Opinião

Candidaturas femininas e o uso de recursos para a formação política da mulher

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25 de agosto de 2018, 6h34

Em 17 de setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADI 4.650 para declarar inconstitucional o financiamento de campanha por pessoas jurídicas.

Assim, nas eleições municipais de 2016, os candidatos e partidos políticos passaram pela primeira experiência de uma eleição com poucos recursos financeiros, já que apenas poderiam depender do autofinanciamento, de parte do fundo partidário e da doação de pessoa física.

Foi nesse momento que avaliaram que a doação de pessoas físicas no Brasil teria um caminho longo a percorrer, já que não é da nossa cultura a participação, inclusive financeira, de forma maciça e efetiva, pelo cidadão comum do processo democrático.

Prova disso é o nível de abstenção nas eleições. Em 2014, 19,4% do eleitorado brasileiro não compareceu às urnas — 27,7 milhões dos 142,8 milhões de eleitores no país. Se parte do eleitorado não vota, quanto menos se manifestará no sentido de financiar uma campanha eleitoral. Não é à toa que parte das doações de pessoas físicas efetuadas em 2016 estão sob suspeita de fraude[1].

A solução encontrada, a partir desse cenário, foi aumentar o financiamento público, o que foi implementado com a criação do fundo especial de financiamento de campanhas, que partiu com uma previsão de R$ 1,7 bilhão para as campanhas eleitorais de 2018, dividido entre os partidos de acordo com a representatividade na Câmara do Deputados e Senado.

O fundo partidário, que pode ser também utilizado para as campanhas, na última distribuição somou R$ 780 milhões aos partidos na forma de dotações orçamentárias da União (duodécimos orçamentários) e mais R$ 108 milhões a título de multas e penalidades aplicadas nos termos do Código Eleitoral, sendo que em 2014, quando haviam mais formas de financiamento de campanhas, foi de R$ 365 milhões, próximo a um terço do valor de hoje[2].

Em que pese as nossas críticas ao financiamento público de campanha, uma vez estabelecido e sendo a maior fonte de recursos de financiamento eleitoral, temos que defender a divisão da fatia da forma mais isonômica, buscando atender também aos interesses das minorias, especialmente por tratar de verbas não privadas, sendo certo que “o caráter público dos recursos a elas [legendas] destinados é elemento que reforça a obrigação de que a sua distribuição não seja discriminatória”[3].

Infelizmente, na legislação, quando se buscou a divisão, pouco se destinou às mulheres do fundo partidário, chegando ao absurdo de ter um teto de 15% do valor total que seria aplicado nas campanhas, e nada se previu do fundo especial de financiamento de campanhas.

Buscando minimizar essa distorção e fomentar as candidaturas femininas — segundo dados de 2014, a média total de recursos para as candidaturas femininas à Câmara dos Deputados foi de R$ 65,5 mil, enquanto para as masculinas chegou a R$ 252,3 mil, ou seja, 26% da média total arrecadada para elas, refletindo, sem sombras de dúvidas, no resultado das eleições, que foi de 9,9% de mulheres —, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 5.617, ponderou a necessidade de verdadeiro fomento da igualdade representativa, excluindo o teto de doação às candidaturas femininas do fundo partidário e estabelecendo um mínimo proporcional às candidaturas apresentadas, que, pela lei, deve ser de, no mínimo, 30%, bem como declarando inconstitucionais as normas que estariam incompatíveis com essa nova regra[4].

Assim, os diretórios nacionais deverão encaminhar às candidaturas femininas, no mínimo, 30% do fundo partidário e, conforme decidido na Consulta 0600252-18.2018.6.00.0000 respondida pelo Tribunal Superior Eleitoral, esse mesmo percentual relativo ao fundo especial de financiamento de campanha.

Outro dispositivo que foi declarado inconstitucional foram os parágrafos 5º-A e 7º do artigo 44 da Lei 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos), que dispõe sobre a possibilidade de cumulação e utilização em campanhas femininas do valor reservado (5% do valor recebido do fundo partidário) para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres.

No venerável voto em comento, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Edson Fachin discorreu brilhantemente sobre o tema, senão vejamos:

Em relação aos § 5º-A e § 7º, a discricionariedade conferida, quer às agremiações partidárias, quer às secretarias da mulher, autorizaria-lhes, em tese, a utilizar os recursos destinados à promoção e difusão da participação política das mulheres em suas campanhas, como se tal obrigação estivesse em seu âmbito de discricionariedade. É preciso reconhecer que ao lado do direito a votar e ser votado, como parte substancial do conteúdo democrático, a completude é alcançada quando são levados a efeito os meios à realização da igualdade. Só assim a democracia se mostra inteira. Caso contrário, a letra Constitucional apenas alimentará o indesejado simbolismo das intenções que nunca se concretizam no plano das realidades. A participação das mulheres nos espaços políticos é um imperativo do Estado e produz impactos significativos para o funcionamento do campo político, uma vez que ampliação da participação pública feminina permite equacionar as medidas destinadas ao atendimento das demandas sociais das mulheres. Há ainda muito a se fazer. Não se pode deixar de reconhecer que a presença reduzida de mulheres na vida política brasileira “colabora para a reprodução de concepções convencionais do ‘feminino’, que vinculam as mulheres à esfera privada e/ ou dão sentido a sua atuação na esfera pública a partir do seu papel convencional na vida doméstica” e “coloca água no moinho da reprodução de posições subordinadas para as mulheres e da naturalização das desigualdades de gênero” (MOTA, Fernanda Ferreira; BIROLI, Flávia. O gênero na política: a construção do “feminino” nas eleições presidenciais de 2010”. cadernos pagu (43), julho/dezembro de 2014, p. 227). Daí porque a atuação dos partidos políticos não pode, sob pena de ofensa às suas obrigações transformativas, deixar de se dedicar também à promoção e à difusão da participação política das mulheres.

Vale destacar que foram opostos embargos de declaração para a modulação dos efeitos de forma que a inconstitucionalidade seja aplicada após as eleições de 2018, porém, como não houve pronunciamento a esse respeito, prevalece a determinação contida no venerando acórdão, cujo efeito é ex tunc.

Dessa forma, os recursos depositados em conta própria, mantida e administrada pela Secretaria da Mulher do respectivo partido político ou, inexistindo a secretaria, pelo instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política, não poderão ser utilizados nas campanhas eleitorais e deverão ser gastos dentro do ano arrecadado. Não havendo saldo remanescente, deverá ser aplicado dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% do valor previsto.

É fato que esses recursos devem ser gastos exclusivamente com a formação da mulher na política, sejam com a produção de materiais educativos ou com a realização de cursos, palestras e seminários, dentre outras atividades que venham agregar conhecimento às mulheres no ambiente político.

Importante destacar que essas atividades serão avaliadas pela Justiça Eleitoral de forma minuciosa, quando da prestação de contas anuais, de forma que os eventos de qualificação devem ser filmados e/ou fotografados, com a emissão de certificados e lista de presença ou outras providências, de forma a não restar dúvidas de que o evento foi efetivamente realizado em prol das candidaturas femininas.

A proibição de utilização dos recursos previstos no artigo 44, V da Lei dos Partidos Políticos com finalidade diversa, mesmo que em campanhas eleitorais de mulheres, poderá ensejar, além da rejeição das contas partidárias do Diretório Nacional, com determinação da devolução do valor aplicado de forma indevida, possível questionamento de abuso de poder econômico às candidaturas beneficiadas, em última instância, já que financiadas com recurso indevido.


[3] STF. ADI 5.617. Ministro Edson Fachin, j. 17/03/2018.

[4] Fonte: Tribunal Superior Eleitoral – TSE. Acesso: 10/05/16. Baseado em Instituto Patrícia Galvão, 2015

Autores

  • é advogada, coordenadora da pós-graduação em Direito Eleitoral da Faculdade IDP-SP e membro do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral (Ibrade).

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