Direito do Agronegócio

Créditos Tributários e a "compensação cruzada" no agronegócio

Autores

  • Fábio Pallaretti Calcini

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV-Direito SP e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

  • Omar Farah Freire

    é advogado tributarista especialista em Direito Tributário pela FGV DIREITO SP. Procurador do do Pará. Procurador atuante junto ao Tribunal Administrativo de Recursos Fazendários do Pará.

31 de agosto de 2018, 9h45

Spacca
caricatura Fábio Calcini [Spacca]A Lei 13.670/2018 trouxe diversas alterações na tributação, inclusive, com impactos para o setor do agronegócio.

Como sabemos, este setor, pela peculiaridade e extensão de sua cadeia produtiva, bem como vocação exportadora, possui um acumulo de créditos escriturais, mais especificamente, na esfera federal, PIS/Cofins, IPI, além de muitas vezes possuir ainda prejuízo ou saldo negativo.

Com isso, a compensação mediante utilização de tais créditos decorrentes da Constituição Federal (exemplo, não cumulatividade) e lei para extinção de tributos devidos é de fundamental importância para a sobrevivência de sua atividade.

Todavia, a recente Lei 13.670/2018 (artigo 6º), introduzindo o § 3º, IX, do artigo 74, da Lei 9.430/96, vedou expressamente a utilização de compensação, valendo-se de tais créditos, a fim de realizar o pagamento da estimativa mensal das pessoas jurídicas à título de IRPJ e CSLL, optantes pelo lucro real.

Não há dúvida de que temos nesta vedação inconstitucionalidade, todavia, existem outras alternativas que não somente a derrubada judicial desta indevida medida.

Isto porque, esta mesma Lei 13.670/2018 possui um caminho para buscar atenuar esta medida judicial, sobretudo, para o setor relacionado ao agronegócio.

Com efeito, o julgamento do Recurso Extraordinário 718.784/RS deu início a uma disputa jurídica entre os produtores rurais e a União em torno do dever de recolhimento da contribuição para o Funrural. Esse conflito acabou transbordando os limites do Poder Judiciário para envolver, inclusive, o Poder Legislativo, que também possui participação no controle de constitucionalidade.

A discussão em torno da constitucionalidade da contribuição ao Funrural, assim como do dever do adquirente de recolher a contribuição do produtor rural na condição de sub-rogado, ainda não foi encerrada. Ainda assim, os contribuintes podem agora contar com uma nova forma de quitar débitos ao mesmo tempo em que reduzem seu estoque de créditos de outros tributos.

O objetivo do presente artigo, assim, é explanar as inovações proporcionadas pela Lei 13.670/2018 sobre o direito de compensação, comparando-o com as regras existentes até então.

Em âmbito federal, o direito à compensação foi regulado inicialmente pelo artigo 66 da Lei 8.383/91, que permitia esse “encontro de contas” entre créditos decorrentes de pagamento indevido ou a maior de tributos, contribuições federais, inclusive previdenciárias, e receitas patrimoniais, e débitos de períodos subsequentes. Só que, em razão do § 1º do mesmo artigo, a compensação só poderia ser efetuada entre tributos, contribuições e receitas da mesma espécie.

Isso significa que os créditos de determinada espécie tributária só poderiam ser compensados com débitos de tributos da mesma espécie. Consequentemente, crédito de imposto não poderia ser usado para quitação de débito de contribuição especial e vice-versa.

Atualmente, a regra geral para compensação dos tributos federais encontra-se no artigo 74 da Lei 9.430/96, o qual reproduzimos abaixo:

“Art. 74. O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados por aquele Órgão.

Ou seja, referida lei teve como efeito a ampliação do direito conferido aos contribuintes, que poderia envolver débitos e créditos de quaisquer tributos, desde administrados pela então Secretaria da Receita Federal. Ocorre que, àquela época, somente as contribuições sociais incidentes sobre o faturamento e sobre o lucro estavam inseridas nas competências deste órgão.

Por outro lado, o artigo 33 da Lei 8.212/91 determinava que a administração das contribuições previdenciárias das empresas, incidentes sobre a remuneração paga ou creditada aos segurados a seu serviço, dos empregadores domésticos e dos trabalhadores, assim como as contribuições incidentes a título de substituição (por exemplo, para financiamento do Funrural), ainda estavam a cabo do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Somente com o advento da Lei 11.457/2007 essas contribuições passaram a ser de responsabilidade da então recém-criada Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB). Contudo, ao mesmo tempo em que ampliou as competências da SRFB, a lei vedou em seu artigo 26, parágrafo único, a compensação dessas contribuições previdenciárias com outros tributos administrados pelo órgão tributário federal:

“Art. 26. O valor correspondente à compensação de débitos relativos às contribuições de que trata o art. 2º desta Lei será repassado ao Fundo do Regime Geral de Previdência Social no máximo 2 (dois) dias úteis após a data em que ela for promovida de ofício ou em que for deferido o respectivo requerimento.

Parágrafo único. O disposto no art. 74 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, não se aplica às contribuição sociais a que se refere o art. 2º desta Lei.”

A despeito dessa restrição legal, os contribuintes recorreram ao Poder Judiciário na tentativa de afastar o impedimento do artigo 26 da Lei 11.547/2007. Todavia, firmou-se no Superior Tribunal de Justiça, a quem cabe unificar a interpretação da legislação federal, o entendimento de que, ante o artigo 26 da Lei 11.457/2007, é vedada a compensação entre créditos de tributos que eram administrados pela antiga Receita Federal com débitos de natureza previdenciária, até então de responsabilidade do INSS. Veja-se, a propósito, a ementa do REsp 1.235.348/PR:

“TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. INVIABILIDADE DE ANALISAR OFENSA A DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS. COMPENSAÇÃO. EXIGÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO LEGISLATIVA. NORMA VIGENTE AO TEMPO DO AJUIZAMENTO DA DEMANDA. COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS DE TRIBUTOS ADMINISTRADOS PELA ANTIGA RECEITA FEDERAL COM DÉBITOS PREVIDENCIÁRIOS CUJA COMPETÊNCIA ERA DO INSS. IMPOSSIBILIDADE. ART. 26 DA LEI 11.457/2007. VEDAÇÃO EXPRESSA À APLICAÇÃO DO ART. 74 DA LEI 9.430/96.

1. Inviável discutir, em Recurso Especial, ofensa a dispositivos constitucionais, porquanto seu exame é de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal, conforme dispõe o art. 102, III, da CF.

2. A compensação tributária depende de previsão legal e deve ser processada dentro dos limites da norma autorizativa, aplicando-se a regra vigente ao tempo do ajuizamento da demanda.

3. O art. 74 da Lei 9.430/96, com as alterações promovidas pela Lei 10.637/02, autoriza a compensação de créditos apurados pelo contribuinte com quaisquer tributos e contribuições "administrados pela Secretaria da Receita Federal". A regra já não permitia a compensação de créditos tributários sob o pálio daquele órgão, com débitos previdenciários, de competência do INSS.

4. A Lei 11.457/2007 criou a Secretaria da Receita Federal do Brasil, a partir da unificação dos órgãos de arrecadação federais. Transferiu-se para a nova SRFB a administração das contribuições previdenciárias previstas no art. 11 da Lei 8.212/91, assim como as instituídas a título de substituição.

5. A referida norma, em seu art. 26, consignou expressamente que o art. 74 da Lei 9.430/96 é inaplicável às exações cuja competência para arrecadar tenha sido transferida, ou seja, vedou a compensação entre créditos de tributos que eram administrados pela antiga Receita Federal com débitos de natureza previdenciária, até então de responsabilidade do INSS.

6. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido.” (Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 05/04/2011, publicado no DJe de 02/05/2011) (Sem grifos no original)

Desse momento em diante a jurisprudência pátria foi consolidada contrariamente ao contribuinte e o estado de fatos assim permaneceu até a entrada em vigor da Lei 13.670/ 2018.

Deste modo, até aquele momento, inexistia qualquer possibilidade de compensação dos créditos acumulados pelo setor do agronegócio com contribuições previdenciárias, como no caso do Funrural ou até mesmo sobre a folha de salários/remuneração.

Entre as diversas alterações promovidas pela Lei 13.670/2018, importa para a presente discussão a revogação do parágrafo único do artigo 26 da Lei 11.457/2007, o qual, como demonstrado acima, proibia a compensação das contribuições previdenciárias com outros tributos administrados pela SRFB. Como se não bastasse, foi inserido o artigo 26-A na mesma lei, prevendo expressamente a aplicação do artigo 74 da Lei 9.430/96 a todas as contribuições sociais, inclusive às previdenciárias. Transcrevemos, abaixo, ambos os dispositivos:

“Art. 26. O valor correspondente à compensação de débitos relativos às contribuições de que trata o art. 2º desta Lei será repassado ao Fundo do Regime Geral de Previdência Social no prazo máximo de 30 (trinta) dias úteis, contado da data em que ela for promovida de ofício ou em que for apresentada a declaração de compensação. (Redação dada pelo Lei nº 13.670, de 2018)

Parágrafo único. (Revogado). (Redação dada pelo Lei nº 13.670, de 2018)

Art. 26-A. O disposto no art. 74 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996: (Incluído pelo Lei nº 13.670, de 2018)

I – aplica-se à compensação das contribuições a que se referem os arts. 2º e 3º desta Lei efetuada pelo sujeito passivo que utilizar o Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (eSocial), para apuração das referidas contribuições, observado o disposto no § 1º deste artigo; (Incluído pelo Lei nº 13.670, de 2018)

II – não se aplica à compensação das contribuições a que se referem os arts. 2º e 3º desta Lei efetuada pelos demais sujeitos passivos; e (Incluído pelo Lei nº 13.670, de 2018)

III – não se aplica ao regime unificado de pagamento de tributos, de contribuições e dos demais encargos do empregador doméstico (Simples Doméstico).” (Incluído pelo Lei 13.670, de 2018)

Como o legislador adotou a técnica da remissão a outros artigos, ao invés de enumerar taxativamente as contribuições a que se referem as novas regras, importante colacionar os artigos 2º e 3º da mesma lei:

“Art. 2º Além das competências atribuídas pela legislação vigente à Secretaria da Receita Federal, cabe à Secretaria da Receita Federal do Brasil planejar, executar, acompanhar e avaliar as atividades relativas a tributação, fiscalização, arrecadação, cobrança e recolhimento das contribuições sociais previstas nas alíneas a, b e c do parágrafo único do art. 11 da Lei 8.212, de 24 de julho de 1991, e das contribuições instituídas a título de substituição.[1]
(…)
Art. 3º As atribuições de que trata o art. 2º desta Lei se estendem às contribuições devidas a terceiros, assim entendidas outras entidades e fundos, na forma da legislação em vigor, aplicando-se em relação a essas contribuições, no que couber, as disposições desta Lei.
(…)”

Logo após a entrada em vigor da lei, a Instrução Normativa 1.717/2017, que regulamentava a compensação tributária, foi alterada pela IN 1.810/2018, que alterou o artigo 65 para retirar a parte que expressamente impedia a compensação de contribuições previdenciárias com outros tributos federais. Ou seja, passou a não existir mais impedimento até nos atos normativos da SRFB, como não poderia deixar de ser.

Importante ressaltar, ainda, que a jurisprudência se formou contrariamente ao pleito dos contribuintes em função do artigo 26 da Lei 11.437/2007. Como a opção do legislador em restringir o direito era clara, os tribunais seguiram nesse sentido. Se a redação do artigo 26, agora, é diametralmente oposta, é bastante provável que a jurisprudência também seja alterada, caso se chegue a tanto.

Portanto, a nosso ver, não restam dúvidas de que atualmente é possível compensar créditos de outros tributos federais, a exemplo de PIS/Cofins, com débitos das seguintes contribuições previdenciárias: a) contribuição patronal; b) contribuição do empregador doméstico; c) contribuição do segurado.

Além disso, como o artigo 2º da Lei 11.457/2007 também se refere às contribuições substitutivas, inevitável que também possa haver compensação de débitos da contribuição para custeio do Funrural. Mas não só isso, já que o artigo 3º da Lei 11.457/2007 também se reporta às contribuições devidas a terceiros, entre os quais se destacam as entidades privadas de serviço social e de formação profissional (no caso dos produtores rurais e da agroindústria, Senai, Sesi, Sebrae e Senar).

As novidades acima comentadas se mostram fundamentais para os produtores rurais, pessoa física ou jurídica, e para a agroindústria, ante a manifesta intenção da União em prosseguir com a cobrança da contribuição ao Funrual.

Agora, surge uma forma alternativa de quitação do tributo com grande espectro de aplicabilidade no agronegócio, já que diversos produtos são beneficiados com suspensão, isenção ou não tributadas nas saídas e o artigo 17 da Lei 11.033/2004 permite a manutenção dos créditos vinculados a essas operações. Ou seja, além do exportador, que já contava com a regra constitucional permitindo a manutenção de seus créditos, os demais produtores rurais que efetuarem saídas com os benefícios indicados também poderão usá-los para compensação com suas contribuições previdenciárias.

Alguns cuidados, contudo, precisam ser tomados. De forma um pouco prolixa, o artigo 26-A da Lei 11.457/2005 só autoriza a “compensação cruzada”, isto é, envolvendo contribuições previdenciárias e outros tributos, se débitos e créditos forem apurados em períodos posteriores ao início da utilização pelo contribuinte do Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (eSocial). É o que se depreende do caput, I, e do § 1º do art. 26-A:

“Art. 26-A. O disposto no art. 74 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996:
I – aplica-se à compensação das contribuições a que se referem os arts. 2º e 3º desta Lei efetuada pelo sujeito passivo que utilizar o Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (eSocial), para apuração das referidas contribuições, observado o disposto no § 1º deste artigo;
(…)
§ 1º Não poderão ser objeto da compensação de que trata o inciso I do caput deste artigo:
I – o débito das contribuições a que se referem os arts. 2º e 3º desta Lei:
a) relativo a período de apuração anterior à utilização do eSocial para a apuração das referidas contribuições; e
b) relativo a período de apuração posterior à utilização do eSocial com crédito dos demais tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil concernente a período de apuração anterior à utilização do eSocial para apuração das referidas contribuições; e
II – o débito dos demais tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil:
a) relativo a período de apuração anterior à utilização do eSocial para apuração de tributos com crédito concernente às contribuições a que se referem os arts. 2º e 3º desta Lei; e
b) com crédito das contribuições a que se referem os arts. 2º e 3º desta Lei relativo a período de apuração anterior à utilização do eSocial para apuração das referidas contribuições.”

Ademais, é importante salientar que a lei se refere à “utilização do eSocial para apuração das referidas contribuições”. Isso é importante porque a implantação desse sistema é gradativa, tanto no que se refere aos contribuintes obrigados a utilizá-lo quanto às informações que são prestadas, conforme cronograma aprovado pela Resolução 2, de 30 de agosto de 2016 do Comitê Diretivo do eSocial, depois alterado pela Resolução 3, de 29 de novembro de 2017.

Portanto, parece-nos mais seguro que o contribuinte opte por compensar créditos e débitos de períodos posteriores à utilização do eSocial para a efetiva apuração das contribuições, sobretudo porque o procedimento importa em confissão do crédito tributário, que será considerado constituído para todos os efeitos.

Quanto aos períodos anteriores à utilização do eSocial, continua sendo aplicada a sistemática antiga: créditos de contribuições previdenciárias somente podem ser compensados com débitos de outras contribuições previdenciárias. É o que se extrai atualmente dos artigos 84 a 87-A da IN 1.717/2017, com alterações da IN 1.810/2018.

Possível concluir, assim, que, apesar de a Lei 13.670/2018 trazer medidas inconstitucionais a respeito da compensação da estimativa mensal de IRPJ e CSLL, por sua vez, doravante, cumprindo certas condições, permite a “compensação cruzada” de tal sorte que os créditos de outros tributos que o setor do agronegócio acumula, poderão ser utilizados para quitar contribuições previdenciárias, como o caso do Funrural, além de terceiros.


1 O parágrafo único do art. 11 da Lei nº 8.212/91 elenca cinco contribuições que devem compor o orçamento da Seguridade Social, a saber: a) as das empresas, incidentes sobre a remuneração paga ou creditada aos segurados a seu serviço; b) as dos empregadores domésticos; c) as dos trabalhadores, incidentes sobre o seu salário-de-contribuição; d) as das empresas, incidentes sobre faturamento e lucro; e) as incidentes sobre a receita de concursos de prognósticos. Portanto, ao mencionar as alíneas a, b e c, o legislador se refere às contribuições previdenciárias da empresa, do empregador doméstico e dos trabalhadores.

Autores

  • é advogado tributarista, sócio do Brasil Salomão e Matthes Advocacia. É doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) e ex–membro do Carf.

  • é advogado tributarista, especialista em Direito Tributário pela FGV DIREITO SP. Procurador do do Pará. Procurador atuante junto ao Tribunal Administrativo de Recursos Fazendários do Pará.

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