Segunda Leitura

Lei da desburocratização promete melhorar a vida dos brasileiros

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

2 de dezembro de 2018, 7h00

Spacca
Foi publicada a Lei 13.726, de 8/10/2018, que trata da desburocratização e simplificação dos atos administrativos do poder público. A meta é a necessidade imperiosa de facilitar a vida das pessoas e permitir que os inúmeros atos ligados aos serviços públicos se tornem mais fáceis.

O tema não é novo. Nossa origem latina tem na burocracia uma de suas características. Ao contrário dos anglo-saxões, nossa história esteve sempre permeada de exigências que dificultam a vida das pessoas, mas, ao mesmo tempo, dão emprego a milhares de servidores públicos. Estes, em um círculo vicioso, aumentam exigências formais como forma de valorizar suas funções.

O problema não é novo. Tem início em 1808, com a vinda de Dom João VI e a nobreza de Portugal para o Brasil. Era preciso dar trabalho e sustento a todos os que aqui vieram. Segundo Frederico Lustosa da Costa:

A instalação da corte ensejou a criação de uma série de organismos que existiam na antiga sede do Reino, alguns deles não tão necessários quanto outros. O governo arranjado de acordo com o Almanaque de Lisboa dava oportunidade de criar cargos e honrarias para tantos que haviam feito o sacrifício de acompanhar sua alteza real[1].

Aí o primeiro passo. Dois séculos depois, Monteiro Lobato expôs bem a situação na obra Caçadas de Pedrinho. Nela, fez referência a um rinoceronte, ao qual deu o nome de Quindim, encontrado no Sítio do Picapau Amarelo. Para caçar o bicho, criou-se o Departamento Nacional de Caça ao Rinoceronte, no Rio de Janeiro, capital da República. O problema depois é que ninguém poderia achá-lo, pois, caso contrário, todos os nomeados para os cargos públicos perderiam seus empregos…[2].

No ano de 1979, no governo Geisel, foi criado o Ministério da Desburocratização, sendo titular da pasta Hélio Beltrão. Era uma tentativa de simplificar as relações com o poder público. Foram revistas muitas exigências inúteis, porém o sistema burocrático sobreviveu. A pasta foi extinta em 1986.

Mas, afinal, quais os efeitos maléficos que a burocracia traz consigo? Com certeza, eles não se limitam aos incômodos do cidadão, que se vê, por exemplo, obrigado a perder precioso tempo na fila de um tabelionato para reconhecer a firma de um documento. Vai muito além disso.

Por exemplo, a burocracia interfere diretamente na economia. A significativa demora na criação de uma empresa, que pode variar de 45 a 60 dias, pode levar um empreendedor a optar pelo Paraguai, que promete inscrição mais rápida, vantagens tributárias e energia elétrica barata. Menos empregos por aqui.

Ainda. A corrupção, que nos últimos anos superou tudo o que se pudesse imaginar a respeito, dá, também, a sua colaboração para que as exigências burocráticas aumentem, encarecendo a vida da maioria da população, que cumpre seus deveres corretamente.

Outro detalhe. Em tempos de radical mudança de hábitos, onde tudo se resolve a partir de um telefone celular e todos se impacientam com a demora nas respostas no WhatsApp, o tempo se torna cada vez mais precioso e a sua perda cada vez mais odiada. Isso se aplica em dobro para as novas gerações, que apreciam o aqui e agora.

Pois bem, visando combater essa situação, a Lei da Desburocratização surge como um bálsamo. Nela, muito embora não escrito por razões óbvias, devemos imaginar um artigo que diga: presume-se a honestidade das pessoas, até prova em contrário.

Vejamos agora os dispositivos sobre a matéria.

Nos termos do artigo 3º, autenticação e reconhecimento de firma ficam dispensados se o agente administrativo reconhecer a autenticidade. Simples? Nem tanto. O problema não é legal, mas, sim, cultural. Se o servidor público, por hábito ou por medo, continuar a exigir tais formalidades, tudo continuará na mesma. Neste particular, o papel da chefia será essencial, mostrando como as dificuldades devem ser superadas e disseminando a ideia de que é preciso crer no próximo.

Outro item. As viagens de menores constituem um dos problemas recorrentes nos aeroportos. A cautela de evitar que pais em conflito subtraiam a criança, levando-a para longe, força exigências que, na maioria dos casos, são despropositadas. Agora, desde que os pais estejam presentes no embarque, está dispensada autorização com firma reconhecida. Assim, por exemplo, a criança poderá viajar com a avó.

Dispositivo de grande relevância é o que determina que, quando não for possível obter diretamente do órgão ou entidade responsável documento comprobatório de regularidade, os fatos poderão ser comprovados mediante declaração escrita e assinada pelo cidadão. Imagine-se que um advogado perdeu sua carteira funcional e esta lhe é exigida em audiência. Basta-lhe formalizar declaração em tal sentido e o problema estará resolvido. Claro que, se for falsa, responderá por crime de falsidade ideológica (CP, artigo 299) e sua atitude deverá ser analisada com rigor, para evitar que a tolerância aniquile a responsabilidade que se está dando ao particular.

No artigo 5º convocam-se os órgãos do poder público a criar grupos de trabalho para identificar, nas respectivas áreas, dispositivos legais ou regulamentares que prevejam exigências exageradas ou procedimentos desnecessários ou redundantes. Excelente. Mas serão criados na realidade? Já há algum caso? Pensou-se nisto no Poder Judiciário? Na Polícia Civil?

No artigo 6º afirma-se que a comunicação entre o poder público e o cidadão poderá ser feita por qualquer meio e mencionam-se alguns explicitamente. Muito embora esquecido o WhatsApp, que é agora o mais usado, isso não é problema. A expressão “por qualquer meio” alcança não só este como os que vierem a ser introduzidos.

Finalmente, o artigo 9º institui um Selo de Desburocratização e Simplificação, prevendo premiação aos que se destacarem. A providência vai ao encontro de uma tendência de incentivar práticas inovadoras e de reconhecer o esforço dos que procuram trabalhar melhor.

Ao fim e ao cabo, a Lei de Desburocratização é uma boa tentativa de aperfeiçoar os serviços administrativos no Brasil. Ela dará certo se houver empenho da administração pública, seja em que nível for, e se houver consciência e exigência da cidadania quanto ao seu cumprimento. Do contrário, será apenas mais uma iniciativa frustrada e continuaremos com as persistentes reclamações e ironias contra tudo, sem nos darmos conta de que somos parte deste fracasso. Avança, Brasil.


[1] COSTA, Frederico Lustosa. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/viewFile/6656/5240. Acesso em 28/11/2018.
[2] MONTEIRO LOBATO, José Bento. Caçadas de Pedrinho. Ed. Biblioteca Azul, eBook Kindle. Disponível no site Amazon.com.br, em: https://www.amazon.com.br/Ca%C3%A7adas-Pedrinho-Monteiro-Lobato/dp/8525060895?tag=kns00-20&ascsubtag=go_952006559_46722488109_301368439090_aud-519888259198:dsa-411653273249_c_29040257212. Acesso em 28/11/2018.

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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