Limite penal

É absurdo sustentar a ausência de duplo grau de jurisdição para acusação?

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Tiago Bunning

    é mestre em Ciências Criminais (PUC-RS) especialista em Direito Penal Econômico (IBCCrim e Coimbra) conselheiro seccional da OAB-MS (2022-2024) advogado e professor.

14 de dezembro de 2018, 7h00

Recentemente a imagem de uma das teses da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que em contrarrazões sustentava o não conhecimento do recurso ministerial por ausência de duplo grau para a acusação, ganhou grande repercussão nas redes sociais.

Ao contrário do que pode parecer à primeira visão, a tese não é absurda e encontra respaldo na doutrina, jurisprudência internacional[1], além de ser adotada em outros ordenamentos jurídicos[2]. Ela exige, contudo, superação de paradigmas, já que os recursos nascem e são concebidos para servirem ao sistema inquisitório.[3]

Uma primeira análise acerca da titularidade da garantia do duplo grau de jurisdição é possível a partir da simples leitura dos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário sem reservas[4] (Decretos n.º 678/92 e 592/92) e que demonstram ser direito de “toda pessoa” recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior (Art. 8º, 2., “h” do Pacto de San José da Costa Rica), bem como que “toda pessoa declarada culpada” por um delito terá o direito de recorrer da sentença condenatória para uma instância superior (Art. 14.5 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos). Notadamente, a “pessoa” ou a “pessoa declarada culpada” a que se referem os Tratados Internacionais é o indivíduo acusado e não o acusador, e isso decorre da simples interpretação de que o Ministério Público sequer é pessoa e o acusador privado não é pessoa declarada culpada. [5] Portanto, em primeiro lugar, a limitação do duplo grau de jurisdição ao Ministério Público pode ser defendida com fundamento na legalidade[6], pois, como visto, a literalidade dos tratados não comporta o recurso acusatório.

Além disso, as previsões do duplo grau de jurisdição nos tratados estão dispostas junto às garantias judiciais que são garantias do acusado e não do acusador – pensar de forma diferente seria coadunar com a inaceitável proposição autoritária de que existem garantias que são exercidas contra o indivíduo, quando o correto é admitir que o acusador não possui garantias, pois quem possui garantias é o acusado e essas se contrapõem em desfavor do poder punitivo, razão pela qual Luigi Ferrajoli afirma que o duplo grau é garantia de liberdade contra arbitrariedades[7].

É preciso compreender que os fundamentos – ou seja, a razão de existência – do duplo grau seriam a necessidade de dupla conformidade em matéria penal (que exige uma segunda análise da condenação penal em razão da gravidade que lhe é inerente, como conditio sine qua non para aplicação da pena)[8]; e a proteção da presunção de inocência (que não pode ser afastada com uma única condenação, além de se reconhecer que o recurso permite a manutenção do estado de inocência até o transito em julgado)[9]. Ambos os fundamentos são destinados ao acusado e, portanto, permitem afirmar que não há fundamento idôneo para justificar a existência de duplo grau para a acusação.

Por sua vez, a legitimidade e interesse recursal como categorias de titularidade dos recursos, que no processo penal não decorrem da ideia de sucumbência em face a inexistência de pretensão resistida[10], demonstram ser necessária a verificação de prejuízo a um direito (prejuízo material) ocasionado por uma decisão judicial como razão propulsora do interesse recursal.

Este prejuízo a direito que ocasiona legitimidade e interesse é verificado ao acusado que possui sua liberdade e outros direitos atingidos por uma sentença condenatória. O mesmo não ocorre quanto ao acusador (público ou privado) que não detém "direito de punir", mas apenas uma pretensão acusatória[11]. Logo, a decisão absolutória não lhe ocasiona prejuízo a direito material algum.

Há quem defenda ainda a vedação da múltipla persecução penal, como garantia individual própria de um direito penal liberal em um Estado de Direito[12], que nada mais é do que a interpretação estrita do ne bis in idem com alcance processual e que significa proibir não somente que se acuse o indivíduo duas vezes pelo mesmo fato-crime, mas vedando também que se submeta o imputado a um risco múltiplo (double jeopardy) de sofrer uma consequência jurídico-penal desfavorável após uma absolvição[13].

Nossa Constituição garante a “ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes” (Art. 5o, LV) e não uma ampla acusação que se estenda após a absolvição. Por esta razão Geraldo Prado explica que “se ela (a acusação) não chegar a ter sucesso em sua pretensão não lhe resta mais nada, e efetivamente se consolida a absolvição nesse plano. Caso seja vencedora, ao condenado se assegurará o direito à revisão da decisão, pois este é o princípio do duplo grau de jurisdição em sua dimensão substancial.”[14] Com se vê, não há absurdo algum ou invencionice na tese, senão pura ignorância de quem a critica sem conhecimento de causa.

Por fim, também fortalece a tese a (in)possibilidade que existe em nosso ordenamento de que decisões absolutórias sejam reformadas em razão de recursos acusatórios o que ocasiona o sepultamento da garantia do duplo grau do acusado e a violação de um direito fundamental[15], considerando que inexiste um recurso ordinário amplo que lhe permita impugnar todo conteúdo da decisão. Sem contar que nos casos de competência originária de tribunais, por vezes sequer existirá um tribunal superior para análise de um recurso.

Em aparente solução a mencionada violação, admitir o cabimento de um recurso ordinário amplo para o acusado sempre que um recurso acusatório ocasione modificação de uma decisão absolutória, independentemente da instância em que isso ocorra, acabaria ocasionando um duplo grau de jurisdição infinito.[16]

Por essas razões há argumentos robustos para sustentar a inexistência de duplo grau de jurisdição à acusação, o que nos permitiria pensar numa reforma do sistema recursal que vede os recursos acusatórios ao menos no que diz respeito ao duplo grau, ou seja, ao simples reexame dos fundamentos da decisão recorrida e das provas do caso penal.

Isso não afronta a igualdade de partes e sequer acarretaria uma desarmonia no sistema processual penal, pois em um sistema acusatório cada parte possui sua função e seu lugar constitucionalmente demarcado[17], o que pressupõe distinções. O caráter de garantia atribuído ao duplo grau não permite seu uso em desfavor do imputado, o que não significa dizer que a acusação não poderia recorrer, ela pode, mas não para o simples reexame, pois o duplo grau de jurisdição não é garantia do acusador.

Nesse ambiente, é possível pensar em recursos para acusação nos casos de surgimento de nova prova relevante, ausência de valoração da acusação (sentença citra petita), ou mesmo nos casos de ilicitude probatória e ocorrência de nulidade, de um modo muito próximo ao que foi proposto pela Legge Pecorella na Itália.[18]

No Brasil, essa vedação está longe de ser pacífica por ausência de definição legal expressa. Mas, processualmente, não constitui nenhum absurdo, todo o oposto. Talvez, no atual cenário político-criminal, seja até uma proposta utópica. Mas é justamente essa a função da utopia: ser um fim no horizonte que não nos seja alcançável com alguns passos, mas que nos leve a caminhar sem cessar para superação de séculos de inquisição que ainda atormentam o processo penal brasileiro.

 

 


[1] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Mohamed vs. Argentina: Sentencia. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_255_esp.pdf>. Acesso em: 04 de julho de 2017, p. 28.

[2] Tal como ocorre na vedação do double jeopardy presente no ordenamento norte-americano. Sobre o tema ver: CRUZ, Rogerio Schietti Machado. A proibição da dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 90/94.

[3] Sobre esse aspecto histórico ver: MAIER, Julio B. DerechoProcesal Penal. I. Fundamentos.2ª ed. 3ª reimp. Buenos Aires: Editora del Puerto, 2004, p. 449 e 706/707 e CASARA, Rubens R. R. O Direito ao Duplo Grau de Jurisdição e a Constituição: em busca de uma compreensão adequada. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo (coord.). Processo Penal e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 496.

[4] Valério Mazzuoli ressalta que: “o Brasil, ao ratificar (em 1992) a Convenção Americana, não fez qualquer reserva ao tratado, especialmente com a finalidade de bloquear o comando do art. 8.o, 2, h, da Convenção.” (MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O direito ao duplo grau de jurisdição como elemento de proteção dos direitos humanos. In: Revista Jurídica Consulex. Ano XIX, n. 431, 01/01/2015, p. 66).

[5] PRADO, Geraldo. Duplo grau de jurisdição no processo penal brasileiro: homenagem as ideias de Julio B. Maier. In: BONATO, Gilson. Direito Penal e Direito Processual Penal uma visão garantista. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2001, p. 114

[6] PAULA, Leonardo Costa de. O segundo grau de jurisdição como garantia exclusiva da pessoa: por uma teoria dos recursos para o processo penal brasileiro. 2017, Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal do Paraná, Curitiba/PR, p. 184.

[7]FERRAJOLI, Luigi. Los valores de la doble instancia y la nomofilaquia. In: Nueva Doctrina Penal. 1996/B (p. 445-456). Buenos Aires: Editores del Puerto, p. 456.

[8]MAIER, Julio B. Derecho Procesal Penal. I. Fundamentos.2ª ed. 3ª reimp. Buenos Aires: Editora del Puerto, 2004, p. 709 e 713.

[9]BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos Recursos Penais. 3a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018, p. 77 e 80. No mesmo sentido: VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Direito ao Recurso no Processo Penal: conteúdo e dinâmica procedimental de um modelo de limitação do poder punitivo estatal pelo controle efetivo da sentençacondenatória. 2017, Tese (Doutorado em Direito). Universidade de São Paulo, Faculdade de Direito, São Paulo/SP, p. 38 e 184. (no prelo)

[10]GOLDSCHMIDT, James. Principios Generales Del Proceso. Vol. II. Buenos Aires: E.J.E.A., 1961, p. 58, e no mesmo sentido: LOPES JR. Aury. Fundamentos do Processo Penal. Introdução Crítica. 2ª ed. Saraiva: São Paulo, 2016, p. 237.

[11]LOPES JR. Aury. Fundamentos do Processo Penal. Introdução Crítica. 2ª ed. Saraiva: São Paulo, 2016, p. 243.

[12]MAIER, Julio B. Derecho Procesal Penal. I. Fundamentos.2ª ed. 3ª reimp. Buenos Aires: Editora del Puerto, 2004, p. 595/596 e 627.

[13]MAIER, Julio B. J. La impugnación del acusador: ¿un caso de ne bis in idem? Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica, Costa Rica, n. 12, ano 8, 1996, p. 10/15.

[14] PRADO, Geraldo. Duplo grau de jurisdição no processo penal brasileiro: homenagem as ideias de Julio B. Maier. In: BONATO, Gilson. Direito Penal e Direito Processual Penal uma visão garantista. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2001, p. 115/116.

[15] GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal. 3ª ed., São Paulo: Grupo Gen, 2016, p. 348. No mesmo sentido: DA ROSA, Alexandre Morais. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 490, e NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 7ª Ed. Belo Horizonte: Editora D´Plácido, 2018, p. 966.

[16]MAIER, Julio B. Derecho Procesal Penal. I. Fundamentos.2ª ed. 3ª reimp. Buenos Aires: Editora del Puerto, 2004, p. 714

[17] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema Acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Revista de informação legislativa, v. 46, n. 183, p. 103-115, jul./set. 2009, p. 114.

[18]Sobre o tema: LETELIER LOYOLA, Enrique. El Derecho fundamental al recurso en el proceso penal. Barcelona: Atelier, 2013. p. 204/205 e CHINNICI, Daniela. Giudizio Penale di Seconda Istanza e Giusto Processo. 2a Ed. Torino: G. Giappichelli, 2009, p. 202.

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