Ambiente jurídico

Poder público tem dever de transformar unidades de conservação em realidade

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8 de dezembro de 2018, 18h00

Spacca
As unidades de conservação são uma das mais antigas ferramentas de preservação do meio ambiente utilizadas em todo o mundo. Elas constituem espaços territoriais objetivamente delimitados, com atributos ambientais relevantes, que são formalmente reconhecidos por ato do Poder Público e submetidos a um especial regime jurídico de proteção e gestão, com objetivos conservacionistas.

Em âmbito internacional, a criação do Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos da América, em março de 1872, marca o nascimento do conceito de unidades de conservação modernas[1]. Em nosso país, o Parque Nacional de Itatiaia, criado em 14 de junho de 1937, é o embrião das ações de instituição de espaços territoriais protegidos no Brasil.

A Constituição Federal vigente, após reconhecer o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o dever de preservá-lo, estabeleceu como uma das obrigações do Poder Público para efetivação de tais mandamentos: “definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção” (art. 225, § 1º. III).

Posteriormente, a Lei nº 9.985/2000 regulamentou tal dispositivo constitucional e instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que compreende as unidades criadas em nível federal, estadual e municipal, que foram distribuídas nos grupos de proteção integral (cujo objetivo é preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais) e de uso sustentável (cujo objetivo é compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais).

De acordo com dados de julho de 2018 do Cadastro Nacional de Unidades de Conservação[2], o Brasil possui, no grupo de proteção integral, 98 Estações Ecológicas, 50 Monumentos Naturais, 425 Parques, 62 Refúgios da Vida Silvestre e 63 Reservas Biológicas, totalizando 663.716 km2 de áreas protegidas. Já no grupo de uso sustentável contamos com 106 Florestas, 94 Reservas Extrativistas, 39 Reservas de Desenvolvimento Sustentável, 326 Áreas de Proteção Ambiental e 888 Reservas Particulares do Patrimônio Natural, totalizando 1.881.201 km2.

Os números são bastante expressivos e podem induzir à equivocada conclusão de que o país tutela de forma adequada suas unidades de conservação, espaços essenciais para a efetiva preservação do meio ambiente em suas diversas dimensões.

Contudo, a realidade é bastante diversa, pois a simples criação, formal, de unidades de conservação, por si só não implica em conservação dos atributos que justificaram a proteção, o que pressupõea adoção de ações concretas de planejamento, implantação de infraestrutura, regularização fundiária, além de adequadas e contínuas medidas de gestão.

Com efeito, simples atos administrativos formalmente plasmados no papel não mudam a realidade ambiental para melhor.

Como assevera Douglas de Souza Pimentel sobre os chamados, popularmente,“Parques de Papel”[3]:

Existe mais vontade política para criar parques do que para geri-los. O que se tem observado é que o processo de implantação efetiva, que envolveria as consequentes responsabilidades política, legal e financeira na sua conservação e manejo, não avança, criando os chamados parques de papel, ficções jurídicas que não têm implantação na realidade social na qual estão inseridas. Ou, como definem Terborgh e Van Schaik, parques virtuais, cuja implementação limita-se a linhas em mapas oficiais.

A experiência de quem lida com o assunto revela que a regra das unidades de conservação no país, infelizmente, é o abandono. Áreas públicas invadidas por posseiros e criadores clandestinos de gado ou garimpeiros; áreas privadas há anos sem desapropriação e justa indenização, gerando conflitos sociais; ausência de plano de manejo e definição de zona de amortecimento; inexistência de infraestrutura de visitação, demarcação, sinalização e de equipamentos de prevenção e combate a incêndio; número insuficiente ou inexistente de técnicos e funcionários para gestão e vigilância; vedação do acesso ao público ou acesso permitido sem controle; falta de integração das ações protetivas com as comunidades do entorno e ações administrativas paralelas e desencontradas com áreas afins, como a promoção do turismo sustentável e a inclusão social, são alguns dos muitos problemas que afligem os que labutam com a temática.Diante da omissão do Poder Público em efetivar, na prática, a implantação de unidades de conservação por ele mesmo criadas, caberia a propositura de ações judiciais, a exemplo da ação popular e da ação civil pública, para compeli-lo ao cumprimento de tal dever ? Ou a adoção de tais medidas repousaria em critérios de discricionariedade administrativa insindicáveis pelo Poder Judiciário?

Vejamos.

Luiz Guilherme Marinoni, a propósito das normas que exigem controle ou fiscalização da Administração Pública, leciona com precisão:

Quando o Poder Público editou a norma de proteção, mas é necessário o controle ou a fiscalização estatal, é claro que o dever do Estado não pára na realização da norma. Com efeito, ao lado de uma norma de proteção, pode ser necessária a atuação concreta da Administração Pública. Nesse caso, havendo omissão da Administração, a ação deverá ser proposta contra o Estado, pois aí o ilícito omisso é estatal.[4]


 

O eminente magistrado e doutrinador Álvaro Luiz ValeryMirra também aponta que:

 

Não há ingerência indevida do Poder Judiciário na esfera de competência do Poder Executivo quando impõe à Administração Pública o cumprimento de obrigações de fazer tendentes à supressão da omissão estatal lesiva ao meio ambiente, pois, na realidade, quem age em iniciativas dessa natureza é a própria sociedade, e o juiz, ao ser provocado, exerce sua atribuição precípua e específica de aplicar o direito aos casos concretos.[5]

O saudoso professor José Eduardo Ramos Rodrigues, um dos grandes especialistas no tema unidades de conservação, anota que:

A criação de Unidades de Conservação, mais que uma prerrogativa, é um dever constitucional do Poder Público, previsto, como já vimos, expressamente no inciso III do §1.º do art. 225 da Carta de 1988. Ocorre que criar uma Unidade de Conservação não significa apenas expedir um decreto em alguma data festiva (dia do meio ambiente, dia da árvore, etc.) e abandonar a área em seguida à própria sorte. Mas é isto que costuma acontecer em geral no Brasil. Temos então Unidades sem vigilância, sem mínima infraestrutura para funcionamento, sem disponibilidade orçamentária, sem localização precisa, entregues ao domínio de particulares.[6]

Sobre a necessidade de medidas efetivas de gestão de nossos espaços territoriais especialmente protegidos, Édis Milaré ensina que:

A gestão é um processo ou um conjunto de medidas administrativas que conjuga recursos humanos, físicos e financeiros no sentido de implementar determinada política pública para desenvolver plano, programa ou projeto, de forma orgânica, e controlada, a fim de atingir os seus objetivos mediante resultados avaliáveis.

Sendo um processo, a gestão pressupõe encadeamento de ações. Sendo conjunto de medidas administrativas, compreende normas práticas e dirigidas para um determinado escopo, passando por levantamento de problemas, definição de prioridades, alocação de recursos, implementação de atividades, avaliação de resultados e outros. A gestão se retroalimenta, retoma os passos mencionados anteriormente, e assim por diante. É esse contínuo retornar que faz da gestão um processo.

As unidades de conservação constituem objeto de gestão. E mais, de uma gestão muito específica, com normas extraídas da legislação – no caso delas, além da especificidade do objeto (a conservação da biodiversidade, dos recursos naturais e, em síntese, dos ecossistemas), há especificidade da lei que as regulamenta, segundo as suas diferentes categorias.[7]

Em razão do exposto, o ente público que cria formalmente uma unidade de conservação mas deixa de efetivá-la na prática, permitindo a ocorrência de ameaças ou danos em detrimento dos atributos que justificaram a proteção, viola o mandamento constitucional inserto no art. 225, § 1º, III e qualifica-se, juridicamente, como poluidor, atraindo para si responsabilidade nos âmbitos administrativo, cível e mesmo criminal, nos exatos termos do art. 225, § 3º. da Constituição Federal[8].

A omissão estatal em tal tema, que versa sobre direito fundamental e difuso, pode ser corrigida por meio de acionamento do Poder Judiciário, sem que a determinação para o cumprimento do dever legal de implantação da unidade de conservação implique em violação ao princípio da separação dos Poderes, conforme já reconhecido expressamente pelo STF[9] ao manter acórdão do TJMG sobre medidas necessárias à efetivação do Parque Estadual de Biribiri, em Diamantina, quando ressaltou que a jurisprudência da Corte “está sedimentada no sentido de que o Poder Judiciário, em casos excepcionais e configurada a inércia ou morosidade da Administração, pode determinar a implementação pelo Estado de políticas públicas para assegurar o exercício de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais”, restando a decisão assim ementada:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. DEFESA DO MEIO AMBIENTE. GESTÃO E REGULARIZAÇÃO DO PARQUE ESTADUAL DO BIRIBIRI. IMPLEMENTAÇÃO DO PLANO DE MANEJO E DE MEDIDAS PARA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DA UNIDADE DE CONSERVAÇÃO. LEIS FEDERAIS 4.771/1965 e 9.985/2000. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. INOCORRÊNCIA. PRECEDENTES. (STF – ARE 1134658 / MG. j. 28 de maio de 2018. Rel. Ministro Luiz Fux).

Vale ressaltar que, em âmbito cível, a responsabilidade do Poder Público omisso é objetiva, nos termos do art. 14, §1º. da Lei 9.985/2000, consoante bem exposto na seguinte decisão do Colendo Superior Tribunal de Justiça.

A criação de Unidades de Conservação não é um fim em si mesmo, vinculada que se encontra a claros objetivos constitucionais e legais de proteção da Natureza. Por isso, em nada resolve, freia ou mitiga a crise da biodiversidade – diretamente associada insustentável e veloz destruição de habitat natural –, se não vier acompanhada do compromisso estatal de, sincera e eficazmente, zelar pela sua integridade físico-ecológica e providenciar os meios para sua gestão técnica, transparente e democrática. A ser diferente,nada além de um “sistema de áreas protegidas de papel ou de fachada”existirá, espaços de ninguém, onde a omissão das autoridades é compreendida pelos degradadores de plantão como autorização implícita para o desmatamento, a exploração predatória e a ocupação ilícita. Qualquer que seja a qualificação jurídica do degradador, público ou privado, no Direito brasileiro a responsabilidade civil pelo dano ambiental é de natureza objetiva, solidária e ilimitada, sendo regida pelos princípios do poluidor-pagador, da reparação in integrum, da prioridade da reparação in natura, e do favor debilis, este último a legitimar uma série de técnicas de facilitação do acesso à Justiça, entre as quais se inclui a inversão do ônus da prova em favor da vítima ambiental. (STJ – RESP 2008/0146043-5. Relator: Ministro Herman Benjamin. Data do Julgamento 24/03/2009)


 

Por isso, perfeitamente cabível o manejo da ação popular ou da ação civil pública para romper a inércia do Poder Público no cumprimento de medidas básicas para a implementação, no campo prático, de nossas unidades de conservação, podendo o pleito se voltar tanto para medidas de planejamento (elaboração de plano de manejo, definição de zona de amortecimento etc), quanto de regularização fundiária (cadastro fundiário, avaliação de imóveis, desapropriação etc) e de efetiva estruturação e gestão (disponibilização de mão de obra; implantação de cercamento, sinalização; disponibilização de veículos e equipamentos para vigilância, combate a incêndio etc), sem prejuízo da responsabilidade pela reparação de eventuais danos materiais e morais coletivos decorrentes da ausência da implantação das medidas em tempo próprio.

 

Veja-se, a propósito, o seguinte julgado do TJMG:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ESTADO DE MINAS GERAIS E INSTITUTO ESTADUAL DE FLORESTAS. PARQUE ESTADUAL "SERRA NEGRA". "PLANO DE MANEJO" E "REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA". OBRIGAÇÕES LEGAIS. MULTA POR A CF/1988, para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente sustentável e equilibrado, previu, no §1º de seu artigo 225, medidas direcionadas ao Poder Público, dentre as quais a preservação e restauração dos processos ecológicos essenciais, além do manejo ecológico das espécies e ecossistemas (inciso I) e a definição, em todas as Unidades da Federação, de espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de Lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção (inciso III). 3. Como "Unidade de Conservação", deve o Parque Estadual "Serra Negra" possuir "Plano de Manejo", sendo, ainda, medida impositiva, para a efetiva consecução de seus propósitos, a "Regularização Fundiária" da totalidade de sua área, com estribo no artigo 11, §1º, da Lei nº 9.985/2000. (TJMG; APCV 1.0325.13.002364-2/002; Rel. Des. Elias Camilo; Julg. 09/11/2017; DJEMG 05/12/2017)

Enfim, já é tempo de deixarmos de cultuar o law-on-the-books, (o Direito legislado), e nos preocuparmos com o law-in-practice (o Direito aplicado), sobretudo por meio da utilização técnica de implementação legal (enforcement) de normas reguladoras de condutas (regulation), visando assegurar o respeito, obediência e cumprimento legal (compliance), contribuindo para que a ordem jurídica vigente transite do paradigma da normatividade formal para o da normatividade efetiva[10].

Os mecanismos legais para transformar os “Parques de Papel” em realidade, existem. É preciso que os operadores do Direito se atentem para a fragilidade protetiva de nossas unidades de conservação e adotem as medidas necessárias para a mudança desse cenário desolador.


[1]ARAÚJO, Marcos Antônio Reis. Unidades de conservação: importância e História no mundo. p. 29. In: Unidades de Conservação no Brasil. O caminho da gestão para resultados. São Carlos. RIMA. 2012.

[2]Tabela consolidada das Unidades de Conservação Fonte: CNUC/MMA – www.mma.gov.br/cadastro_uc Atualizada em: 01/07/2018. Disponível em: http://www.mma.gov.br/images/arquivo/80229/CNUC_JUL18%20-%20B_Cat.pdf Acesso em 06/12/2018.

[3]Os parques de papel e o papel social dos parques. Tese de Doutoramento. USP, Piracicaba, 2008.

[4] MARINONI, L.G. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 339.

[5] MIRRA, A. L. V. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.

[6]RODRIGUES, J. E. R. Sistema Nacional de Unidades de Conservação. São Paulo: RT, 2005, p. 142.

[7]MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 680-681.

[8] A tal respeito, a Lei 9.985/2000 estatui: Art. 38. A ação ou omissão das pessoas físicas ou jurídicas que importem inobservância aos preceitos desta Lei e a seus regulamentos ou resultem em dano à flora, à fauna e aos demais atributos naturais das unidades de conservação, bem como às suas instalações e às zonas de amortecimento e corredores ecológicos, sujeitam os infratores às sanções previstas em lei.

[9]STF – ARE 1134658 / MG. J. 28 de maio de 2018. Rel. Ministro Luiz Fux.

[10]BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e. O Estado teatral e a implementação do direito ambiental. p. 20

Autores

  • é promotor de Justiça em Minas Gerais, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Patrimônio Cultural da Rede Latino-Americana do Ministério Público e membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos-Brasil).

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