Opinião

Robôs nas eleições: manipulação, engajamento e os novos desafios do Direito

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18 de agosto de 2018, 6h27

A ficção científica do século XX imaginava um mundo futurístico repleto de robôs. Com aptidões sobre-humanas, mas sem afeto, os robôs apareciam como criaturas monstruosas que em algum momento se voltavam contra o criador.

Pois o século XXI começa a ensaiar essa fantasia. A automação digital vem permitindo que robôs virtuais interajam com pessoas reais de forma quase “natural”. As versões mais sofisticadas conversam e até aprendem, podendo alcançar uma inteligência superior à humana[1].

Exatamente como no pesadelo ficcional, a tecnologia mostra sua face mais perversa. O uso da automação na política tem servido a propósitos destrutivos. O exemplo mais conhecido de robô maligno é o social bot (robô social): uma conta falsa em rede social que se passa por perfil verdadeiro para disseminar mentiras, ofensas, ódio ou simplesmente para distorcer a percepção dos usuários autênticos, inflacionando a adesão ou o repúdio a uma ideia qualquer.

A tática é a da reverberação. Com ataques massivos ou infiltração sutil em comunidades, esses robôs normalmente atuam em rede (botnets) para despistar o engodo.

Fatos recentes aumentam a suspeita de que a arma é eficaz. Nos Estados Unidos, persistem os rumores de que a Rússia teria usado contas-fantasmas em redes sociais, principalmente no Facebook, para espalhar fake news em benefício de Donald Trump. O próprio CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, admitiu que esse tipo de ataque à legitimidade das eleições ainda desafia as melhores mentes de sua empresa.

No Brasil também já surgiram indicativos de que os robôs fazem sucesso na política: segundo a Fundação Getulio Vargas, os bots foram responsáveis por 10% das postagens no Twitter sobre as eleições presidenciais de 2014[2]; conforme a Folha de S.Paulo, 64% dos seguidores no Twitter de um presidenciável em 2018 são social bots[3]; e durante o debate presidencial na TV Bandeirantes, no último dia 9, 10% do fluxo no Twitter sobre a corrida ao Planalto teria sido agitado por robôs ou perfis falsos[4].

Tais episódios mostram como se tornou confusa a esfera pública. Para além de nossos círculos virtuais mais próximos, não estamos seguros de topar com um interlocutor real.

O impacto sobre a democracia realmente parece sombrio. As eleições são um combate pelo poder. O ataque ao adversário é um elemento essencial do jogo. Por isso, é pouco provável que as candidaturas renunciem ao uso desses expedientes. Os robôs do mal seguirão à solta na web.

Diante do risco de manipulação das preferências, a Justiça Eleitoral acendeu o alerta e vem buscando formas de garantir a autenticidade do processo eleitoral na web.

Mas a tarefa é exequível?

No campo tecnológico, certamente é possível identificar e enfrentar fake news. Aliás, o próprio Facebook — sem qualquer interferência da Justiça Eleitoral — desarticulou uma rede com meio milhão de seguidores, montada pelo MBL[5].

Por outro lado, no campo jurídico ainda estamos desprotegidos. Mesmo com a tutela penal e a remoção conteúdos[6], a Justiça Eleitoral somente será capaz de enxugar gelo. Não temos base doutrinária, legal ou jurisprudencial para enfrentar a manipulação digital em larga escala. Algo como um “abuso dos meios de comunicação digital” depende da devida elaboração teórica. Embora a Lei das Inelegibilidades aluda à “utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social”[7], nosso Direito Eleitoral foi construído sobre os meios tradicionais (rádio, TV e impressos). E o Marco Civil da Internet, útil para proteção de dados, identificação de responsabilidades e tramitação judicial de feitos envolvendo conteúdo na internet, não se detém nos problemas políticos que agora nos desafiam.

Mas, antes de lamentar o quadro apocalíptico, é necessário verificar se a interferência dos robôs malignos e suas fake news será tão expressiva como se supõe. De forma sincera, cabe perguntar: vale a pena essa batalha? A legitimidade das eleições realmente está em perigo?

Segundo a observação científica tem mostrado, a disseminação de notícias fraudulentas[8], principal receio da Justiça Eleitoral, apenas secundariamente é estimulada por contas automatizadas. O maior responsável pela circulação de mentiras e ofensas é o eleitor real, dentro de sua própria bolha[9]. Os conteúdos entram em looping[10]: os atingidos já acreditam naquilo que estão recebendo. E se não acreditam, é provável que não mudem de ideia. Aliás, talvez nem consumam o conteúdo até o final. Pois a multiplicação de opiniões e ideologias na nuvem convive paradoxalmente com uma polarização crescente, baseada num princípio de exclusão (o outro como inimigo) que interdita qualquer possibilidade de convergência ou revisão de ideias. As cabeças já estão formadas.

Além disso, o jornalismo — precipitadamente condenado à extinção quando do surgimento das redes sociais digitais — mostra agora o seu máximo valor com as agências de fact-checking, que validam ou condenam os fatos e versões circulantes na web (sem esquecer do papel de “porta-voz da verdade” da mídia tradicional).

Finalmente, o próprio eleitor — sistematicamente infantilizado — parece estar aprendendo as regras da ágora virtual. Desde quando saímos do paradigma da escassez e do monopólio de informações (até o século XX) e ingressamos no paradigma do excesso de informações e da pluralidade de fontes (século XXI), as notícias passaram a ser recebidas com um filtro muito mais severo. Num tempo em que a mentira deixou de ser monopólio dos grandes veículos, a atenção dos receptores foi redobrada.

Diante de tudo isso, o que se percebe é que os robôs malignos e as notícias fraudulentas não são capazes de destruir a democracia, como se supõe aqui e acolá, embora possam arranhá-la.

Um outro déficit democrático, este sim corrosivo, antigo e resistente, vem deprimindo o regime representativo, sem que qualquer autoridade eleitoral seja capaz de lhe opor forças, visto que dependente apenas da ação de candidatos, partidos e legisladores: a manutenção do cidadão como agente passivo do debate eleitoral.

Reduzido à condição de eleitor, o brasileiro é mero destinatário de mensagens cujo teor não lhe cabe formular. Sua voz é abafada inclusive pelos que dizem desejar uma cidadania ativa. As lideranças políticas só querem a atenção do eleitor para convencê-lo. Esta é a tônica da propaganda eleitoral desde priscas eras.

A interação é insuficiente. O sistema está tão comprometido com essa premissa autoritária (os poderosos falam e os votantes escutam) que nem a arquitetura horizontal da web, a maciça inclusão digital e os altos índices de uso das redes sociais conseguiram instaurar entre nós uma ordem de reciprocidade.

A repetição desse sistema de baixa conectividade, muito mais danoso do que qualquer social bot, tem evidências muito claras. Uma delas é a transformação do santinho impresso em santinho virtual, promovida pela última reforma eleitoral, com a Lei 13.488/2017.

Em vez de pagar a gráfica, agora os partidos e candidatos pagarão a empresa do senhor Mark Zuckerberg para turbinar anúncios no Facebook e no Instagram[11]. O proprietário dessas redes sociais está tão animado com a ideia de embolsar os bilhões dos fundos eleitoral e partidário que criou uma operação especial para atender às exigências da lei brasileira.

Nesse modelo, as candidaturas disputarão um leilão virtual em busca de visibilidade. Aparecerá mais quem puder pagar. Ou seja, o mesmo de sempre, embora com roupagem high tech.

Enfim, o que temos é a consagração do regime clássico: comunicação unidirecional e distribuição desigual das armas de campanha.

O mais surpreendente neste “museu de grandes novidades” (aspas para Cazuza) é a falta de interesse e criatividade das campanhas para conquistar o cidadão. Mesmo com o canal aberto das redes sociais e com as ferramentas que a elas se agregam, as candidaturas parecem inclinadas a saturar a web com um bombardeio de propaganda paga na luta por uma atenção fria, sem entusiasmo.

Talvez por atavismo, ou mesmo pela celeuma criada em torno dos social bots, a maioria das campanhas não tenha se dado conta de que a tecnologia tem muito mais a oferecer do que “links patrocinados”, a nova febre entre os políticos.

Uma das ferramentas pouco conhecidas, mas muito promissora para o engajamento es eleitores, é o chatbot (robô de conversação). Consagrado no mundo corporativo, o chatbot é um assistente virtual capaz de sustentar múltiplas interações simultâneas, dialogando conforme um script pré-programado.

Apesar do ceticismo sobre o interesse do eleitor em conversar com uma “inteligência artificial”, alguns candidatos estão apostando nesse tipo de tecnologia. Geraldo Alckmin é o pioneiro entre os presidenciáveis. Seu robô no Facebook está operando desde a pré-campanha e provavelmente será uma ferramenta potente para transformar em envolvimento real a atenção obtida nos picos de audiência (horário eleitoral gratuito e debates) e com o impulsionamento da propaganda nas redes. Pois o chatbot permite o envio de respostas instantâneas e pode ser programado para iniciar uma conversação com os eleitores que acessarem a página do candidato, “esquentando” a relação entre ambos.

A ferramenta facilita a vida do candidato, aumentando sua capacidade de interação; a do eleitor, garantindo a autenticidade e a velocidade das respostas; e também a da Justiça Eleitoral, uma vez que o chatbot não dissimula a identidade, ficando evidentemente vinculado a seu dono, como uma espécie de “persona virtual” que veicula a palavra oficial do candidato.

De fato, o assistente virtual pode modificar a relação entre políticos e cidadãos, trazendo alguma esperança de que a democracia representativa saia do atoleiro da desconfiança e ganhe um pouco de legitimidade. O passo dado por Alckmin e seguido por outros candidatos é tímido, mas indica — pouco importa se por vontade ou por falta de opção, diante das exigências do mundo digital — uma forma de diálogo nunca vista em campanhas eleitorais.

Evidentemente, as inovações virtuosas também podem ser mal-empregadas. Em junho, Alckmin utilizou seu chatbot para fazer campanha antecipada e negativa contra Jair Bolsonaro, sendo logo barrado pelo TSE[12].

Para o bem ou para o mal, num futuro breve o encontro dessa tecnologia de conversação com a inteligência artificial (aprendizado de máquina) tende a ser revolucionário. Captando as manifestações do eleitorado, os chatbots inteligentes serão capazes de ensinar ao candidato o melhor caminho, com influência decisiva sobre a formulação das propostas de campanha e até mesmo sobre o exercício do mandato. O uso de big data, já bastante explorado pelo marketing de precisão, tende a aumentar exponencialmente.

Além dos robôs, malignos (socialbots) ou benignos (chatbots), muitas outras ferramentas digitais vêm surpreendendo a comunidade interessada no assunto. O “detector de corrupção”, agora rebatizado para “detector de ficha de político”, dado o mal-estar causado no seu lançamento, utiliza o reconhecimento facial para apresentar o histórico do político pesquisado[13].

Por óbvio, levará algum tempo até que o processo eleitoral brasileiro deixe o solo e se instale definitivamente na nuvem. A era digital está apenas começando. Nas eleições de 2018, a propaganda eleitoral gratuita em rádio e televisão ainda desempenhará um papel decisivo, embora sua importância decresça na mesma proporção em que aumenta o peso das redes e dos robôs.

Do ponto de vista do Direito, o terreno digital está aberto para quase todas as ferramentas disponíveis. Desde que Obama realizou a primeira grande campanha digital, em 2008, estamos tentando absorver a internet em nossas eleições. Nosso primeiro marco legal sobre o assunto surgiu apenas em 2009, com a Lei 13.034, que regulou o que até então era resolvido pelo TSE mediante resoluções. Mas somente agora, com a permissão do pagamento para impulsionar conteúdos na web, passamos a vislumbrar campanhas genuinamente digitais. Com parâmetros bastante elásticos, já que, conforme o próprio TSE, a interferência judicial na internet deve ser a menor possível[14].

Diante das novidades tecnológicas, é grande a curiosidade sobre as armas digitais que os candidatos utilizarão e a postura que as autoridades eleitorais adotarão frente ao “poder do algoritmo”. Mais do que qualquer instituição brasileira, a Justiça Eleitoral sabe que a tecnologia pode ser amiga da democracia, apesar dos riscos embutidos.

Que sejamos sábios para proteger a democracia e sóbrios para não lutar inutilmente contra a inovação.


[1] HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. Trad. Paulo Geiger. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 285 e ss.
[2] Robôs, redes sociais e política no Brasil [recurso eletrônico]: estudo sobre interferências ilegítimas no debate público na web, riscos à democracia e processo eleitoral de 2018 / Coordenação Marco Aurélio Ruediger. – Rio de Janeiro: FGV, DAPP, 2017, p. 6.
[3] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/07/robos-sao-64-dos-seguidores-de-alvaro-dias.shtml.
[4] https://oglobo.globo.com/brasil/no-primeiro-debate-presidencial-10-dos-tuites-foram-de-robos-ou-fakes-22970273.
[5] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/25/politica/1532531670_089900.html.
[6] Código Eleitoral, art. 323; Lei 9.504/1997, arts. 57-I e 57-H, §§ 1o e 2o; Resolução TSE 23.551/2017, arts. 33 a 35.
[7] Lei Complementar 64/1990, art. 22.
[8] https://www.conjur.com.br/2018-ago-12/entrevista-diogo-rais-professor-direito-eleitoral.
[9] https://gauchazh.clicrbs.com.br/tecnologia/noticia/2018/05/as-pessoas-procuram-noticias-que-confirmam-o-que-elas-pensam-diz-raquel-recuero-cjhbvvx3f063h01pa2on9tq6d.html.
[10] PARISER, Eli. The Filter Bubble: What the Internet is Hiding From You. New York: Penguin, 2011.
[11] Lei 9.504/1997, art. 26. XV.
[12] Rep. TSE 600613-35.2018.6.00.0000, Rel. Min. Sérgio Banhos.
[13] http://www.vigieaqui.com.br/detectordefichadepolitico.
[14] Resolução TSE 23.551/2017, art. 33.

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