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Hugo Leal: A proteção do contribuinte contra as reviravoltas do Carf

31 de agosto de 2018, 6h17

Por Hugo Barreto Sodré Leal

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A estabilidade da jurisprudência é fundamental para a segurança jurídica. No âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), entretanto, tem se tornado cada vez mais comum a alteração de entendimentos jurisprudenciais consolidados, invariavelmente em prejuízo dos contribuintes e com efeitos retroativos a situações já ocorridas. Desta forma, o contribuinte que orientou os seus negócios, tomou decisões e calculou os custos e riscos fiscais de suas atividades tendo em vista a jurisprudência majoritária do tribunal sobre determinado assunto é frequentemente surpreendido, após o fato consumado, pela alteração na interpretação dominante, com a redefinição dos efeitos tributários atribuídos aos negócios realizados, além da imposição de multa e juros.

Essas reviravoltas jurisprudenciais comprometem a segurança jurídica, quebrando a expectativa legítima dos contribuintes em relação à definição do sentido das normas legais e provocando a própria perda da credibilidade do tribunal administrativo. Embora a interpretação do Direito possa ser modificada, os tribunais têm o dever de uniformizar a sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente (CPC, artigo 926). Desta forma, a superação da jurisprudência anterior deve ser plenamente fundamentada, não se justificando em razão de pressões arrecadatórias, conjunturas políticas ou alterações na composição dos membros do tribunal. De todo modo, ocorrendo o abandono da jurisprudência anterior, é fundamental que se proteja a confiança e a boa-fé dos contribuintes que pautaram a sua conduta em conformidade com a posição superada.

Nos tribunais judiciais superiores, a proteção da boa-fé do administrado pode ser assegurada, por exemplo, através da modulação dos efeitos pretéritos de novos precedentes que alterem a jurisprudência anterior. No âmbito do Carf, entretanto, as sucessivas alterações da jurisprudência dominante sempre produziram efeitos retroativos, sem que houvesse qualquer mecanismo de proteção do contribuinte.

Neste contexto, surge como importante inovação o artigo 24 da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (Lindb), introduzido pela Lei 13.655, de 25/4/2018, segundo o qual as decisões sobre a validade de determinado ato ou contrato administrativo devem levar em consideração “as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança, posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas”. O parágrafo único do artigo 24 esclarece que no conceito de orientações gerais compreende-se a “jurisprudência judicial ou administrativa majoritária” sobre a matéria.

No âmbito do Carf, isso significa que a análise da validade do lançamento tributário (ato administrativo) deve ter em vista qual era a jurisprudência majoritária sobre a questão em discussão no processo administrativo, devendo o tribunal proteger o contribuinte que agiu de acordo com aquele entendimento, ainda que a jurisprudência posterior tenha adotado outra posição sobre a matéria.

Embora alguns conselheiros do Carf venham se rebelando contra a aplicabilidade do artigo 24 da Lindb aos processos administrativos fiscais, o caput do texto legal estabelece expressamente que a norma se aplica às “esferas administrativa, controladora ou judicial”, ou seja, a qualquer esfera de atuação da administração pública, o que, evidentemente, inclui o Carf. No parágrafo único, também há expressa menção à “jurisprudência judicial ou administrativa majoritária”. Não existe nada no dispositivo legal, portanto, muito menos qualquer argumento de ordem sistemática que justifique que se abra uma exceção à incidência do artigo 24 da Lindb em relação ao Carf, justamente onde é mais premente a necessidade de proteção da confiança do contribuinte no poder público. Em entrevista sobre o assunto, Floriano de Azevedo Marques, um dos redatores do anteprojeto do dispositivo legal, afirmou que “este entendimento é a coisa mais despropositada que eu já ouvi em relação à lei”.

Nesse sentido, destaca-se que Lindb é uma lei que estabelece critérios para interpretação, aplicação, vigência e eficácia das leis em geral, tanto no campo do Direito Privado como no campo do Direito Público. Trata-se de uma lei de introdução às outras leis, ou de um superdireito, estabelecendo preceitos gerais que devem ser observados na aplicação dessas leis. Em outras palavras, a Lindb estabelece o que se chama de normas de estrutura, que são normas que visam regular a aplicação das demais normas. Não há dúvida, portanto, acerca da aplicabilidade do artigo 24 da Lindb aos processos administrativos tributários, federais, estaduais ou municipais.

O objetivo do artigo 24 da Lindb é conferir maior segurança jurídica e previsibilidade na aplicação do Direito, protegendo o administrado contra mudanças posteriores na jurisprudência dominante na época dos fatos relevantes para o julgamento. Consagra-se, desta forma, o princípio da irretroatividade dos precedentes judiciais ou administrativos que levem à superação do entendimento jurisprudencial anterior sobre a mesma matéria, sempre que a mudança for prejudicial aos contribuintes.

Em última análise, o que está por trás do artigo 24 da Lindb é o próprio princípio constitucional da irretroatividade normativa (CF, artigo 5º, XXXVI), segundo o qual a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Isso porque quem tem competência para atribuir efetivo sentido ao texto legal são os tribunais e órgãos encarregados da sua aplicação. Desta forma, ao eleger determinado sentido como sendo a interpretação correta do texto legal, dentre os vários sentidos possíveis, pode-se dizer que os tribunais acabam criando o Direito. Assim, alterando-se a jurisprudência dominante sobre a interpretação do texto legal, é como se uma nova lei estivesse sendo criada, fazendo-se necessário, portanto, a proteção dos fatos consumados e dos atos jurídicos perfeitos praticados na vigência da jurisprudência superada.

Nota-se que o artigo 24 da Lindb requer apenas a existência de “jurisprudência majoritária” do tribunal, não exigindo a presença de precedentes vinculantes ou de jurisprudência sumulada, ou mesmo pacífica. Desta forma, a existência de precedentes reiterados do tribunal sobre determinado assunto, ainda que de forma meramente majoritária, já foi considerada suficiente para gerar uma expectativa legítima nos contribuintes, digna de proteção legal.

Destacamos que a “época” relevante para determinação da jurisprudência majoritária é aquela em que ocorreram os fatos objeto da fiscalização, e não o tempo em que o lançamento tributário foi realizado pelo agente fiscal. Isso se explica porque o lançamento se reporta sempre a um evento pretérito, ou seja, à data da ocorrência do “fato gerador”, regendo-se pela lei então em vigor (CTN, artigo 144). Além disso, se o objetivo do artigo 24 da Lindb é proteger a confiança do contribuinte, o que interessa é o tempo dos fatos fiscalizados, sendo totalmente irrelevante o momento da lavratura auto de infração.

Desta forma, ao julgar a validade do auto de infração, ou ao determinar os efeitos tributários das operações realizadas pelo contribuinte, o Carf tem o dever imutável de fazê-lo observando a jurisprudência majoritária na época dos fatos. Se a jurisprudência majoritária contemporânea aos fatos era favorável ao contribuinte, o lançamento deve ser cancelado, ainda que tenha ocorrido mudança superveniente na orientação do tribunal.

A diretriz estabelecida pela Lindb justifica-se, ainda, pois não faria sentido que o contribuinte fosse penalizado em razão da inevitável morosidade da autoridade fiscal em efetuar o lançamento tributário, e da demora do Carf para produzir um julgamento final. Explica-se: se o lançamento fosse realizado imediatamente após a ocorrência dos fatos fiscalizados e o processo fosse imediatamente levado a julgamento, o contribuinte sairia vencedor na disputa, já que na época dos fatos a jurisprudência majoritária era favorável à sua posição. Contudo, como na prática esse tempo ideal de duração do processo não pode ser atingido, deve-se assegurar ao contribuinte, pelo menos, que o adiamento não vai alterar o resultado final do julgamento. Essa diretriz prestigia, ainda, ao princípio da isonomia, assegurando que todos os contribuintes que praticaram determinada conduta na mesma época terão seus casos julgados de maneira uniforme, ainda que o tempo de duração de seus processos seja distinto, sendo alguns julgados antes da mudança na orientação jurisprudencial e outros depois.

É interessante notar que o princípio introduzido pelo artigo 24 da Lindb, embora dotado de maior especificidade e eficácia, já estava contido, em alguma medida, no artigo 144 do CTN, segundo o qual o lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente modificada e revogada. Caso se confira ao termo “lei” um sentido amplo, de modo a abranger também as normas complementares, os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas e as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa (CTN, artigo 100), chega-se a um resultado semelhante ao do artigo 24 da Lindb. Nesse sentido, o novo dispositivo legal não estabelece uma modificação radical na sistemática de aplicação do Direito aos casos concretos. No plano pragmático, entretanto, o artigo 24 da Lindb constitui inegável reforço da segurança jurídica, assegurando que o precedente que modificar a jurisprudência majoritária deverá produzir efeitos meramente prospectivos, não podendo retroagir para prejudicar os contribuintes.

Também é importante destacar que o artigo 24 da Lindb constitui norma de eficácia plena de aplicabilidade imediata, cujos destinatários, ou sujeitos passivos, no âmbito do Carf, são os próprios órgãos julgadores. Em outras palavras, trata-se de uma norma que impõe um dever ao próprio tribunal administrativo, a quem compete aplicar o artigo 24 da Lindb mesmo de ofício, independentemente de alegação das partes.

Nesse sentido, destaca-se que é dever elementar de qualquer tribunal conhecer a sua própria jurisprudência. Assim, é inadmissível que o tribunal alegue a sua própria ignorância acerca da “jurisprudência majoritária” sobre o tema em discussão como justificativa para afastar a aplicação do artigo 24 da Lindb, como já se viu ser dito por alguns conselheiros. Destaca-se que não se está diante da prova de um fato qualquer, cujo ônus caberia naturalmente às partes, mas de um fato que concerne à definição da própria jurisprudência do tribunal. Desta forma, o Carf não pode deixar de aplicar a lei sob o pretexto de que desconhece a sua própria jurisprudência, ou de que o contribuinte não teria feito essa prova através de meios estatísticos precisos. Tratando-se de norma de estrutura dirigida aos órgãos julgadores, o tribunal tem o dever de aplicar de ofício o artigo 24 da Lindb, cabendo-lhe, portanto, servir-se dos meios investigativos disponíveis para determinar a existência da jurisprudência majoritária sobre determinado assunto.

É igualmente falacioso, por fim, o argumento de que o artigo 24 da Lindb teria o efeito de impedir a evolução da jurisprudência administrativa. Como já se disse, o tribunal pode alterar o seu entendimento, caso existam razões suficientemente fortes para fundamentar essa mudança. Entretanto, a mudança de paradigma deve ser feita respeitando-se a jurisprudência majoritária anterior sobre o assunto e a confiança nela depositada pelos contribuintes. Desta maneira, o tribunal acaba por respeitar a si próprio e a merecer o respeito dos contribuintes. Em resumo, o objetivo do artigo 24 da Lindb é garantir a confiança no passado. Se o futuro é incerto, pelo menos o passado deve ser protegido.