Opinião

Sistema anticorrupção do país gera incerteza jurídica

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19 de agosto de 2018, 14h46

*Artigo originalmente publicado na edição deste domingo (19/8) do jornal Folha de S.Paulo, com o título "Feijoada à brasileira e combate à corrupção"

Juristas definitivamente não entendem muito de cozinha. Neste espaço ("Muitos cozinheiros na cozinha?", 9/7), Igor Tamasauskas fez um preciso diagnóstico sobre o sistema brasileiro anticorrupção. Diz que ele confere competências a uma multiplicidade de órgãos. Só no âmbito federal existem a CGU, AGU, TCU e o MPF, este também multicêntrico. Há ainda o Ministério Público estadual.

Para ele, porém, os modelos unicêntricos não seriam adequados à nossa "corrupção sistêmica". A dificuldade seria superada pela "racionalidade técnica". Discordo.

Um único acordo não prova a racionalidade do sistema. O problema não é de capacidade técnica, presente em todos esses órgãos. Países que optaram pela unicidade do órgão responsável por esses acordos superaram quadros de corrupção sistêmica.

Desvios generalizados não são exclusividade brasileira. Sistema fragmentado e irracional assim, isso é só nosso. É impossível um sistema funcionar eficientemente com múltiplos polos independentes e sem coordenação. Isso não traz só dificuldades operacionais, até contornáveis com diligentes advogados. Gera ineficiência para as investigações e incerteza jurídica.

Acordos de leniência visam a dar elementos para a investigação de ilícitos. Negociações com muitos órgãos tomam mais tempo. A utilidade de fatos revelados se perde com anos de negociação. Legítimo comemorar o fechamento de um acordo após longos três anos. Mas também é de se duvidar da utilidade das provas trazidas pelo delator após esse tempo. Pior que isso, a barafunda de competências gera insegurança.

Como o delator pode entregar à CGU provas e documentos que estão sendo confiados concomitantemente ao MPF para firmar delação na esfera penal? Ao negociar com vários órgãos, a garantia do sigilo (essencial para as investigações) é menos certa. Firmado o acordo com CGU, AGU e MPF, qual a garantia de que não será questionado pelo TCU mesmo tendo-o autorizado, se a ele não se integra ou se submete? Ou no Judiciário, como no caso JBS?

Ao gerar ineficiência e insegurança, a fragmentação do sistema desincentiva acordos e aumenta o custo de transação. Não coíbe a corrupção, concorre para a impunidade. 

Não temos evidências de que múltiplos atores evitem a cooptação. Há remédios mais eficientes, como o controle interno ao órgão que centralize a competência ou a homologação obrigatória pelo Judiciário (como ocorre hoje para a delação premiada). A fragmentação permite ao delator explorar as divergências entre órgãos. No Brasil, em vez do "dilema do prisioneiro", inventamos o concurso entre carrascos.

Nosso sistema anticorrupção precisa convergir para concentrar delações e firmar acordos em um único órgão. Assim é nos Estados Unidos e em outros países. Atribuir essa função ao Ministério Público, por exemplo, não demandaria alteração constitucional. Outra alternativa seria a previsão legal de atuação coordenada obrigatória entre órgãos, inspirada na conferência de serviços.

Nela, o órgão inicialmente provocado convocaria os demais relacionados para participar coordenadamente, sob pena de, não atuando, ver suprimida sua atribuição, por mais independente que seja.

Nenhum restaurante que se preze funciona com inúmeros chefes, cada um com autonomia para cozinhar como bem entender. Na cozinha brasileira do combate à corrupção, há sério risco de o feijão queimar. Ou, pior, não se entregar comida alguma. Se nos contentarmos com o "it is what it is", estaremos conformados com a corrupção sistêmica, que, afinal, "é o que é". Há muito tempo.

Autores

  • é sócio do Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados, diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor da FGV Direito Rio. É um dos autores do estudo acadêmico que deu origem ao projeto convertido na Lei 13.655/2018.

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