normativo atual dos efeitos projetados pela Lei (isto é, nos limites à fiscalização e na distribuição do ônus de prova), os quais de nenhum modo podem ser dela extraídos. Além disso, essa própria pretensão retroativa acaba agredindo o artigo 24 da LINDB, pois não está levando “em conta as orientações gerais da época” em que foram realizados os atos de adesão ao Rerct.

(iii) Violação à proteção da confiança: A citada inovação normativa despreza o estado excepcional de proteção que a Lei 13.254/16 criou com o intuito de estimular contribuintes a aderirem Rerct, o qual exigia a confissão pelo particular de crimes cometidos no passado, sob a promessa de perdão, sem que esse ficasse submetido ao livre escrutínio fiscalizatório no futuro por parte autoridades fiscais. Com a modificação das “regras do jogo” após “o jogo já ter sido jogado” veio a Receita Federal a desrespeitar a expectativa legítima desses contribuintes, que agora poderão ser questionados e importunados pelo Fisco ao seu mero desejo discricionário.

(iv) Tratamento da Exceção como Regra: a intenção do novo ato declaratório foi a de localizar aqueles particulares que indevidamente se valeram do Rerct para regularizar bens estrangeiros de procedência ilícita, tomando essa oportunidade para tentar legalizar o produto dos seus atos criminosos. Não há dúvida de que determinados indivíduos, de fato, em nome próprio ou de terceiros, tentaram se beneficiar ilegitimamente de um mecanismo de perdão estatal em casos em que a própria origem dos recursos era criminosa. Ocorre que tais casos jamais se encontraram sob o beneplácito da Lei de Repatriação e as autoridades fiscais sempre estiverem em posição de fiscalizar tais adesões indevidas, bastando para isso cumprir os termos da Lei 13.254/16. Tais casos, porém, são absolutamente excepcionais dentro do universo daqueles que aderiram ao Rerct. O que o ADI 05 está promovendo, em verdade, é um perverso tratamento da exceção como regra: pressupõe que todos os que aderiram ao Rerct estejam escondendo a natureza ilícita na procedência dos bens regularizados, motivo pelo qual todos podem, imediatamente e sem qualquer indício de suspeita, ser chamados agora a prestar esclarecimentos. Tal inversão falaciosa, que trata presumidamente todos os contribuintes como criminosos, não apenas agride as já mencionadas garantias constitucionais, como também qualifica como desleal e imoral a nova postura da Receita Federal.

(v) Imoralidade da Administração Pública: há extrema deslealdade na motivação que pauta o ADI 05, o qual assume dimensão utilitarista que pretende tratar todos os que aderiram ao Rerct como instrumento de manobra para tornar mais ágil e eficaz a identificação do grupo menor de particulares que se valeram indevidamente desse programa de anistia. Esclareça-se o ponto: a RFB está se valendo de postura utilitária ao submeter todos os indivíduos a um dever prévio de comprovar a licitude na origem dos seus bens, pois sabe que será mais ágil e prático ao Fisco intimar todos a prestarem esclarecimentos e – após esse período inquisitorial amplo – apenas se concentrar na análise das situações em que tal comprovação for deficiente ou inexistente. É evidente que a nova proposta investigatória trará enormes vantagens pragmáticas às autoridades fiscais, pois essas não mais dependerão do seu empenho prévio em produzir elementos probatórios de ilicitude, mas poderão apenas aguardar a falha na demonstração da procedência lícita que passou a ser de iniciativa dos contribuintes. No entanto, em um Estado Democrático de Direito, os fins não podem justificar os meios, de modo que tais vantagens fiscalizatórias jamais poderiam ser admitidas como moeda de troca diante da violação a direitos fundamentais.

Já se pode antecipar uma linha argumentativa que será elaborada para justificar a validade do ADI 5, a qual será estruturada em torno do conhecido brocado “Quem não deve, não teme”. Pretender-se-á sugerir que o contribuinte que não deseja prestar esclarecimentos ao Fisco possui algo a esconder e, por isso, já estaria fornecendo um indício que legitimaria a recaída de suspeita sobre ele. Tal argumento, porém, mostra-se de todo improcedente, pois para o indivíduo somente há dever de atender às demandas do Estado que sejam compatíveis com os ditames constitucionais e legais. Por isso, o único temor que o cidadão deveria ter é o de não conseguir se defender contra o ato abusivo do agente público que pretende criar suposto dever que, pelo direito, não existe!

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