Opinião

Decreto que condiciona cumprimento de sentença a orçamento é ilegal

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13 de dezembro de 2018, 7h36

Publicado no Diário Oficial 226, de 3 de dezembro de 2018, o Decreto 34.593/2018 dispõe que "A implantação de qualquer vantagem oriunda de decisão judicial será cumprida mediante existência de dotação orçamentária e financeira atestada pela Secretaria de Estado de Planejamento e Orçamento – Seplan" (artigo 1º) e ainda determina que qualquer órgão do Estado do Maranhão, uma vez intimado a cumprir decisão judicial, deverá "encaminhar previamente a qualquer outro ato, a citada intimação para consulta à Seplan e a Procuradoria-Geral do Estado" (artigo 2º)[1].

O Decreto está fundamentado no artigo 21 da Lei Complementar 101/2000, segundo o qual "É nulo de pleno direito o ato que provoque aumento da despesa com pessoal e não atenda: I – as exigências dos artigos 16 e 17 desta Lei Complementar, e o disposto no inciso XIII do art. 37 e no § 1º do art. 169 da Constituição; II – o limite legal de comprometimento aplicado às despesas com pessoal inativo."

É de causar estupefação o ato!

Aprendi, desde os primeiros períodos do curso de Direito, que os Poderes da República são independentes e harmônicos e que cada um deles possui função típica bem definida. A independência dos Poderes está estampada já no início da Constituição Federal (artigo 2º), texto base de nosso país (perdoe o truísmo), mas que é rotineiramente esquecido, talvez porque já se foram 30 anos de sua promulgação, talvez porque é mais conveniente agir como ignorante e tentar fazer valer interesses ilegítimos em prejuízo da sociedade.

Também aprendi, desde muito cedo, ainda nos bancos da faculdade de Direito, que ao Poder Judiciário compete a solução dos conflitos de interesses e que suas decisões são proferidas para serem cumpridas (lógico!), até porque a jurisdição atua por substituição à vontade das partes, às quais é vedada a autotutela, como regra muito geral.[2]

Até mesmo do valioso senso comum também compreendi que as decisões judiciais precisam ser obedecidas, já que, do contrário, de nada serve a Constituição e, em especial, os juízes e o Poder Judiciário inteiro.

Pois isso basta para notar o tamanho desatino do Decreto 34.593/2018, o qual, ao fim e ao cabo, submete as decisões judiciais à prévia deliberação da Secretaria de Planejamento e Orçamento do Estado, querendo dizer que talvez as ordens não sejam cumpridas — e muito provavelmente não serão.

O Decreto, então, pretende situar o Poder Executivo em um lugar altíssimo de uma inexistente hierarquia entre os Poderes da República, além de diminuir o Judiciário a um Poder sem poder algum, dada a estabelecida incapacidade deste último de impor suas decisões e de exercer o papel para o qual foi criado pela Constituição Federal.

Aliás, é bom que se veja que decisão que não pode ser exigida será alguma coisa outra, menos uma decisão. Talvez um aconselhamento ou uma opinião, o que, de todo modo, não possui a mínima aptidão para resolver os interesses contrapostos submetidos à jurisdição.

O Decreto, portanto, ofende o Poder Judiciário e a inteligência de seus membros, os quais passam a ser apenas recadistas ou, para ser menos duro, meros opinadores sobre o direito que deveria ser aplicado ao Poder Público.

Além disso, o ato (o decreto) ofende a sociedade maranhense por inteiro, porque, bem ou mal, o Governador de Estado é eleito para cuidar dos interesses do povo, e não para agir contra eles. Essa, aliás, é a essência da legitimidade democrática que se extrai do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, o qual dispõe que todo o poder emana do povo, cujo exercício será feito mediante seus representantes eleitos.

No caso do decreto estadual aqui em referência, o poder do povo foi exercido flagrantemente contra o povo, ainda que se diga — como sempre se diz — que a medida tenta preservar o direito da maioria da população e garantir acesso aos serviços públicos essenciais.

Que não se perca de vista que as vantagens pecuniárias que o decreto se furta a implantar são aquelas que o Estado subtraiu, anos atrás, dos seus servidores e que, por pura medida de injusta recalcitrância e de perversidade com o direito alheio, só foram reconhecidas em longos e penosos processos judiciais. E são essas mesmas vantagens que o Estado vem tentando (o gerúndio é proposital) a todo o custo retirar, mediante os mais estranhos e incabíveis expedientes processuais já dirigidos ou instaurados no Tribunal de Justiça.

Mas, para que estas ponderações não pareçam apenas uma lamúria infundada — embora a violação ao texto constitucional seja evidente e desafiadora de quem quiser argumentar o contrário —, é preciso que se perceba que o Decreto 34.593/2018 é absurdo por seus próprios fundamentos ou, melhor dizendo, pelos próprios fundamentos constantes da Lei Complementar 101/2000, invocados nas considerações do ato e que, certamente de propósito, foram esquecidos, em uma inabilidosa tentativa do uso da popular técnica João-sem-braço.

Explico:

É que o decreto invocou o artigo 21 da LC 101/2000, mas se fez desentendido diante do inciso I do parágrafo único do artigo 22 daquele mesmo diploma, que excepciona a vedação de aumento de despesas com pessoal quando a vantagem, o aumento, o reajuste ou a adequação da remuneração a qualquer título derivar de sentença judicial ou de determinação legal ou contratual.

É bom ler o texto que foi esquecido por aqueles que editaram o decreto:

Art. 22. A verificação do cumprimento dos limites estabelecidos nos arts. 19 e 20 será realizada ao final de cada quadrimestre.

Parágrafo único. Se a despesa total com pessoal exceder a 95% (noventa e cinco por cento) do limite, são vedados ao Poder ou órgão referido no art. 20 que houver incorrido no excesso:

I – concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a qualquer título, salvo os derivados de sentença judicial ou de determinação legal ou contratual, ressalvada a revisão prevista no inciso X do art. 37 da Constituição;

Assim fica fácil identificar que o fundamento do decreto é completamente falacioso, porque, repete-se, para o caso de decisão judicial não existe a mencionada vedação do artigo 21 da LC 101/2000.

No mais, nem é preciso muito tempo de pesquisa para se constatar que o repertório da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é abundante em decisões que, aplicando a exceção do artigo 22, parágrafo único, inciso I, da LC 101/2000, assentam que o limite de gastos com pessoal não é pretexto para o descumprimento de decisões judiciais.

Apenas para dar um exemplo recentíssimo, de dezenas que se poderão encontrar em uma rápida consulta, veja-se que no julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 1.186.584/DF, da relatoria do eminente ministro Og Fernandes, foi assentado que “(…) os limites orçamentários previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal, no que se refere às despesas com pessoal do ente público, não podem servir de fundamento para o não cumprimento de direitos subjetivos do servidor, sobretudo na hipótese de despesas provenientes de decisão judicial.”[3]

O que se vê, então, é que a audaciosa edição do Decreto 34.593/2018, além de constituir desrespeito ao Poder Judiciário e, em última análise, aos seus membros, é também um insulto à inteligência dos cidadãos e da comunidade jurídica maranhenses, pois parece crer que ninguém perceberá que não existe um tal fundamento legal para o descumprimento de decisões judiciais.

Ou talvez edição do ato tenha sido levada a efeito na suposição de que ele não será impugnado ou, se o for, que o Poder Judiciário se quedará submisso e passará por cima de jurisprudência consolidada, apenas para satisfazer os interesses do Governo Maranhense.

Tempos estranhos estes em que o Poder Executivo quer revoga a Constituição Federal mediante decreto estadual e, pior ainda, ensaia colocar o Poder Judiciário e a sociedade de castigo no canto da sala, com a cabeça virada para a parede.


[1] Versão original do texto publicado no jornal O Estado do Maranhão, edição de 08.12.2018, intitulado “Decisão judicial é pra ser cumprida!”.

[2] No âmbito civil, podem ser citados, como exceções, a legítima defesa (CC, art. 188), o desforço imediato (CC, art. 1.210, § 1º), a hipótese de penhor legal (CC, art. 1.467 e ss.) e o direito de retenção (CC, arts. 319, 527, 571, 578, dentre outros). Na esfera penal, o estado de necessidade, a legítima defesa e o estrito cumprimento de dever legal (CP, arts. 23 a 25). E no direito administrativo também há registro da autotutela, notadamente no poder reservado à Administração Pública de anular seus próprios atos (Enunciado n. 346 da Súmula da Jurisprudência do STF).

[3] AgInt no AREsp 1186584/DF, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/06/2018, DJe 18/06/2018.

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