Justiça Tributária

Ao "classificar" contribuintes, as autoridades devem respeitar seus direitos

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

20 de agosto de 2018, 8h01

Spacca
"O orçamento deve ser equilibrado,
o Tesouro Público deve ser reposto,
a dívida pública deve ser reduzida,
a arrogância dos funcionários públicos
deve ser moderada e controlada,
e a ajuda a outros países deve ser eliminada,
para que Roma não vá à falência. As pessoas devem novamente aprender a trabalhar, em vez de viver às custas do Estado."(Marco Túlio Cícero, 106–43 a.C)"

O pensamento acima, com mais de dois milênios de idade, serve como luva para o momento atual de nossa economia. O desequilíbrio orçamentário, os desvios sofridos pelo Tesouro, os juros da dívida pública e as demais questões ali contidas merecem sempre uma séria reflexão dos cidadãos deste país.

Assim, devemos analisar com atenção especial a matéria da repórter Laura Ignácio, no jornal Valor Econômico da quinta-feira (16/8), onde é informado que a Receita Federal e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional estudam criar uma “classificação para contribuintes”, no que seria o “Cadastro Fiscal Positivo”. Vejamos os pontos mais relevantes:

Pode ser uma boa ideia
Talvez seja uma boa ideia essa “classificação”, mas podem surgir sérios problemas legais na sua implantação. O primeiro deles é a questão da legalidade, na hipótese de que tais mecanismos tenham origem em meros atos administrativos, sejam eles portarias da PGFN, instruções normativas da Receita ou mesmo decretos.

Se ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se não em virtude de lei, não terá validade qualquer “classificação” onde contribuinte seja considerado em nível inferior a seu concorrente. A mesma constituição que traz o princípio da legalidade, garante o da igualdade.

Portanto, antes de qualquer “classificação” deve-se assegurar o contraditório, sem o que quem se sentir prejudicado poderá questioná-la.

Como isso pode ser legal
Uma vez desenvolvidos e concluídos os estudos devem ser encaminhados ao único Poder capaz de dar legalidade a isso: o Legislativo.

Diz a reportagem que tais estudos foram inspirados no programa “Nos conformes”, adotado pela Secretaria da Fazenda paulista. Esta agiu como manda o nosso regime democrático de direito, daí surgindo a Lei Complementar Estadual 1.320, de 6 de abril de 2018, cujo artigo 1º determina:

“Artigo 1º – Esta lei complementar cria condições para a construção contínua e crescente de um ambiente de confiança recíproca entre os contribuintes e a Administração Tributária, mediante a implementação de medidas concretas inspiradas nos seguintes princípios:
I – simplificação do sistema tributário estadual;
II – boa-fé e previsibilidade de condutas;
III – segurança jurídica pela objetividade e coerência na aplicação da legislação tributária;
IV – publicidade e transparência na divulgação de dados e informações;
V – concorrência leal entre os agentes econômicos.
Parágrafo único – Os princípios estabelecidos no “caput” deste artigo deverão orientar todas as políticas, as ações e os programas que venham a ser adotados pela Administração Tributária.”

O que precisa ser esclarecido
A reportagem menciona que “os contribuintes bem classificados …terão melhores condições, por exemplo, para garantir o pagamento de dívidas em discussão na Justiça.”

Ora, na esfera judicial as garantias do pagamento de dívidas são definidas em lei e cabe ao Judiciário fixar suas condições. A PGFN tem um eficiente corpo de advogados para defender o Erário e isso independe da “classificação” do devedor. Ao admitir que “melhores condições” possam ser concedidas a parte dos contribuintes, rompe-se o princípio constitucional da isonomia.

Os perigos de uma visão equivocada
O primeiro perigo que essa “classificação” apresenta é a de imaginar que qualquer devedor de tributos é um sonegador. Nossa legislação tributária é um terrível cipoal numa floresta escura. Prova disso é a burocracia com que nos defrontamos em nossos relacionamentos com o fisco.

O artigo 1º da lei complementar acima transcrito deixa claro que “um ambiente de confiança recíproca entre os contribuintes e a Administração Tributária” necessita de “simplificação do sistema tributário” e ainda “segurança jurídica pela objetividade e coerência na aplicação da legislação tributária.”

Em nossa coluna de 09 de julho último, registramos exemplos de casos em que auditores fiscais agiram sem objetividade e coerência.

Autos de infração muitas vezes transformam-se em CDAs, apesar de defesas e recursos administrativos bem elaborados. Ainda que não haja parcialidade explícita nos julgamentos, há casos de “votos de qualidade” de duvidosa legalidade que decidem a favor do Fisco. Isso faz com que o contribuinte tenha que discutir no Judiciário o seu direito.

Um dos grandes problemas é a existência de multas confiscatórias, juros extorsivos etc. O auto de infração, muitas vezes, é a pena de morte aplicada ao contribuinte, quando permite multas maiores que o seu patrimônio.

Sobre essa forma de “assassinato” já escrevemos nesta coluna em 2 de junho de 2013.

O que se pode fazer a curto prazo
Primeiramente, deve-se afastar a ideia de que devam se submeter “a procedimentos mais rigorosos contribuintes que descumprem parcelamentos ou usam o judiciário só para adiar o pagamento de tributos.”

Quem pede parcelamento é devedor, não criminoso. Execute-se a dívida, respeitando-se o contribuinte. Muitas vezes o parcelamento é interrompido por motivos alheios à vontade do devedor. Por exemplo: vendas que ele fez e não foram recebidas são comuns em qualquer tempo e lugar.

O protesto de CDAs, embora já considerado legal, é instrumento desnecessário que apenas aumenta as dificuldades do devedor. Sobre esse assunto, já nos manifestamos aqui em 7 de janeiro de 2013.

Considerando que a CDA é título liquido e certo, o protesto serve apenas para aumentar o prejuízo do contribuinte. Ainda que se trate de crédito indevido, uma sustação de protesto face à Fazenda pública é muito mais difícil do que a que se propõe contra o credor comum, a começar pela exiguidade do prazo para distribuição, despacho, entrega de mandado etc.

O Código de Processo Civil ordena que a cobrança na execução deve ser feita de forma menos gravosa para o devedor. Assim, pode este garantir a dívida por bens, caso não tenha dinheiro disponível no momento.

No atual momento econômico, o protesto de CDAs, criado como “jabuti” na discussão de MP sobre energia elétrica (ver nossa coluna de 07/01/2013 [3] ) revela-se como ato desnecessário, prejudicial ao próprio Poder Público, na medida em que transforma em inimigo o devedor que não é, necessariamente sonegador.

Se a inspiração da tal “classificação” é parecida com a da Lei Complementar Estadual 1.320, vale lembrar o caput do seu artigo 1º onde diz que essa “lei complementar cria condições para a construção contínua e crescente de um ambiente de confiança recíproca entre os contribuintes e a Administração Tributária…”

O mau atendimento nos serviços fazendários (quando não estão em greve) impede esse ambiente de confiança e sadio que se pretende criar. Sem que os contribuintes, ainda que devedores, tenham seus direitos constitucionais respeitados, jamais teremos Justiça Tributária.

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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