Dupla soberania

Suprema Corte vai decidir se mantém dupla punição permitida nos EUA

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7 de dezembro de 2018, 15h25

A Suprema Corte dos EUA realizou nesta quinta-feira (6/11) a primeira audiência de um caso em que vai decidir se mantém ou reverte jurisprudências que criaram uma exceção ao princípio constitucional que proíbe a dupla punição pelo mesmo crime. Se reverter, vai mudar o panorama da justiça criminal no país e, provavelmente, beneficiar o presidente Donald Trump – além do peticionário do recurso.

O princípio que veda a dupla punição pelo mesmo crime (ne bis in idem) está bem estabelecido na Quinta Emenda da Constituição e na justiça criminal dos EUA, mas com exceção: um réu pode ser processado criminalmente pela justiça estadual e pela justiça federal, cumulativamente.

É uma exceção preservada por jurisprudências da corte há 170 anos, aprovadas por 30 ministros no decorrer do tempo, quando contestadas. Sempre prevaleceu o entendimento de que a exceção à dupla punição se justifica porque cada estado do país é soberano, tanto quanto a União é soberana. O conceito é conhecido como “dupla soberania”.

Porto Rico, por sua vez, é um território – não um estado – dos EUA e, portanto, não pode reivindicar soberania. Há dois anos, a Suprema Corte decidiu, por 6 votos a 2, que Porto Rico não podia processar um réu que há havia sido condenado por um tribunal federal dos EUA.

Segundo as jurisprudências, no confronto entre dupla soberania versus dupla punição, prevalecem as soberanias da União e do estado, com ressalvas: via de regra, a justiça estadual só pode processar um réu por violação de leis estaduais; e a justiça federal só pode processar o mesmo réu, pelo mesmo crime, por violações de leis federais.

“Via de regra”, porque há exceções. No caso perante a Suprema Corte, por exemplo, não houve um forte interesse da justiça federal de processar Terance Gamble, acusado de porte de arma proibido, porque ele já havia sido condenado por um crime de assalto anteriormente. Uma pistola foi encontrada em seu carro, quando policiais o pararam na rua por causa de uma lanterna quebrada.

Normalmente, os promotores federais não dariam qualquer importância ao caso. Mas o governo, à época, estava em uma cruzada contra a violência doméstica. E, pelo que os promotores federais souberam, Gamble estava usando a arma para intimidar seus próprios familiares, com alguma frequência.

Nesse caso, havia um certo interesse da União. Gamble foi condenado, em 2015, a 12 meses de prisão na justiça estadual e 46 meses de prisão na justiça federal. Houvesse sido condenado apenas pela justiça estadual, já seria um homem livre. Mas, pela condenação federal, vai permanecer atrás das grades até 2020 – a não ser que a Suprema Corte acabe com a exceção à dupla punição.

Há casos também em que a justiça federal e a justiça estadual processaram o mesmo réu, pelo mesmo crime, para “consertar”, digamos, uma decisão “inaceitável”. Exemplos:

Em 1964, o estado de Mississipi condenou Edgar Ray Killen pelo assassinato de três militantes dos direitos civis, depois que as acusações contra ele não foram bem-sucedidas na justiça federal.

Em 1991, a justiça federal condenou dois policiais de Los Angeles, por espancarem um homem negro na rua, depois que a justiça estadual os livrou de condenação – e isso causou uma indignação nacional.

Em 2015, a justiça federal condenou um policial que matou um homem negro desarmado, depois que o júri, em um julgamento estadual, não chegou a um veredicto unânime (o que é requerido nos EUA).

Há casos em que a dupla punição é “justificada” com base em diferenças no peso das leis estaduais e federais. Por exemplo, na Califórnia, a posse de 220 libras (99,79 quilogramas) de maconha é um delito de pequena monta; na esfera federal, é um crime.

Da mesma forma, o que os promotores estaduais denunciam como um simples assalto, os promotores federais podem incluir na denúncia acusações de crime organizado.

No entanto, o princípio da vedação da dupla punição pelo mesmo fato prevalece dentro de cada jurisdição. Como é de praxe, a justiça estadual não pode processar novamente um réu que foi absolvido em um fórum do estado. E a justiça federal não pode processar um réu que foi absolvido em um tribunal federal.

Ilações
Na audiência, os ministros questionaram os advogados das duas partes por cerca de uma hora (o que é raro) e manifestaram opiniões diferentes sobre o caso. Não foi possível determinar uma tendência mais clara da decisão, que só será tomada em junho de 2019.

Mas a favor da preservação das jurisprudências, houve um pronunciamento que se destacou, o da ministra Elena Kagan: “Com base em uma espécie de doutrina da humildade, devemos resistir à tentação de reverter precedentes de 170 anos, só porque pensamos que podemos fazer melhor”.

No entanto, há interesses maiores do que fazer melhor ou pior. Se a decisão reverter as jurisprudências irá satisfazer significativamente o presidente Donald Trump – e, por isso, o caso ganhou notoriedade nacional.

O presidente já indicou que poderá perdoar Paul Manafort, que presidiu sua campanha eleitoral em 2016, e outros membros de sua equipe, que estão sendo denunciados pelo promotor especial Robert Mueller. As acusações têm relação às investigações de um possível conluio do comitê de campanha de Trump com a Rússia, para ajudá-lo a ganhar as eleições, e a outros crimes que se intersectam nas esferas federais e estaduais.

No entanto, o presidente só pode perdoar crimes federais – ou que forem julgados na justiça federal. Assim, se Manafort e outros forem condenados na justiça federal e, posteriormente, perdoados por Trump, os promotores do estado de Nova York poderão processá-los criminalmente na justiça estadual. E, enfim, eles irão para a cadeia, do mesmo jeito.

Há uma presunção de que Robert Mueller não está denunciando Manafort e os demais assessores de Trump por todos os crimes que possa ter apurado, para deixar espaço para os promotores estaduais os denunciarem na justiça estadual, caso a expectativa de perdão presidencial se confirme.

Os promotores de Nova York poderão denunciá-los por sonegação fiscal, lavagem de dinheiro (cada transação é um crime separado), fraude em operação imobiliárias, falsas declarações em formulários estaduais, entre outros crimes.

A ilação mais preponderante é a de que a reversão das jurisprudências anteriores dará muito poder ao presidente, principalmente no que se refere a sua capacidade de conceder perdão a quem queira. Assim, todos os esforços dos promotores federais para investigar crimes e punir criminosos iram por água abaixo, com apenas uma penada do presidente.

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