Opinião

Acordo de colaboração premiada não é contrato de adesão

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12 de dezembro de 2018, 6h30

A festejada operação "lava jato" é, sem sombra de dúvidas, o maior projeto de reenquadramento ético-institucional brasileiro. Tal iniciativa não nasceu por acaso; houve um intenção deliberada de mudar a ordem dos acontecimentos no Brasil, pois a corrupção havia saído de controle.

Objetivamente, o preço da desonestidade pública brasileira ficou totalmente antieconômico. A ganância dos políticos estava comprometendo o lucro dos corruptores. Em termos de troca, a corrupção no Brasil ficou cara demais, forçando um barateamento dos custos de transação. Adicionalmente, a engrenagem corruptiva ficou obesa e inorgânica, abrindo muitos flancos de vulnerabilidade. O corruptor, então, começou a ficar com medo de ser pego na botija, refreando o financiamento ilícito da política. Aos poucos, o sistema delitivo começou a bater cabeça, deixando rastros cada vez mais evidentes.

Através da ação decidida, meticulosa e determinada do ex-magistrado Sergio Fernando Moro, a máquina de corrupção brasileira começou a ser desmontada. Gente graúda foi parar no xadrez; políticos tidos por intocáveis começaram a ver quadrado o azul do céu; recursos bilionários foram recuperados ao erário. Enfim, há um soluço de moralidade pública no Brasil.

Todavia, a busca de um bem público relevante não pode significar o aniquilamento de balizas civilizatórias fundamentais. Não se trata aqui de mais uma fanática defesa de um insustentável garantismo extravagante. Um garantismo que, no Brasil, significou a desmedida garantia do crime. Não adianta querer negar a realidade; as palavras podem pouco diante da força dos acontecimentos.

Mediante estratégias e práticas inovadoras, a acusação implodiu com as linhas de defesa. De certa forma, a advocacia penal está sem rumo, procurando achar um norte após o baile acusatório. Acontece que alguns excessos começam a saltar aos olhos, tornando cogente o exercício reflexivo da razão superior.

Ora, o positivo advento do instituto da “colaboração premiada” (Lei 12.850/2013) aposentou o velho processo penal. Com forte influência do pragmatismo americano e diante da evidência de que julgamentos nem sempre são perfeitos, instaurou-se uma linha negocial sancionatória, na qual a acusação e a defesa, através de concessões recíprocas, compõem contratualmente a questão criminal, submetendo o acordo a aval jurisdicional.

Como bem esclarecem Grossman & Katz, a colaboração premiada é “uma negociação que pode envolver um dar e receber, cujo resultado dependerá das forças relativas das posições de barganha e das habilidades dos advogados envolvidos”. Ou seja, estamos diante de um autêntica contratualização do devido processo legal criminal, substituindo-se o clímax da sentença condenatória por uma progressiva composição de interesses que, de forma célere, deve garantir a efetiva indenização dos cofres públicos por valores eventualmente desviados, a punição dos crimes consumados e uma razoável atenuação da pena por força da eficaz colaboração do réu.

De fundamental, uma circunstância é básica: o acordo de delação premiada não é um contrato de adesão. Não venham querer aplicar modelos contratuais padronizados que apenas mudam o nome das partes, os tipos penais envolvidos e a proposta sancionatória diante da colaboração obtida. Vamos ser claros: a imposição de cláusulas pré-fabricadas pela acusação coloca a defesa em posição subalterna, ferindo a paridade de armas e o contraditório horizontal que fundam o devido processo moderno.

Outro aspecto relevante diz respeito à falta de clareza nos critérios negociais adotados pela acusação. Para a regular validade jurídica do termos de delação, há o dever de expressa e fundamentada motivação das relativizações punitivas propostas ao colaborador, especialmente para se avaliar a justiça concreta da ponderação punitiva esboçada entre as partes. Embora não participe das negociações em si, o juiz competente, quando do encaminhamento do pedido de homologação, deve ser fielmente informado dos critérios fático-jurídicos que ensejaram as correlatas concessões intersubjetivas. Isso porque o dever de fiel informação à autoridade judicial está intimamente ligado ao princípio constitucional da individualização da pena (artigo 5º, XLVI, CF/88).

Ato contínuo, cabe ao juiz verificar a voluntariedade do acordo, “podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor” (artigo 4º, §7º, Lei 12.850/2013). Ou seja, verificado qualquer indício de coação, pressão psicológica ou emocional, induzimento ou vício de vontade, é cogente o sobrestamento da homologação até o deslinde definitivo de possíveis anomalias capazes de macular a espontânea expressão do colaborador. Sem cortinas, o imperativo constitucional do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88) impede todo e qualquer uso indevido das instituições processuais mesmo que seja para atingir fins teoricamente legítimos. Isso porque o processo judicial não é um meio de extorsões jurídicas.

Nesse contexto dinâmico, cabe à prudência judicial “recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais” (artigo 4º, §8º, Lei 12.850/2013). A milimétrica certeza jurídica do procedimento adotado é o pressuposto de validade da delação como meio de prova eficaz. Em outras palavras, delações abusivas – na forma ou substância – não passam de meios jurídicos inidôneos. E como já afirmou a Suprema Corte, “o poder acusar supõe o dever estatal de provar licitamente a imputação penal” (D.J. 19.12.1996).

O tema é naturalmente vasto e deve continuar por outros pagos. De nossa parte, apenas lançamos algumas linhas, movidos pelo firme propósito de contribuir para a realização prática daquilo que se tem por justiça constitucional.

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