Opinião

Suspensão de direitos em execuções fiscais é inconstitucional

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6 de dezembro de 2018, 6h23

Após o julgamento do RHC 97.876/SP pelo Superior Tribunal de Justiça, vários veículos de comunicação noticiaram que o órgão do Poder Judiciário teria autorizado a restrição de direitos do devedor em processo de execução judicial. Com isso, as Fazendas Públicas federais, estaduais e municipais, em algumas oportunidades passaram a requerer tais restrições também nas execuções fiscais, com suposto fundamento no art. 139, IV, do Código de Processo Civil.

Com a publicação do acórdão proferido pelo STJ no RHC 97.876/SP, no dia 19/08/2018, foi possível averiguar mais detalhadamente os fundamentos utilizados pelo ministro Relator Luis Felipe Salomão na redação do voto que foi acompanhado pelos demais julgadores à unanimidade. No referido acórdão há que se verificar que o recurso em habeas corpus não foi conhecido em relação ao pleito relacionado a suspensão da CNH do recorrente, motivo pelo qual a decisão de primeira instância nesse ponto não foi reformada. Já em relação à apreensão do passaporte do recorrente, o STJ conheceu do recurso de deu-lhe provimento autorizando a devolução do documento de viagem ao seu titular.

Diante disso, o objetivo desse artigo é analisar a legitimidade da Fazenda Pública para requerer restrição de direitos dos executados, em sede de execução fiscal, já que tais pedidos têm sido cada vez mais recorrentes após o julgamento do RHC 97.876/SP.

O artigo 139, IV do CPC e sua equivocada interpretação pela Fazenda Pública
De acordo com o artigo 139, IV do Código de Processo Civil, “o juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”.

O dispositivo é bastante subjetivo em relação ao que universo de eventos que poderiam ser considerados “medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento da ordem judicial”, a serem determinados pelo juiz. Como resultado da subjetividade do dispositivo, os procuradores da Fazenda Pública têm sido criativos nos pedidos endereçados ao juízo da execução fiscal requerendo além da suspensão de documentos, o cancelamento de cartões de crédito.

Não obstante o Superior Tribunal de Justiça tenha pacificado o entendimento de que a suspensão da CNH não representa ato atentatório contra a liberdade de locomoção do cidadão (direito fundamental protegido pelo artigo 5º, LXVIII, da Constituição Federal), ao meu ver esse entendimento não aborda a questão sob o ponto de vista do sobreprincípio da liberdade.

A habilitação para conduzir veículo possui requisitos técnicos previstos em lei que legitimam a autorização pelo Poder Público àquele que pretenda exercer essa liberdade. É uma forma de liberdade muito importante principalmente tendo em vista o modelo de transporte escolhido e determinado pelo Estado brasileiro por décadas.

De certo, configura sim violação ao direito de locomoção do cidadão quando ele se vê impedido de exercer essa liberdade por contrair dívida civil. A violação é configurada pelo fato de o cidadão cumprir todos os requisitos legais para a habilitação e, ainda assim, não poder exercer essa liberdade. Afronta inclusive o princípio da igualdade na medida em que o Poder Judiciário impõe requisito extra a um determinado cidadão para manter sua condição de habilitado para conduzir veículo automotor, qual seja, manter-se adimplente com suas dívidas civis.

Sobre a apreensão do passaporte do executado, cabe citar trecho do voto do ministro Luis Felipe Salomão no julgamento do RHC 97.876/SP:

“Assim, é possível afirmar que, se o art. 139, IV, da lei processual, que estendeu a positivação da atipicidade dos atos executivos, teve como escopo a efetividade, é indubitável também que devem ser prestigiadas as interpretações constitucionalmente possíveis.

Vale dizer, pois, que a adoção de medidas de incursão na esfera de direitos do executado, notadamente direitos fundamentais, carecerá de legitimidade e configurar-se-á coação reprovável, sempre que vazia de respaldo constitucional ou previsão legal e na medida em que não se justificar em defesa de outro direito fundamental.

É que objetivos pragmáticos, por mais legítimos que sejam, tal qual a busca pela efetividade, não podem atropelar o devido processo constitucional e, menos ainda, desconsiderados direitos e liberdades previstos na Carta Maior. (…)

Com efeito, não bastasse a consonância com os preceitos de ordem constitucional, o que os doutrinadores têm reconhecido é que, diante da inumerável aplicação do art. 139, IV, a verificação da proporcionalidade da medida se impõe, segundo a “sub-máxima” da adequação e da necessidade. Não sendo a medida adequada e necessária, ainda que sob o escudo da busca pela efetivação das decisões judiciais, serão contrárias à ordem jurídica. (…)

No caso dos autos, observada a máxima vênia, quanto à suspensão do passaporte do executado/paciente, tenho por necessária a concessão da ordem, com determinação de restituição do documento a seu titular, por considerar a medida coercitiva ilegal e arbitrária, uma vez que restringiu o direito fundamental de ir e vir de forma desproporcional e não razoável”.

Com efeito, o artigo 139, IV do CPC não surgiu no ordenamento jurídico para se sobrepor a direitos fundamentais do cidadão protegidos por cláusulas pétreas no texto constitucional.

No caso concreto analisado pelo STJ, a violação foi agravada inclusive pela ausência de fundamentação na decisão da magistrada de primeira instância que autorizou a suspensão de direitos do executado. Essa é uma questão também muito relevante na aplicação do dispositivo legal. As referidas medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias devem ser sobretudo necessárias, fundamentadas em razões fáticas e jurídicas específicas coordenadas no sentido de colaborar com o resultado útil do processo de execução.

Não cabe à Fazenda Pública simplesmente requerer a suspensão de direitos do executado como forma puni-lo, sancioná-lo, constrangê-lo pelo simples fato de figurar o polo passivo da execução fiscal. A dívida ativa da Fazenda Pública nada mais é do que uma dívida civil com rito de execução previsto na Lei 6.830/1980 com aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (artigo 1º da Lei 6.830/1980). Esse é o caminho jurídico e constitucionalmente adequado da execução fiscal.

As medidas suspensivas de direitos do cidadão podem ser comparadas às sanções políticas comumente praticadas pelas Fazendas Públicas que se negam a conceder alvarás de funcionamento, declarações, certidões, registros, despachos, quando a pessoa física ou jurídica tem dívida em exigibilidade no determinado órgão público. Essas sanções políticas têm sido combatidas pelo Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade dos atos promovidos por agentes públicos:

SÚMULA 70: É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.

SÚMULA 323: É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.

SÚMULA 547: Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.

Assim como não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte continue exercendo suas atividades econômicas por ser devedor de tributo, com maior razão não é lícito à Fazenda Pública restringir direitos fundamentais do cidadão pelo mesmo motivo.

A criatividade da Fazenda Pública na requisição de medidas excepcionais não pode de forma alguma alcançar direitos fundamentais do cidadão, sob pena de grave inconstitucionalidade. E ainda que estejam diante de casos excepcionais em que as medidas previstas no artigo 139, IV do CPC sejam necessárias, há que se ter a motivação do ato bem fundamentada demonstrando-se como a medida colaboraria para a efetividade do processo de execução.

Conclusão
Diante de todo o exposto, verifica-se que há clara ilegalidade e inconstitucionalidade nos pedidos formulados pelas Fazendas Públicas para a suspensão de direitos fundamentais do contribuinte devedor.

Sob o pretexto de aplicar o artigo 139, IV do CPC, as Fazendas Públicas têm requerido aos juízes da execução fiscal a prática da sanção política na cobrança da dívida ativa, em desrespeito ao rito previsto na Lei 6.830/1980 e às sumulas do STF. Devem os magistrados manter-se atentos a esse tipo de requerimento nas execuções fiscais sob pena de cometerem atos atentatórios contra a liberdade e a dignidade da pessoa humana no curso de execuções fiscais.

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