Interesse Público

Contratos públicos e a Autoridade Nacional Anticorrupção: um olhar sobre a Itália

Autor

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

6 de dezembro de 2018, 8h01

Spacca
Caricatura Cristiana Fortini [Spacca]Oscilações na abordagem da corrupção
A despeito de não ser possível fixar um conceito universal de corrupção, porque os países a definirão a partir de aspectos culturais e históricos que influenciarão opções políticas, o costumeiro repúdio está centrado na corrupção “clássica’”, relacionada à promessa ou oferecimento/pagamento de vantagem indevida a agente público.

Ainda assim, não há identidade de abordagem e oscilações existem, por vezes, dentro do mesmo país. No Brasil, por exemplo, os verbos prometer, oferecer constam do artigo 333 do Código Penal Brasileiro, que define corrupção ativa, enquanto a Lei anticorrupção, Lei 12.846/13, em seu artigo 5º, inciso I, inclui o verbo dar, ao catalogar atos reprováveis que poderão levar à punição de pessoas jurídicas.

O tipo de conduta que se espera realizada pelo agente público também pode ser tratado com algum grau de variação. Na Itália, apenas para indicar um país que assim prevê, há uma distinção entre corrupção para a pratica de ato lícito (corruzione per l’esercizio della funzione) e corrupção para a prática de ato ilícito (corruzione per un atto contrario ai doveri d’ufficio).

O US Code, importante fonte normativa no que toca à corrupção doméstica, nos Estados Unidos, trata de forma desigual o pagamento de vantagem indevida a titulo de “por favor”, quando se falaria em bribery, ou de “obrigado”, quando se falaria em gratuity.[1] Ambas são repudiadas pelo referido diploma legal, mas não com a mesma severidade. A reação contra o pagamento da primeira “bribery” é mais severa quando comparada à segunda.

Por sua vez, o FCPA, Foreign Corrupt Practice Act, igualmente norte-americano, focado na corrupção internacional, não prevê distinção expressa entre a vantagem indevida destinada a quem já realizou o ato desejado ou se comprometeu a fazê-lo no futuro.

Interessante observar, ainda no critério comparativo, que o FCPA exige a demonstração do intuito corrompedor para que se possa afirmar a prática de ato de corrupção destinado a obter ou a preservar contratos[2], o que não é condição para a configuração de ilicitude no Brasil, nos termos da Lei 12.846/13, lei anticorrupção, e no Reino Unido, nos moldes do UK Bribery Act.

Em outros países, se optou por inserir na lei anticorrupção a preocupação com aspectos contábeis, a partir de uma premissa de que a ausência de registros e/ou a sua imprecisão são sinais de que a entidade privada objetivava esconder o gasto efetuado, porque conectado à um comportamento corrupto . É o caso do FCPA.

No Brasil, o elenco de atos corruptos constante da lei anticorrupção não alcança o registro contábil inadequado, embora, no âmbito do processo de responsabilização administrativa ou diante de ação judicial, falhas possam contribuir para sinalizar a ocorrência de corrupção.

Ainda no âmbito comparativo, identifica-se a intolerância do UK Bribery Act quanto ao que se chama “facilitating payments”, pagamentos cujo propósito é acelerar a pratica de atos de rotina, que, entretanto, são expressamente admitidos pelo FCPA.

A Lei 12.846/13, nossa lei anticorrupção, na toada do diploma do Reino Unido, também não faz distinção que possa traduzir consentimento com relação a essa forma de pagamento.

Em alguns países, se combate também a chamada corrupção privada ou comercial. É o caso do UK Bribery Act, editado em 2010.

Na Itália, igualmente se aborda a corrupção privada.

O Código Civil disciplina no artigo 2.635 a “nova” espécie de corrupção, que se configura quando os administradores, os diretores gerais, além de outros, solicitam ou recebem para si ou para outrem, dinheiro ou outra utilidade, para realizar um ato ou omitir-se violando os deveres inerentes ao seu ofício ou sua obrigação de fidelidade.

O alargamento do conceito de corrupção, para alcançar a “propina privada”, tem sido considerado um avanço importante, e estimula debates nos Estados Unidos.[3]

A conclusão possível é de que oscilam os conceitos, oscilam as abordagens, assim como são plurais as ferramentas utilizadas para a prevenção e a repressão do fenômeno da corrupção.

Autoridade Nacional Anticorrupção Italiana
Na Itália, os contratos que envolvem a administração pública são considerados privados[4], fator que atrai a competência do Poder Judiciário para dirimir conflitos daí resultantes, afastando a atuação, em regra, dos órgãos do contencioso administrativo. A esses caberá enfrentar problemas relacionados à licitação, regrada pelo direito público.

O cidadão não detém legitimidade processual para discutir em juízo, ainda que sob o argumento de lesão aos cofres públicos ou à moralidade, irregularidades conectadas ao certame ou à execução dos contratos. A impugnação de edital e/ou seus anexos pelo cidadão também não está prevista legalmente.

Interessante ainda considerar que a Corte di Conti italiana também não dispõe de autoridade para ordenar a suspensão de procedimentos licitatórios, atuando posteriormente no controle dos gastos públicos.

Os mecanismos de controle das contratações públicas são mais reduzidos, se compararmos os dados acima com o que são previstos na ordem jurídica brasileira.

Por outro lado, o fato de a Itália integrar a União Europeia lhe impõe a observância regras comunitárias em matéria de contratação pública, substancialmente imbuídas, como se infere dos considerandos da Diretiva 24/2014, em resguardar a transparência, igualdade de tratamento, não discriminação, livre circulação de mercadorias, liberdade de estabelecimento e livre prestação de serviços, alicerces centrais do Tratado sobre funcionamento da União Europeia. [5][6]

A disciplina dos contratos públicos na Itália exige, pois, atenção para a conjugação das normas comunitárias com os condicionamentos internos que não se resumem ao Código de Contratos Públicos, instituído por meio do Decreto Legislativo 50/16, mas também, e sem desconsiderar outras fontes normativas, às regras expedidas pela Autorità Nazionale Anticorruzione (Anac).

À Anac, criada em 2014, foram conferidas diversas e significativas prerrogativas em matéria de controle e aperfeiçoamento do ambiente contratual da administração pública.

O papel central desempenhado pela Anac na regulação e aprimoramento das contratações públicas foi enfatizado dois anos depois pelo Código dos Contratos Públicos, que faz 86 referências à entidade, ao longo dos seus 200 artigos.

Para além de afirmar sua capacidade de vigilância e regulação sobre os contratos (artigo 213), o Código reconhece à Anac poderes para interferir no sistema de qualificação das empresas, nos requisitos e na apuração da capacidade dos participantes na licitação, na qualificação dos órgãos que promovem as licitações. Interessante anotar que a Anac desempenha ainda papel na formação dos agentes públicos , reforçando a preocupação com a difusão da cultura da legalidade e a construção do “spazio ético”.

A Anac detém poderes sancionatórios de cunho pecuniário, administrativo, e de interdição, além de exercer capacidade paracontenziosa o precontenziosa (artigo 211) na hipótese de uma das envolvidas na discussão demandar o pronunciamento da autoridade e ambas aceitarem, desde o início, recebê-lo como vinculante.

Entre as prerrogativas, destaca-se a capacidade de expedir [7][8]diretrizes (linee guide, expressão constante das normas italianas) e de confeccionar modelos de contratos e editais.

As linee guida são destinadas a auxiliar os órgãos licitantes e melhorar a qualidade do procedimento, e contribuem (assim se imagina) para prevenir a ocorrência de desvios comportamentais.[9]

De perfil mais detalhista, as linee guida conduzem o agir administrativo ao longo do ciclo da contratação pública, visando a criação de um circuito colaborativo virtuoso em coerência com valores da Constituição Italiana, residentes, sobretudo, no artigo 97.

O soft regulation, de que é exemplo a linee guida, reflete a crise dos instrumentos legislativos tradicionais para normatizar setores específicos e a tendência de se atribuir competência regulamentar a autoridades independentes.[10]

A prerrogativa não é alvo apenas de aplausos. Se por um lado, a redução de espaços de discricionariedade pode mitigar o risco de corrupção, a deslegalização, e, assim, a retração do espaço democrático tradicional, provoca discussões.

A constitucionalidade ou não da competência normativa, o caráter vinculante ou não dos comandos, e o esvaziamento da competência decisória dos órgãos licitantes também estão na agenda dos debates[11] .

De toda sorte, é interessante observar a preocupação em guiar o agente público, medida mais salutar do que a via da repressão e da responsabilização.


[1] Destaca-se a diferença entre bribery e gratuity à luz do 18 U.S.C. § 201.

[2] Nos termos do FCPA “to obtain or retaining business

[3] Saglibene, Dominic. The U.K Bribery Act : a benchmark for anti-corruption reform in the United States. Transnational Law & contemporary Problems, Thompson Reuters

[4] A denominação sugere paridade de forças, o que não existe . À administração são asseguradas prerrogativas, como a possibilidade de rescindir unilateralmente o contrato.

[5] Historicamente, a preocupação da União Europeia está concentrada no processo de seleção dos contratantes, e não na fase da execução. Mais recentemente, com a Diretiva 24/2014, percebe-se um olhar também voltado à fase de execução contratual.

[6] As regras comunitárias, todavia, não alcançam a totalidade das contratações levadas a efeito pelos Estados Membros. Há um piso (soglia, em italiano), reativo ao valor estimado da contratação, que definirá a incidência ou não das citadas normas.

[7] O surgimento da ANAC é um passo que remonta à criação de uma série de organismos vocacionados à garantia de transparência e de integridade na administração pública. Devem ser citados a Commissione indipendente per la valutazione, la trasparenza e l’integrità delle amministrazioni pubbliche (Civit) instituída em 2009, o surgimento da primeira “Autorità nazionale anticorruzione”, fruto da famosa Lei Severino de 2012, e a Autorità di vigilanza sui contratti pubblici (AVCP). A atual ANAC absorveu funções antes destinadas à essa ultima entidade, razão pela qual, em comparação à primeira Autoridade Nacional Anticorrupção, a atual ganhou maior importância.

[9] art, 36, comma 7. L'ANAC con proprie linee guida, da adottare entro novanta giorni dalla data di entrata in vigore del presente codice, stabilisce le modalità di dettaglio per supportare le stazioni appaltanti e migliorare la qualità delle procedure di cui al presente articolo, delle indagini di mercato, nonchè per la formazione e gestione degli elenchi degli operatori economici.

[11] MERANI, Brevi riflessioni generali sul nuovo codice dei contratti pubblici in www.lexitalia.it, 8 giugno 2016

Autores

  • Brave

    é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Tem pós-doutorado na Universidade George Washington (EUA). Professora visitante na Universidade de Pisa.

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