Reflexão urgente

Juízes precisam rever preconceitos e visões sobre a questão das drogas, dizem ministros

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13 de dezembro de 2018, 6h17

Está na hora de toda a sociedade repensar seus preconceitos com as drogas e isso vale também para os juízes ao insistirem em decisões que já foram superadas por tribunais que guiam a jurisprudência do país, afirma o ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogerio Schietti. Vice-presidente da comissão de juristas que trabalha na produção de uma anteprojeto para atualização da Lei de Drogas, ele esteve em São Paulo na sexta-feira (7/12) para falar na Escola da Magistratura do TRF-3 sobre a questão. A comissão foi nomeada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e tem até este mês para apresentar o trabalho.

“Não é possível que tenhamos posições já definidas pelos tribunais superiores e ainda encontremos magistrados resistindo por opções religiosas, morais ou vontades pessoais próprias, resistindo a essas interpretações que são dadas pelas duas cortes e pela Constituição da República. Eles são responsáveis pela última interpretação das leis e continuam a decidir de maneira absolutamente contrária a esse entendimento que já foi expresso de maneira unânime pelas composições supremas desses tribunais, algumas vezes já até traduzidas em súmulas. Portanto, não há justificativa para continuar a haver resistência da parte de juízes e tribunais”, disse o ministro.

Schietti evitou repetir a fala dos colegas e centrou a sua abordagem nas decisões dos tribunais superiores que, disse, vêm conferindo um tratamento senão mais humano, menos rigoroso do que o legislador original propôs na Lei 11.343 e conexas.

Citando casos já conhecidos, disse que o STJ vem evoluindo para considerar atípica a conduta da importação de pequenas quantidades de sementes de maconha. Em um caso recente, relatado pela ministra Maria Thereza de Assis Moura, entenderam pela desconsideração como antecedente penal de condenação anterior por crime de porte para consumo pessoal. Pela jurisprudência tradicional, a pessoa seria considerada reincidente.

O vice-presidente da comissão disse também que os ministros deram uma melhor regulamentação do direito à inviabilidade do domicílio e citou o REsp 1.574.681-RS, em que a 6ª Turma avançou na compreensão de que é preciso maior cuidado na interpretação do artigo 5º, inciso XI da Constituição.

“A polícia pode penetrar em um domicilio sob a justificativa de que ali irá buscar drogas e prender autores de tráfico? As casas de bairros nobres estão protegidas pela CF. As casas dos menos favorecidos, não”, disse o ministro.

A justificativa dada é de que o crime é permanente. No STJ, contou, tem se tentado delimitar o que permitiria o ingresso da polícia. Por exemplo: pessoa que entra correndo na residência legitima ou não a entrada da polícia? “Alguém é flagrado fora da residência com denúncia anônima e a polícia obtém o consentimento dessa pessoa. Fico me perguntando: que vontade de colaborar é essa? Que altruísmo é esse?”, ironizou. O ministro sugeriu que os policiais passem a usar pequenas câmeras acopladas em seus coletes para gravar o consentimento dos moradores e durante as buscas por provas.

Sobre o problema do enquadramento em porte ou tráfico, ele citou acórdão reformado do TJ-RS de uma pessoa condenada a 7 anos de reclusão por estar com 0,7 g de crack. “Cada 0,1 g lhe rendeu 1 ano de prisão. Já estava presa há cinco meses quando chegou no STJ. Desclassificamos a pena para artigo 28. De nada adianta mudarmos a lei se continuarmos com os mesmos preconceitos e a mesma visão de mundo que temos hoje sobre a questão. Precisamos reavaliar nossas convicções e isso tem muito a ver com a função do juiz no processo penal.”

“A guerra às drogas falhou e a prova disso é que, nos EUA, epicentro dessa política, está havendo uma maciça e contínua tendência a uma política criminal menos intervencionista. Vários estados já adotaram legislações que descriminalizaram o uso para fins medicinais ou recreativos”, exemplificou.

Os juristas estão na fase final dos trabalhos na comissão e estão todos de acordo de que esse modelo não está servindo, pois não está atendendo às expectativas de reduzir ou pelo menos minimizar esses efeitos deletérios das drogas, disse Schietti. “Nenhuma dessas propostas é imune a críticas. Somente o tempo irá dizer qual delas pode ser melhor copiada."

Para o ministro, um dos grandes dilemas da comissão é apresentar uma proposta que seja factível do ponto de vista legislativo. "Sabemos das dificuldades que serão enfrentadas em um Congresso Nacional que, mais ainda agora, terá uma pauta mais voltada para aspectos morais, religiosos e isso será um complicador ainda maior no processo legislativo. Nosso objetivo é apresentar um trabalho que sirva para enriquecer esse debate, e, ainda que não venha a se transformar em projeto de lei, pelo menos teremos um referencial de um grupo de pessoas que efetivamente se dedicaram a esse estudo, e por pessoas oriundas dos diversos segmentos que compõem o sistema de segurança pública do país.”

Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, presidente da comissão, também foi ao evento e contou que ficou chocado com a realidade de combate às drogas depois que tomou posse como ministro do Superior Tribunal de Justiça na 3ª Seção, três anos atrás. Até então, como desembargador federal na 5ª Região, seu contato com processos de tráfico de drogas era pequeno, pelo fato de os estados do nordeste não fazerem fronteira com outros países. No STJ, segundo ele, vive um drama diário na análise de dezenas de Habeas Corpus sobre tráfico. Ele chamou atenção também para o subjetivismo da lei quanto ao uso e o tráfico, e afirmou que a tônica dos órgãos de repressão deveria ser as grandes apreensões.

“Alguns dizem que o Supremo não deveria decidir matéria nesse sentido, mas estamos com um parlamento sequestrado por bancadas que trabalham em interesses e que tornam determinadas questões tabus. O parlamento passou a não decidir mais temas de interesse público. É uma tristeza concluir isso”, disse Ribeiro Dantas.

Navarro tem consciência de que o trabalho da comissão não substitui o papel dos congressistas. “Não vamos dar a palavra final em nada, somos técnicos convidados pelo presidente do Congresso Nacional e vamos dar uma palavra inicial e deixar com os legisladores, mas acho muito difícil que o projeto seja discutido. O parlamento terá uma missão que será muito mais difícil que a nossa. Tenho certeza que as críticas pelo nosso trabalho virão de todos os lados, de avançados e dos conservadores.”


A ConJur publicou em fevereiro de 2017 uma série de reportagens sobre a relação entre a guerra às drogas e a superlotação dos presídios. O especial teve como motivação a onda de rebeliões e massacres em presídios no início daquele ano. Clique aqui para ter acesso à série de reportagens especiais produzidas.

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