Opinião

As confluências entre a nova Lindb e o marco regulatório da ciência e tecnologia

Autor

  • Lucas de Faria Rodrigues

    é procurador do Estado de São Paulo mestre e doutorando em Direito pela PUC-SP e chefe da Consultoria Jurídica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP).

1 de dezembro de 2018, 5h26

A ciência brasileira precisa de ajuda, pois há claramente instalada uma crise, sob diversos aspectos. Poderíamos, por exemplo, estar tratando da “fuga de cérebros”[1], do desemprego crescente entre jovens pesquisadores[2], ou ainda do subfinanciamento[3], mas o objetivo aqui é propor uma reflexão sobre a crise institucional, mais especificamente sob o viés do poder público e o aparato regulatório incidente sobre as compras públicas. Inovar no Brasil é difícil pelo simples desafio de superar as diversas e minuciosas regras incidentes no setor. Inovar no Brasil para gestores públicos não é apenas difícil, é também extremamente perigoso e desafiador, diante de modelos jurídicos inflexíveis e da insegurança jurídica instaurada muitas vezes por aqueles que detém poder de controle — o que torna essa tarefa um encargo para poucos e corajosos.

Porém, estamos diante de uma janela de oportunidade no que toca à consolidação de um novo olhar sobre os marcos jurídicos da ciência, tecnologia e inovação (CT&I), diante da recente edição de duas leis. De um lado as mudanças promovidas na Lei 10.973/2004, pela Lei 13.243/2016, dispondo sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica. De outro lado, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), reformulada pela Lei 13.655/2018. Leis editadas por motivos bastante distintos, mas que encontram um inquestionável ponto de convergência em matéria de CT&I: enquanto a primeira cria novos instrumentos jurídicos e consolida outros tantos, de forma absolutamente disruptiva; a segunda dá a necessária segurança ao gestor público para inovar e adotar o ferramental da primeira.

A relevância da CT&I no desenvolvimento nacional é algo bem documentado na literatura especializada, independentemente da linha teórica adotada. Celso Furtado, por exemplo, expoente do estruturalismo, já indicava que o subdesenvolvimento só é superado por meio da homogeneização social e da manutenção de um sistema de produção caracterizado pela eficiência e com alguma autonomia tecnológica[4], de modo que a ciência e a técnica são essenciais neste processo. Por certo, não de hoje, o “desenvolvimento” deixou de estar atrelado exclusivamente ao viés “econômico” e passou a pressupor, para ser integral, outras acepções, como a biológica, a política e a cultural[5] — e em todas elas a ciência terá um papel primordial para assegurar sua satisfação. Isso porque a ciência tem um inegável caráter instrumental e, portanto, deve ser condicionada ao atingimento de fins constitucionalmente delineados.

Não por outro motivo, trazendo para a seara jurídica, que Estados nacionais reconheceram a importância da ciência, por exemplo, no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (promulgado pelo Decreto 591/1992) e a Constituição Federal de 1988, de forma inaugural na história constitucional brasileira, dedicou um capítulo para o tema. A regulamentação infraconstitucional sobre CT&I no Brasil também não é nova, data de 2004, com a Lei 10.973.

Entretanto, impropriedades flagrantes e uma pressão para renovação da norma originaram o Projeto de Lei 2.177/2011. Durante sua tramitação, uma Comissão Especial formada no âmbito da Câmara dos Deputados verificou ser essencial, antes da aprovação da mudança legal, uma série de alterações constitucionais, culminando na proposição da PEC 290/2013, mais tarde aprovada e transformada na Emenda Constitucional 85/2015. Além de permitir a correta organização e sistematização da legislação infraconstitucional, a partir de uma readequação do regime de competências, a emenda trouxe para o corpo da carta uma série de modificações, inclusive com a incorporação de instrumentos “pouco usuais”, como o compartilhamento de recursos humanos e capacidade instalada do poder público com entidades públicas e privadas, além de outros pontos como o reconhecimento do papel do Estado no estímulo da formação e fortalecimento da inovação nas empresas e a previsão de se organizar e sistematizar o Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI). Essas mudanças abriram espaço para a aprovação do Projeto de Lei 2.177/2011, transformado na Lei 13.243/2016, que promoveu uma ampla reformulação da antiga Lei 10.973/2004.

O número de disposições absolutamente inovadoras nesta lei, sobretudo se pensarmos no clássico (e para muitos superado[6]) regime jurídico de direito administrativo, é incontável e vai desde, por exemplo, o reconhecimento do relevante papel das fundações de apoio no processo de desenvolvimento da CT&I no Brasil, até modificações no sistema de compras públicas — como a ampliação das hipóteses de dispensa de licitação, a mitigação da aplicação do regime da Lei 8.666/1993, a consolidação do modelo de compras de públicas de P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) previsto no artigo 20 da Lei 10.973/2004. Especificamente sobre o artigo 20, trata-se de umas das formas de intervenção do Estado em matéria de CT&I: demanda-se um produto, serviço ou processo inovador, a partir da contratação de entidades sem fins lucrativos, empresas ou instituições científicas e tecnológicas, permitindo ao ente público contratante atuar diretamente no desenvolvimento da política tecnológica nacional.

Com efeito, a necessidade de flexibilização das normas de compras públicas vem ao encontro de algumas evidências claras no processo da produção científica nacional. Grande parte da produção de CT&I no Brasil advém de uma interação direta ou indireta com o poder público, seja por meio das universidades, dos institutos públicos de pesquisa ou mesmo da própria administração pública, quando efetiva políticas públicas — tanto pelo lado da oferta como pelo lado da demanda. Entidades públicas compram e contratam, sejam insumos e materiais para pesquisa, sejam obras, sejam produtos e serviços inovadores.

Um grande dilema é o fato de o diploma clássico de compras públicas, a Lei 8.666/1993, não atender as especificidades de uma área tão peculiar como a da CT&I, pois o risco e a incerteza, elementos intrínsecos às pesquisas, são contrários aos mecanismos pouco flexíveis desta norma geral[7]. Como alguns pesquisadores já têm afirmado, “o regime de contratação estipulado pela Lei nº 8.666/1993 é incompatível com o processo (por natureza) interativo da inovação tecnológica que se baseia nas políticas de compras públicas para inovação”, sendo “incapaz de suportar os inatos processos retroativos ou loops tecnológicos da inovação”[8]. Dentre as maiores dificuldades está a elaboração do projeto básico, pois muitas variáveis serão identificadas ao longo da execução, ou mesmo alteradas a depender do avanço do desenvolvimento da pesquisa; as restrições a que autores de projetos participem de futuras contratações; não incorporação de riscos de forma adequada nos contratos; mecanismos engessados de alteração contratual, dentre outros[9].

Não por outra razão o legislador criou hipóteses específicas de dispensa de licitação e afastamento daquele regime jurídico geral de contratação, seguindo um movimento maior de perda de protagonismo da Lei 8.666/1993[10]. Assim, é dispensável a licitação “na contratação realizada por Instituição Científica e Tecnológica – ICT ou por agência de fomento para a transferência de tecnologia e para o licenciamento de direito de uso ou de exploração de criação protegida” (artigo 24, inciso XXV); para a aquisição ou contratação de produto para pesquisa e desenvolvimento, observados alguns parâmetros de valores (artigo 24, inciso XXI); e, com especial destaque, “nas contratações visando ao cumprimento do disposto nos arts. 3º, 4º, 5º e 20 da Lei no 10.973, de 2 de dezembro de 2004” (artigo 24, inciso XXXI), fazendo referência expressa, neste último caso, aos princípios gerais de contratação constantes do marco regulatório da CT&I — o que claramente “empurra” a Lei 8.666/1993 a uma condição acessória. Daí que devemos buscar descobrir o regime jurídico da CT&I, peculiar e cheio de nuances, sobre o qual uma visão simplista tenderia à incompreensão ou mesmo à ruína de suas estruturas jurídicas — muitas delas absolutamente inovadoras.

Se por um lado todas as mudanças tratadas anteriormente foram uma resposta à inadequação da regulamentação da CT&I, por outro elas sozinhas não resolvem o problema. Há claramente formada na “cultura” da administração uma noção de que os órgãos de controle inviabilizam diversas ações voltadas a implementar a política de CT&I, a partir de uma pressão exercida sobre pesquisadores. Não pretendemos avançar muito na discussão, não mais do que uma mera “percepção”. Porém, para fazermos esta afirmação, tomamos como base, por exemplo, as audiências públicas que debatiam o Projeto de Lei 2.177/2011, reproduzidas no relatório da Comissão Especial destinada a apreciá-lo, em que se apontava, em mais de uma fala, a atuação de órgãos integrantes daquilo que os expositores chamavam de “Sistema U” (CGU, AGU e TCU)[11]. Veja-se também o recente evento Govtech 2018, promovido pelo BrazilLAB, no qual um dos palestrantes apontou o receio de se aplicar a autorização expressa de dispensa de licitação prevista para as encomendas tecnológicas, por não se saber a posição do TCU e diante do risco representado pelo Sistema U ao gestor[12]. Por de trás de todas estas constatações há um elemento comum: o medo. Os administradores atuam amarrados, receosos por adotar eventuais práticas e modelos inovadores, se restringindo a aplicar velhas fórmulas já testadas e inequivocamente ineficazes em alguns campos. Porém, com medo não se faz inovação — seja a inovação institucional, ou aquela vinculada à CT&I.

Nesse horizonte obscuro, simplesmente ter um novo conjunto de instrumentos que foge do padrão usualmente adotado pelos órgãos de controle (e nova lei de CT&I) talvez não fosse suficiente para encorajar posturas inovadoras da administração. Daí que a nova Lindb — uma lei voltada essencialmente à segurança jurídica — traz balizas gerais que encontram um profícuo campo de aplicação junto à CT&I, com os instrumentos um tanto quanto heterodoxos previstos na Lei no 10.973/2004.

Nesse quadro, como a administração pública é um dos maiores (senão o maior) agentes concretizadores de normas jurídicas, vale dizer, aquele que mais interpreta normas diante do seu aparato burocrático, abrangência e amplo espectro de competências[13], a Lindb reforça e dá mais relevância à leitura efetuada pelo gestor público. Nesse sentido, por exemplo, cite-se o artigo 22 e a prescrição de que “na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”, ou ainda o artigo 24, prevendo que “a revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas”. A nova Lindb, ao dar maior segurança para o gestor, definitivamente não se volta àquele imbuído de má-fé, ou que deliberadamente desvia e se enriquece ilicitamente; está destinada a salvaguardar aquele que, disposto a inovar, atua dentro de determinados parâmetros, somente respondendo “pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro” (artigo 28 da Lindb).

É a oportunidade efetiva de se reafirmar a dupla relação do Direito com a inovação, como já afirmava Adalberto Pasqualotto: regula as atividades de CT&I de um lado, mas também deve ser objeto de inovação[14].


[1] Cf. matéria publicada no site BBC: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-40504128 (acesso em 5/9/2018).
[2] Cf. matéria publicada no site BBC: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44696697 (acesso em 5/9/2018).
[3] Cf. matéria publicada no site da UFRGS: http://www.ufrgs.br/secom/ciencia/subfinanciamento-da-ciencia-ameaca-biodiversidade-brasileira/ (acesso em 5/9/2018).
[4] Cf. ALBUQUERQUE, Eduardo da Motta. Celso Furtado, a polaridade modernização-marginalização e uma agenda para a construção dos sistemas de inovação e de bem-estar social. In SABOIA, João; CARVALHO, Fernando J. Cardim. Celso Furtado e o Século XXI. Barueri, SP: Manole, 2007, p. 192.
[5] Cf. BUNGE, Mário. Ciência e Desenvolvimento. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1980.
[6] Cf. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
[7] Cf. RAUEN, André Tortato. Racionalidade e Primeiros Resultados das Políticas de Inovação que Atuam pelo Lado da Demanda no Brasil. In: RAUEN, André Tortato (org.). Políticas de Inovação pelo Lado da Demanda no Brasil. Brasília: Ipea, 2017, p. 35.
[8] Trechos citados extraídos PELLEGRINI, Fernando; CAMPOS, André Sica de; CHAGAS JR., Milton de Freitas; FURTADO, André. “De Alfinete a Foguete”: A Lei nº 8.666 como Arcabouço Jurídico no Programa China-Brazil Earth Resources Satellite (CBERS) – Um Estudo de Caso do Fornecimento da Câmera Multi Expectral Regular (MUX) pela Opto Eletrônica (OPTO). In: RAUEN, André Tortato (org.). Políticas de Inovação pelo Lado da Demanda no Brasil. Brasília: Ipea, 2017, págs. 298 e 309, respectivamente.
[9] Estes exemplos foram extraídos do trabalho de Fernando Pellegrini, André Sica de Campo, Milton de Freitas Chagas JR e André Furtado, citado anteriormente.
[10] Cf. ROSILHO, André Janjácomo. As licitações segundo a Lei nº 8.666: um jogo de dados viciados. In: Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 2, n. 2, set. 2012/fev. 2013. Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/PDI0006.aspx?pdiCntd=86113>.
[11] Informação extraída do relatório da Comissão Especial destinada a apreciar o Projeto de Lei 2.177/2011, publicado no Diário da Câmara dos Deputados, do dia 9 de maio de 2014, pags. 841 e 842.
[12] Fala de Thiago Camargo, representante do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=gPFPFPFjY6I – a partir de 5:55:45 (acesso em 05.09.2018). Trata-se de interpretação sobre a fala, razão pela qual recomendamos o trecho indicado.
[13] Esta leitura foi extraída do trabalho de PALMA, Juliana Bonacorsi de. A Proposta de Lei da Segurança Jurídica na Gestão e do Controle Públicos e as Pesquisas Acadêmicas. Disponível em http://www.sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2018/04/PALMA-Juliana-A-proposta-de-lei-da-seguran%C3%A7a-jur%C3%ADdica.pdf (acesso em 8/9/2018).
[14] Cf. PASQUALOTTO, Adalberto. A Dupla Face da Inovação no Direito: a regulamentação do novo e a capacidade de se reinventar. In: SAAVEDRA, Giovani Agostini; LUPION, Ricardo (org.). Direitos Fundamentais: Direito Privado e Inovação. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2012.

Autores

  • é procurador do estado de São Paulo. Graduado, mestre e doutorando em Direito pela PUC-SP e chefe da Consultoria Jurídica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP).

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