Tribuna da Defensoria

O fenômeno das ações zumbis: um estudo de caso das ações revisionais de veículos

Autor

  • Mariella Pittari

    é defensora pública do Ceará mestranda em Direito Comparado Economia e Finanças pela Universidade de Turim (Itália) master of Laws pela Universidade Cornell (EUA) alumni do Institute for U.S Law (EUA) especialista em Direito Público e bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

21 de agosto de 2018, 10h39

Em determinadas atuações especializadas em Direito do Consumidor, um assunto cresce em importância diante da impossibilidade da Defensoria Pública em ver assegurados os direitos mais básicos do consumidor, mormente ante a disciplina do Código de Processo Civil, de recentes julgados do STJ[1] e do Decreto-lei 911/69. Trata-se da equivocada expectativa criada no devedor em alienação fiduciária de veículos: a de que obterá algum êxito ao manejar uma ação revisional.

O pêndulo oscilou do que se chamou de “indústria da revisional” ao extremo oposto, inacessibilidade do Poder Judiciário e prejuízos incomensuráveis ao consumidor financeiro, que depositara esperanças no eventual sucesso da demanda revisional. O resultado, acaso o percurso das demandas revisionais seja seguido em concomitância às ações de busca e apreensão, será o depósito em juízo do valor que se entende por incontroverso, sem que em contrapartida seja concedida a antecipação da tutela, culminando no cumprimento da liminar concessória de apreensão do bem pelo agente fiduciário.

Assim, após cinco dias do cumprimento da liminar que autorizou a apreensão do bem, na dicção do parágrafo 1º do artigo 2º do referido decreto, “consolidar-se-ão a propriedade e a posse plena e exclusiva do bem no patrimônio do credor fiduciário […]”. Acaso o devedor decida por efetuar o pagamento, deverá fazê-lo pagando a integralidade da dívida, inclusive as parcelas vincendas. Não trata o decreto-lei, tampouco o STJ, acerca da possibilidade do abatimento dos juros, uma vez que o devedor antecipará o pagamento no tempo. Não ocorrendo o pagamento, diante dos óbices acima narrados, após o cumprimento da liminar, disporá o devedor de 15 dias para apresentar defesa. Ressalte-se que, nesse interregno, o bem já terá sido vendido, retirando da parte o direito a uma defesa efetiva. Ademais, uma vez levado o bem à venda a terceiros, remanesce com o devedor uma dívida que em muito supera o valor do bem, pois acrescidos dos juros do contrato, despesas, honorários advocatícios, custos e demais encargos.

Significa dizer, o juiz, totalmente indiferente às consequências da sua atuação, em afronta ao disposto no artigo 20 da LINDB, com redação conferida pela Lei 13.655/2018, ignora o prosseguimento do feito revisional e defere a liminar de busca e apreensão como se jamais tivesse havido discussão acerca da matéria. Abra-se aqui um aparte para rememorar que o STJ possui entendimentos no sentido de admissão de reconvenção em busca e apreensão e discussão da legalidade das cláusulas contratuais enquanto matéria de defesa[2]. Contudo, da leitura atenta às mais diversas teses firmadas pelo STJ, ressoa nítida a ausência da propugnada integridade e coesão da jurisprudência, afigurando-se sobremaneira intrincado seguir a ordem propugnada nos artigos 926 e 927 do CPC, pois no mesmo tribunal apresentam-se “teses” diametralmente distintas.

A petição inicial da revisional, quando não julgada liminarmente improcedente ou simplesmente indeferida, tramita tal qual um zumbi, algo que surge no mundo jurídico apenas para perecer, mas se mantendo ativa e em andamento para os desavisados. Assim, o assistido da Defensoria acredita que, ajuizando a revisional, gozará de algum respaldo jurisdicional, pois se antecipou a qualquer medida legal do agente fiduciário e ainda se disponibilizou a pagar o valor que reputa como incontroverso.

Entretanto, diferentemente do que supõe o consumidor financeiro, o depósito do valor incontroverso em juízo não implica afastar a mora do devedor, consoante entendimento consolidado no enunciado 380 da súmula do STJ.

Ademais, a nova roupagem conferida ao então artigo 285-A e parágrafos no CPC/73 não ameniza a situação do autor que ingressa com ação no intuito de discutir abusividade das cláusulas, pois na dicção dos parágrafos do artigo 330 do CPC:

“§ 2º Nas ações que tenham por objeto a revisão de obrigação decorrente de empréstimo, de financiamento ou de alienação de bens, o autor terá de, sob pena de inépcia, discriminar na petição inicial, dentre as obrigações contratuais, aquelas que pretende controverter, além de quantificar o valor incontroverso do débito.

§ 3º Na hipótese do § 2º, o valor incontroverso deverá continuar a ser pago no tempo e modo contratados”.

Logo, o autor da ação revisional, assim que ingressa em juízo, passa a efetuar o depósito conforme a planilha de cálculos elaborada pelo setor contábil da Defensoria, na expectativa de obter alguma providência jurisdicional no sentido de impedir a constituição da mora. Ainda, acaso a tutela antecipada não seja concedida, deve também manter os pagamentos à instituição financeira, pois, em não o fazendo, será surpreendido com uma liminar prontamente concedida na ação de busca e apreensão ajuizada pelo credor financeira.

Seguindo à discussão da defesa passíveis de apresentação na ação de busca e apreensão, outras situações exóticas se apresentam. Isso porque, em não tendo sido paga a integralidade da dívida, está o credor autorizado a venda do bem, restando absolutamente esvaziada a defesa na situação em que o bem da vida fora transferido ao terceiro. Quando o bem é apreendido e vendido, remanesce ainda um débito impagável para o devedor, pois o valor do bem é muito inferior ao valor do empréstimo. Após a venda do bem, continua o devedor obrigado ao pagamento de despesas diversas, multas, honorários do despachante, despesas judiciais, honorários advocatícios e saldo remanescente.

O caso do assistido aqui reportado, Francisco, serve como paradigma da iniquidade[3]. Trata-se de um montador de móveis que adquiriu uma motocicleta ano 2013, cujo valor do bem no contrato era de R$ 7.229,07. Na ocasião da celebração do contrato, Francisco pagou R$ 2.100, financiando R$ 11.256 em 48 prestações mensais de R$ 234,50. Portanto, para um bem que valia R$ 7.229,07, Francisco terminaria por pagar 13.356,00. Diferentemente do que muitos concebem como o público da ação revisional, para a Defensoria não se trata de pessoas que financiam carros luxuosos e buscam o Judiciário para se evadir da prestação. Em realidade, são consumidores que após o pagamento de muitas parcelas perdem a capacidade financeira de arcar com as prestações e dão-se conta de que poderiam comprar dois veículos idêntico com o valor despendido para apenas um.

Dessarte, afigura-se patente o equívoco o que fora decidido pelo STJ no Tema 722 em sede da sistemática dos recursos repetitivos, ao entender que na vigência da Lei 10.931/2004 a propriedade apenas não é consolidada se efetuado o pagamento da integralidade da dívida:

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. DECRETO-LEI N. 911/1969. ALTERAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI N. 10.931/2004. PURGAÇÃO DA MORA. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE PAGAMENTO DA INTEGRALIDADE DA DÍVIDA NO PRAZO DE 5 DIAS APÓS A EXECUÇÃO DA LIMINAR. 1. Para fins do art. 543-C do Código de Processo Civil: "Nos contratos firmados na vigência da Lei n. 10.931/2004, compete ao devedor, no prazo de 5 (cinco) dias após a execução da liminar na ação de busca e apreensão, pagar a integralidade da dívida – entendida esta como os valores apresentados e comprovados pelo credor na inicial -, sob pena de consolidação da propriedade do bem móvel objeto de alienação fiduciária".2. Recurso especial provido. (REsp 1418593/MS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/05/2014, DJe 27/05/2014)

A discordância do teor do julgado se deve ao fato de os juros remuneratórios serem diretamente conversíveis ao tempo em que o devedor dispuser da quantia emprestada. No caso sob análise, se o contrato foi celebrado em outubro de 2013, para pagamento das prestações em quatro anos, ao vencerem-se todas as prestações em outubro de 2016, momento em que o juízo deferiu a liminar, deveriam ser abatidos os juros de um pagamento programado para ser realizado até outubro de 2017, a um custo efetivo anual de 56,69%. Portanto, o valor devido para todas as ações de busca e apreensão, ainda que não haja qualquer ação revisional subjacente, deve corresponder às parcelas a se venceram, descontando-se integralmente os juros futuros, que apenas seriam devidos acaso a instituição financeira arcasse com o tempo com o qual o devedor dispõe do dinheiro.

No caso que rendeu ensejo ao presente texto, ao autor da revisional foi reconhecido não haver mora, pois os juros anuais ultrapassavam e muito a média de mercado do BC, consoante explicitado na própria fundamentação da sentença. Contudo, a sentença na revisional tardou para o consumidor. Terminou Francisco por pagar, além da entrada, 22 parcelas e R$ 2.787, depositados em juízo. Como resultado, a motocicleta de Francisco foi apreendida e vendida, tendo ele perdido para o banco seu instrumento de trabalho. Não bastando ter perdido o bem da vida, ainda que sagrado vencedor da ação revisional, remanesce em detrimento do consumidor financeiro uma dívida de R$ 6.083,11, cobrança esta decorrente do baixo valor alcançado na venda do bem pela instituição financeira, vez que o valor de venda de R$ 4.000 não foi suficiente à satisfação do irascível credor.

Não causa espanto ser a legislação atinente ao tema tão draconiana ao consumidor, sobretudo ante o fato de ser relativamente recente o posicionamento do STF no sentido de não admitir a prisão ao depositário infiel[4]. É dizer, em outros tempos a sanção por não entregar o bem seria a prisão. A procedência parcial da ação revisional parece custar a devolver Francisco o bem da vida perseguido com a ação. Os provimentos em favor do banco são expedidos em máxima urgência, passando as revisionais a mero incomodo adendo, fruto da insistência dos órgãos de defesa do consumidor em fazer valer o direito dos consumidores diante do vácuo legislativo e jurisprudencial em coibir os juros extorsivos praticados no país. A juíza, ao julgar procedente a ação, não retomou o entendimento de que os juros praticados são o da lei de usura. Longe disso, seguiu-se a orientação de obediência à taxa média de mercado praticada, conforme orientação fixada em sede de repetitivo no REsp 1.112.880/PR, rel. ministra Nancy Andrighi, 2ª Seção (julgado em 12/5/2010, DJe 19/5/2010).

Nesta senda, constata-se que são os procedimentos o novo estratagema de negação de direitos substantivos[5]. O Judiciário, aproveitando-se do vácuo (lobby) legislativo[6], cria entendimentos que contorcem e reorientam a ordem de importância de diplomas legais há muito consagrados. Não obstante ter sido o vergastado CDC superveniente à Constituição, opta-se pela obediência cega ao Decreto-lei 911/1969 com suas respectivas alterações. O Decreto-lei 911/1969, combinado à nova disciplina do CPC, torna a litigância consumerista da alienação fiduciária de veículo quase que um ato de fé, pois instruir a parte para que ocupe as melhores posições com os escassos recursos financeiros de que dispõe é tarefa não apenas hercúlea, mas intransponível. Na ação revisional, ora a inicial é indeferida por falta de depósito do “valor incontroverso”, ora é julgada liminarmente improcedente. Com alguma sorte, ela é simplesmente esquecida nos escaninhos imaginários das nuvens cibernéticas. Para os bancos, previsibilidade e presteza; para os pobres, teses que em breve serão firmadas não mais por ministros, mas por algoritmos em julgamentos virtuais[7].


[1] Nas palavras de Aurélio Viana e Dierle Nunes: “A nova geração de juristas, preocupada com os fundamentos de sua disciplina, precisa se autocriticar para evitar a cegueira diante desses sofisticados mecanismos persuasivos de engenharia de consentimento” (Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 168.
[2] Confira-se o AgRg no REsp 1573729/SP, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 23/02/2016, DJe 01/03/2016 e REsp 801.374/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/04/2006, DJ 02/05/2006, p. 327.
[3] Autos do Processo 0147909-45.2016.8.06.0001 e 0107152-09.2016.8.06.0001.
[4] Enunciado 25 da súmula vinculante do STF: É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito.
[5] STASZAK, Sarah. Sem dia na corte: acesso à justiça e a política do recrudescimento judicial. Oxford Univeristy Press: Nova York, 2015, p. 04 e 05: “Mas há outro elemento importante para a história, no qual esses mesmos objetivos — reduzir o alcance da revolução dos direitos — vieram através de esforços menos visíveis e frequentemente menos partidários que visam alterar as “regras do jogo”: regras institucionais e procedimentos legais que, embora aparentemente benignos à primeira vista, determinam na prática o que constitui uma disputa legal válida: quais ferramentas os advogados e juízes têm à disposição para argumentar e julgar casos; que recursos estão disponíveis para tipos específicos de ações; se uma revisão judicial adicional de um resultado contestado está disponível; e talvez mais importante, que incentivos e recursos temos para levar um caso a tribunal para começar. Os reformadores que visam esses mecanismos estão buscando uma forma diferente de contra mobilização: eles procuram diminuir os efeitos da revolução dos direitos ao restringir o acesso aos tribunais para aqueles indivíduos que pedem que juízes e jurados ouçam e corrijam suas reivindicações de direitos. Esse fenômeno – que eu chamo de recrudescimento judicial – é parte essencial da narrativa mais ampla” (tradução própria).
[6] Farber, Daniel A., and Philip P. Frickey. Law and public choice: a critical introduction. University of Chicago Press, 1991. No livro discute-se se o processo legislativo trata-se realmente de vários indivíduos buscando o bem comum ou a eterna disputa de interesses dissonantes.
[7] Notícia: “STJ começa a julgar recurso de forma totalmente virtual”, disponível em http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/STJ-come%C3%A7a-a-julgar-recursos-de-forma-totalmente-virtual, acesso em 20 de agosto de 2018.

Autores

  • Brave

    é defensora pública do estado do Ceará, especialista em Direito Público, alumni do Institute for U.S Law (Washington, D.C.), e aluna do programa Master of Laws na Cornell University.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!