Direito Civil Atual

Discurso de ódio e tutela jurídica dos sentimentos no direito privado

Autor

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

10 de dezembro de 2018, 7h55

O debate sobre o ‘discurso de ódio’ ganha preocupação jurídico-científica na atualidade. Duas causas subjacentes podem ser gizadas. Em primeiro, o desenvolvimento da sociedade da informação[1] — ante a consolidação da Internet — caracterizada pela desterritorialização, retroalimentação, liberdade e distribuição de conhecimento[2]. Em segundo, o reconhecimento e emancipação de novos sujeitos reais de direitos e grupos identitários que inserem minorias perante os inúmeros plexos sociais.

Além das searas constitucional[3] e penal[4] com inerente fixação dogmática na dicotomia entre liberdade de expressão e vedação ao discurso discriminatório, também o direito privado tem perspectivas relevantes, com destaque à promoção da pessoa humana através dos direitos da personalidade e responsabilidade civil por abuso de direito, que contribuem no combate a tais manifestações odiosas.

Ódio é sentimento e a externalização abusiva tem repercussão em diversas áreas das relações humanas e das ciências comportamentais[5]. Sem prejuízo de avançadas doutrinas civilísticas contextualizarem os sentimentos humanos na plêiade de direitos da personalidade[6], cumpre averbar que os códigos do Estado moderno não permitiram aprofundamento ao tema, ao menos na perspectiva emancipatória[7]. Mais tarde, a teoria do direito, sofrendo impacto das amplas transformações relacionais da sociedade e da filosofia[8], logo adicionou às racionalidades usuais (formal e material)[9] o viés reflexivo[10], buscando adequar-se aos matizes da sociedade[11].

É neste cenário de hipernexos em que há nítida modificação da ‘estrutura do sentimento’, considerando o espaço da diferença e da alteridade rumo ao potencial liberatório de diversos novos movimentos sociais até então subjugados e excluídos[12]. Erik Jayme[13], a propósito, propõe a convivência entre as diferentes culturas, ressignificando o existencial dos sentimentos e das sensações: o revival, sobre o qual o Direito, como sistema científico, não pode dar as costas, devendo assegurar o livre desenvolvimento da personalidade[14].

Sentimentos humanos são elementos da vida com pertencialidade à centralidade axiológica do sujeito real de direito. Compõem a subjetividade da pessoa e concedem efetividade à fonte constitucional da dignidade humana[15]. Não são meras elucubrações emotivas e nem desprezíveis exortações, senão comportam decisões e autonomias das pessoas na construção do projeto de vida[16], desde que mantida a unidade e coerência do sistema jurídico. O direito lhes confere promoção e tutela, conquanto não lhes dota de normatividade independente, sob pena de criar hipóteses sem limites e decisões lastreadas em juízos morais[17].

A doutrina lusitana[18] sugere a bipartição entre os seguintes sentimentos: bem-estar e sofrimento; fraternidade e egoísmo; amor e ódio. Para não perder a coerência temática fixa-se a atenção na última parelha.

Amor e ódio são operados juridicamente. A afetividade (longe de ser norma[19]) é exigente de respeito pelas preferências pessoais, sendo que o amor tem verdadeiro significado jurídico não apenas nos efeitos familiares, mas também na afirmação de novos arranjos entre companheiros, parentes e amizades íntimas. Remarque-se que ninguém é obrigado a amar pessoa que não queira[20], por isso, não cabe ao direito estabelecer figuras normativas de relacionamentos pessoais (afetivo, sexual, espiritual, casual etc.). Cabe ao direito respeitar e exigir respeito às preferências.

Já o ódio é sentimento que propicia repulsa ou não aceitação do outro. É certo que o sentimento pessoal odioso pode não ser apagado nos lindes subjetivos, mas os efeitos concretos, externos e virtuais devem ser evitados, até porque potenciais geradores de violência (quer simbólica, quer real) nas relações interpessoais. Quando, porém, o ódio é disseminado via discursos institucionais dirigidos contra grupos vulneráveis[21], onde há tênue diferenciação entre o ‘dizer’ e o ‘fazer’, ao direito cumpre reação coercitiva compatível à danosidade.

Nas redes sociais, além de exemplos de ofensas aos direitos da personalidade como as exposições não consentidas de imagens de corpos nus (revenge porn ou não)[22] e dos inconvenientes assédios (stalkers), o discurso de ódio (haters) ganhou hiperutilização nas afrontas à dignidade sexual, existencial, política e racial. Do mesmo modo, ninguém é obrigado a suportar o ódio manifesto dos outros, pois clara hipótese de ‘rebaixamento da qualidade de vida’ de determinada faixa da população e, portanto, dano social[23] ou dano moral coletivo, conforme norma explícita (LACP, artigo 1º, inciso VII).

O discurso de ódio é concreção ruinosa pela indevida discriminação. Violação máxima da igualdade entre as pessoas (direito geral à comparticipação social) mediante abuso de direito de manifestação (CC, artigo 187) qualificado pela diferenciação injustificada ou desproporcional entre posições jurídicas dos membros da comunidade. Trata-se de ilícito por clara ofensa ao dever de incolumidade geral (neminem laedere)[24]. Não há dúvidas de que a liberdade de pensamento e de expressão (também previstas no âmbito dos direitos da personalidade[25]) devam ser respeitadas, mas não viceja liberdade onde não há responsabilidade[26].

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM)


 1 ASCENSÃO, José de Oliveira. Estudos sobre direito da Internet e da sociedade da informação. Coimbra: Almedina, 2001, p. 33.

2 Ian F. McNeely e Lisa Wolverton. A reinvenção do conhecimento: de Alexandria à Internet. Trad. Maria Lúcia de Oliveira. Rio de Janeiro: Record, 2013. Destacam-se sucessiva e cronologicamente as seguintes ferramentas sociais (instituições) na operação do conhecimento e da informação: bibliotecas; mosteiros; universidades; república das letras (cartas eruditas e políticas); disciplinas e laboratórios; e, por fim, a Internet.

3 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discursos de ódio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. Mais recentemente: SARLET, Ingo Wolfgang.https://www.conjur.com.br/2018-out-26/direitos-fundamentais-liberdade-expressao-discurso-odio-redes-sociais. Visto em 12.11.2018.

4 ZAPATER, Maíra Cardoso. Quando o poder da palavra constrói a palavra do poder. In: Ciências penais. v. 17. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 287-315.

5 HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Tradução de Deborah Danowski. São Paulo: UNESP, 2001. Segundo o autor, sentimentos são manifestações declaradas ou executadas sem disfarce (verídicas), com nítida diferença da opinião, que pode ser verdadeira ou falsa.

6 Ver por todos, HUBMANN, Henrich. Das Persönlichkeitsrecht. Köln: Böhlau, 1967, p. 255.

7 No direito penal (CP, art. 29, inc. I e art. 65, inc. III, alínea ‘c’) a emoção é a ação ou inação causadora do crime e, por isso, não libertadora. Na seara processual (CPC/73, art. 134, IV e V; art. 135, inc. I e III), a sentença ou manifestação adoçada pelo sentimento é ato de subjetividade (predador interno do julgador ou membro do MP). Assim, o Estado moderno atuou no modelo de conformação social da emoção.

8 ARNAUD, Andre Jean. O direito traído pela filosofia. Porto Alegre: Safe, 1991, p. 247

9 SICHES, Luis Recaséns. Nueva filosofía de la interpretación del Derecho. México: Porrua, 1980, p. 289

10 TEUBNER, Gunther. Direito, sistema e policontexturalidade. Trad. Brunela Vieira de Vincenzi et al. Piracicaba: Unimep, 2005. p. 80-83.

11 HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola: 2014, p. 35.

12 FOUCAULT, M. Des espaces autres. In: Dits e Écrits, tome 2: 1976-1988. Paris: Gallimard, 2001. pp.1571-1581.

13 JAYME, Eric. Visões para uma teoria pós-moderna do direito comparado. In Revista dos Tribunais (São Paulo), nr. 759, ano 88, janeiro 1999, p. 24 a 40.

14 VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direito de personalidade. Coimbra: Almedina, 2006, p. 75. Com a excelente abordagem dicotômica: i) positiva (espaço para a autoformação); ii) negativa (remoção de obstáculos à autoformação).

15 TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloísa Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 5

16 CAPELO DE SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo. O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 237.

17 RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Estatuto epistemológico do direito civil contemporâneo na tradição civil law em face do neoconstitucionalismo e dos princípios. In: O Direito 143.º. Coimbra: Almedina, 2011, p. 43-66.

18 OTERO, Paulo. Direito da vida: relatório sobre programa, conteúdos e métodos de ensino. Coimbra: Almedina, 2004, p. 78.

20 REsp. 1.159.242 – SP. Rel. Min. Nancy Andrighi.

21 Ver STF: HC 82.242/04. O conhecido caso Ellwanger onde houve o reconhecimento da prática de racismo.

22 É importante verificar que a exposição de nudez feminina, por si só, não é nada pornográfico. É o conteúdo das imagens que possibilitará a avaliação da situação dita pornográfica.

23 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In: Novos e estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 377-384.

24 MIRAGEM, Bruno. Direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 98.

25 Ver por todos MIRANDA PONTES, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo VII. Direito de personalidade. Direito de família. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 86.

26 BARBOSA, Maria Mafalda. Liberdade vs. responsabilidade: a precaução como imputação da responsabilidade delitual. Coimbra: Almedina, 2006.

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