Diário de Classe

A nova era do STF e os custos políticos do ativismo judicial

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8 de dezembro de 2018, 7h00

ícone selo Diário de Classe“Professores, vocês poderiam, como última aula deste ano, dizer os principais erros e acertos do Supremo Tribunal Federal neste ano de 2018?” Foi a pergunta que, compartilhando uma sala de aula, os autores desta coluna receberam. No final do ano, temos sempre textos de balanços e perspectivas sobre o papel do STF. Já lemos declarações poéticas de alguns de seus membros sobre os riscos e esperanças que nos aguardam nessa nova era. Com o perdão da franqueza — exigida pelas circunstâncias —, gostaríamos de nos antecipar à série de “retrospectivas 2018”, na tentativa de arrastá-las para um plano que produza um verdadeiro debate sobre os problemas de nosso Direito. Assim, fazemos coro à coluna de Lenio Streck dessa semana, torcendo por respostas da comunidade jurídica. Convidamos todos a se juntarem nesse empreendimento coletivo, pois consideramos que se trata de momento decisivo para a história da corte.

Ascenção da juristocracia brasileira
Trataremos do histórico do STF, com destaque para as tensões entre direito e política. Sua concepção já parte de um lobby para que a Constituição de 1988 concentrasse uma série de competências na Corte Suprema. Se, por um lado, já se pode imaginar a carga de trabalho que isso traria, não devemos subestimar a gula por poder(es). Assim, o STF já nasce vocacionado ao gigantismo pelo próprio desenho constitucional, combinando, para tanto, todo tipo de institutos de inspiração estrangeira.

Além disso, o funcionamento da corte nos primeiros anos também desempenhou um papel importante na fixação de seu tamanho real. A inexorável “judicialização da política” já exigia muito do STF — considerando as demandas sociais reprimidas pela ditadura, então tornadas exigíveis pela nova Constituição. Mesmo assim, os ministros resolveram ir além do que lhes cabia e tentaram fazer políticas públicas no atacado. Resultado de toda essa gula: rapidamente a cúpula do Judiciário entrou em crise. Muito séria. Só saiu dela através de uma ampla reforma constitucional, que lhe deu (ainda mais) poderes para estabelecer filtros recursais e julgar várias causas de uma só vez, ao invés de se apostar no aprimoramento do nosso sistema jurídico através de mecanismos processuais coletivos[1].

Mais forte do que nunca, a corte experimentou seu apogeu. Em tempos de calmaria democrática, se apressou para capitalizar em cima de um Executivo e um Legislativo imobilizados pelo “presidencialismo de coalizão”[2] (para não dizer coisa pior). Redesenhando suas competências, o STF passou a protagonizar alguns dos principais debates políticos do país.

Os atores políticos bem que alimentaram o monstro do ativismo judicial. Faziam isso para evitar os desgastes políticos naturais ao enfrentamento de problemas pelas vias institucionais legítimas. O resultado disso tudo foi deslocar a disputa para outro Poder, mas mantendo sua lógica. E não demorou para essa lógica tomar conta da cúpula do Judiciário, que passou a se comportar como se estivesse num estranho palanque sem votos.

A queda dos órgãos de cúpula
Veio então a crise do sistema político. Seu imobilismo de superfície explodiu em escândalos de corrupção, revelando movimentações profundas e nada republicanas[3]. O sistema jurídico conseguiu trazer à tona parte desses esquemas ilícitos. É importante deixar claro: isso não foi resultado de heroísmos individuais, mas da autonomia conquistada pelas instituições jurídicas na redemocratização do país — ou seja, é conquista dos brasileiros que se esforçaram para essa redemocratização.

Ocorre que o personalismo ainda preda nossa frágil burocracia. Assim, alguns atores jurídicos passaram a querer “aparecer” mais do que as leis. Com isso, ao necessário combate à corrupção juntaram-se desnecessárias violações de garantias legais. O que deveria ser o fiel cumprimento do Direito passou a funcionar segundo uma estratégia de gerar o caos no sistema político para melhor atacá-lo.

Para entender esse fenômeno, não é preciso ter nenhuma inclinação partidária específica, muito menos aderir a teorias da conspiração. Basta analisar os acontecimentos em toda sua complexidade, sem querer acomodá-los em uma narrativa simplista. Uma nova geração de atores jurídicos ascendia, com sua “visão de mundo” e suas ambições de influenciar a sociedade. Trata-se de uma nova “vanguarda iluminista” barrosista, numa versão que ainda é estruturalmente aristocrática, mas que se apresenta sob um discurso mais afinado com o gosto popular.

Essa nova base do sistema jurídico não se reconhecia mais na sua velha cúpula. Além disso, diferentemente dos ministros do STF, os juízes e procuradores “ragazzini”[4] brasileiros sabiam se comunicar com o público leigo. O conflito entre gerações era inevitável. E a derrota do STF também, graças à arena estabelecida pela própria Corte: a popularidade.

Potencializadas pela grande mídia, as manifestações favoráveis à força-tarefa da "lava jato" tornaram-se tão efusivas que o STF se viu constrangido a confirmar qualquer ação dela, não importando sua ilegalidade. Perdeu-se completamente o controle, numa subversão da hierarquia judiciária. Sempre que se anunciava uma dividida entre a linha de frente da "lava jato" e os órgãos de cúpula, a gritaria era tão grande que o STF era obrigado a recuar.

O STF havia se desmoralizado por iniciativa própria. Chegou a ter suas decisões peitadas por um Renan Calheiros. Terminou o ano enquadrado por uma espécie de “tenentismo togado”[5] da turma da "lava jato". Nos momentos mais tensos em que uma decisão impopular do STF se anunciou, ela foi contida por um tenentismo fardado mesmo[6], das Forças Armadas — bem posicionadas nos índices de confiança nas instituições.

Uma Corte enquadrada
Agora, o que o futuro reserva ao STF? Que papel ele desempenhará nesses tempos de radicalização política, militar e da base do sistema de justiça?

Provavelmente, não haverá nem tempo nem clima para os tais ativismos “progressistas”, com os quais muitos acadêmicos simpatizaram. Pela quantidade de reformas que se anunciam, a pauta da Corte tende a ser mais reativa, tomada por discussões sobre preservação de direitos fundamentais. Isso se a corte se mexer muito! Seu atual presidente, o ministro Toffoli, já disse que o STF vai passar de centroavante a zagueiro, metáfora usada para sintetizar todo um discurso de retração. Esperamos que isso não signifique deixar direitos descobertos, já que um ativismo reacionário seria tão distante da postura correta de um tribunal quanto um ativismo progressista, como foi explicado pormenorizadamente por Streck.

Ao que tudo indica, teremos uma crise do “Court-Packing” piorada aqui no Brasil. Explicamos: a “Era Lochner” (nome devido a um caso famoso) foi um período em que a Suprema Corte dos EUA invalidou uma série de políticas regulatórias do Executivo, durante o New Deal. Para muitos, a corte teria inflacionado o conceito de “substantive due process” em defesa de uma visão laissez-faire das liberdades contratuais. Então, o presidente Roosevelt pôs em prática um plano para mudar a composição da Corte, que ficou conhecido como “Court-packing plan”[7]. A crise foi tão grande que a Suprema Corte mudou seu posicionamento e passou a ser deferente ao Executivo, em episódio (West Coast Hotel versus Parish, 1937) que ficou conhecido como: “the switch in time that saved nine”[8].

No caso brasileiro, a posição política do governo parece invertida. Já a posição jurídica do STF nunca é fácil de precisar, mas, considerando o extremismo do governo, já se percebeu que estão em rota de colisão. Assim, a reviravolta a que se verá obrigada nossa corte, depois da queima do capital político, parece seguir a mesma lógica da sua equivalente americana. Só que de modo mais grave, pois nossa Suprema Corte já começa a Era Toffoli num enquadramento político ameaçado por todos os lados: 1) O novo presidente da República ameaçou mudar o número de ministros da corte (nomeando dez membros adicionais) logo na campanha eleitoral. Pelos critérios atuais, vai nomear ao menos dois. Agora, tem-se falado bastante na proposição de uma Emenda Constitucional revogando a “PEC da bengala”, para forçar a abertura de mais duas vagas na corte; 2) Teremos um STF enquadrado pelas Forças Armadas, como vimos nos episódios envolvendo o General Villas-Bôas e o deputado Eduardo Bolsonaro, além das nomeações de assessor militar pelo próprio presidente da corte; 3) a linha de frente da "lava jato" acumula agora poder político no Executivo, passando a ocupar um superministério da Justiça; e 4) a nova cultura política que vem se formando aposta em bancadas temáticas e interesses corporativos, tendendo a um funcionamento bem mais radical e conflituoso do que a velha mediação partidária — e nada garante que seja menos voraz do que ela.

O mais curioso de tudo é que o ministro Toffoli veio a público propor um “grande pacto Republicano” entre os Três Poderes. Segundo ele: “Esse pacto envolve, com absoluta prioridade, que deliberemos sobre as reformas previdenciária e tributária/fiscal e enfrentemos os problemas da segurança pública […]”. Não sabíamos que esse papel de estabelecer prioridades políticas cabia ao presidente do STF, ainda mais quando algumas delas são reformas altamente polêmicas, repudiadas por boa parte da população. E prossegue: “[…] Nesse concerto, o papel do Poder Judiciário será o garantidor da segurança jurídica e da harmonia social. Temos um Judiciário fortalecido, independente e atuante, que cumpre sua função de garantir a autoridade do direito e da Constituição”. Sempre pensamos que esse seria o papel que o STF deveria desempenhar, sempre. Por que essa declaração, vinculada a agendas tão concretas?[9]

Pelo que vai se desenhando, as instituições tendem a não ser o “filtro” que muitos esperavam para o novo governo. O novo governo, que nem começou, é que já está filtrando as instituições.

O que o STF deveria fazer e o que vai fazer?
Como legitimar a Jurisdição? Na linha da Crítica Hermenêutica do Direito, defendemos que as cortes devem demonstrar que suas decisões são a interpretação adequada à Constituição e a todo o direito democraticamente produzido. Ao não se portar dessa maneira, o STF só conseguiu uma coisa aos olhos do grande público: marcar a prática jurídica brasileira como questão de vontade, que não precisa ser controlada por uma interpretação rigorosa das leis. Esse foi o auge do poder individual dos ministros. E foi também o precedente que abriram para sua queda, assim que surgiram outras figuras mais populares.

Mesmo para quem seja adepto de uma perspectiva dita “realista”[10], a breve reconstrução histórica que fizemos demonstra a inabilidade política da Corte. Suas aventuras ativistas (progressistas ou conservadoras) são insustentáveis a longo prazo e sempre levam a crises graves, com deterioração do quadro institucional.

Se esse histórico se mantiver, o STF vai seguir sua jurisprudência oportunista. Os ministros continuarão tentando “aparecer” como atores individuais, sem se legitimar como membros de uma instituição. Deveriam se dar conta dessa situação, nem que fosse por vaidade ou cálculo estratégico, para preservar seus poderes nas competências que lhes cabem. Aplicar o Direito parece uma boa maneira de recuperar credibilidade como juristas, certo? Na situação em que se colocou, o STF está jogando fora sua autoridade, no momento em que o país mais precisa dela.


[1] Transcrevemos fala de Júlio César Rossi em conversa sobre o tema, com aportes da CHD: “a incompreensão ou mesmo a ausência de interesse em desenvolver uma teoria da decisão adequada, inclusive ao processo coletivo, levou o legislador a apostar nesses filtros que desconsideram a concretude dos casos levados em controle difuso para o julgamento de teses abstratas e formação de precedentes sem DNA! A propósito, não é à toa a inserção no CPC do art 998 a reforçar tal empreitada pelo STF e STJ”. Para mais reflexões nessa linha, veja-se: ROSSI, Júlio César. Precedente à brasileira: a Jurisprudência Vinculante no CPC e no Novo CPC. São Paulo: Gen, 2015.

[2] ABRANCHES, Sérgio H. H. Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, 1988. p. 5-34.

[3] Para brincar com a imagem retratada em: NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da redemocratização ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

[4] Como ficaram conhecidos na Itália os jovens atores jurídicos da operação Mãos Limpas.

[5] Sobre esse paralelo entre o movimento tenentista de 1920 e ativismo judicial atual, veja-se Luís Werneck Viana e Christian Lynch. A entrevista de Lynch explica ainda a ideologia da “revolução judiciarista”.

[6] Pelo que a entrevista do General Villa Bôas permite especular, a cúpula das Forças Armadas também pode estar reagindo às insatisfações de sua base, para não perder o controle da caserna.

[7] TRACHTMAN, Michael G. The Supremes’ greatest hits: the 37 Supreme Court cases that most directly affect your life. Revised & updated edition. New York: Sterling Publishing Co. Inc., 2009p. 106-108.

[8] Idem.

[9] Juan Arias especula que, ao agir assim, o Min. Toffoli já estaria marcando posição, legitimando algumas pautas e deslegitimando outras.

[10] Com a qual não concordamos, obviamente.

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