Constituição e Poder

A dignidade dos julgamentos contra a superexposição do Judiciário

Autor

13 de agosto de 2018, 21h05

Spacca
Há alguns anos escrevi uma série de artigos, nesta mesma coluna, em que confrontava a difícil relação do Poder Judiciário brasileiro com os meios de comunicação de massa. Vali-me deste espaço para discutir a superexposição dos tribunais, muito especialmente para criticar a possibilidade de julgamentos televisionados em tempo real. Com o transcurso do tempo, entretanto, julgo que as ideias ali veiculadas parecem refletir de forma ainda mais adequada a realidade de um Judiciário que se deslegitima na exata proporção em que se superexpõe, desprezando o seu próprio código de decisão (conformidade com o direito/desconformidade com o direito), para ajustar-se às exigências da assim designada opinião pública (na verdade, opinião publicada).

Naqueles artigos, tentei demonstrar que, no Judiciário, nem sempre a publicidade significa necessariamente transmissão ao vivo de julgamentos e muito menos superexposição de juízes, processos e tribunais. Pelo contrário, considerado o caráter técnico do raciocínio jurídico, na maior parte das vezes, a submissão das decisões judiciais ao código e aos parâmetros dos órgãos de comunicação de massa implica o risco de não apenas flexibilizar os rígidos parâmetros legais, mas até mesmo o de preterir ou ignorar os indiscutíveis comandos da lei em favor de humores de ocasião.

Nessas circunstâncias, inclusive, não é de surpreender que a superexposição acabe por significar desinformação. Na verdade, a sociologia vem há muito tempo impondo uma inflexão crítica ao entusiasmo que envolvia a sociedade da transparência e da informação[1]. Algumas ideias, dados e fatos apenas podem ser convertidos em informação séria quando submetidos à ponderação reflexiva, que, de regra, só se realiza num procedimento diferido (exigindo mais tempo), de modo a propiciar o seu amadurecimento. No dizer do afamado filósofo coreano, há muito radicado na Alemanha, Byung-Chul Han, a sociedade da transparência total – e isso é inegável – também apresenta os seus efeitos deletérios: “As coisas se tornam rasas e planas, quando se encaixam sem qualquer resistência ao curso raso do capital, da comunicação e da informação. (…) O tempo se torna transparente quando é aplainado na sequência de um presente disponível”[2].

A vida, muito especialmente a vida nos tribunais, às vezes exige o tempo, a reflexão, a liturgia e a forma de procedimentos não propriamente passíveis de desbastar. Diversamente, segundo Byung-Chul Han, a sociedade da transparência é, de regra, uma sociedade plana, sem contrastes e desnuda, às vezes pornográfica, no sentido de eliminar toda reflexão, ou profundidade hermenêutica, entre o que se vê como fato e o que se deve entender como sentido (cito): “As imagens tornam-se transparentes quando, despojadas de qualquer dramaturgia, coreografia e cenografia, de toda profundidade hermenêutica, de todo sentido, tornam-se pornográficas, que é o contato imediato entre imagem e olho”[3].

Nesse quadro, como escrevi há mais de 5 anos (ver aqui), só podemos estar bastante apreensivos com o verdadeiro processo de espetacularização dos tribunais brasileiros.

De fato, gostemos ou não, os media, num processo já agora irreversível, implodiram de vez qualquer sentido que antes retirávamos da realidade. No dizer de uma das mais autorizadas vozes sobre a simulação e os simulacros em que se converteu a vida contemporânea, submetida à tela total do universo virtual: “Estamos num universo em que existe cada vez mais informação e cada vez menos sentido. A informação é directamente destruidora ou neutralizadora do sentido e do significado. A perda do sentido está diretamente ligada à acção dissolvente, dissuasiva, da informação dos media e dos mass media”[4].

Esse é um dos grandes paradoxos da contemporaneidade: quanto mais informação, menos sentido; quanto mais informação, menos informados estamos. “Vídeo, tela interativa, multimídia, Internet, realidade virtual: a interatividade nos ameaça em toda parte”[5].

No caso dos tribunais, seria bom, em primeiro lugar, que a ampla publicidade a que vem sendo submetido o Poder Judiciário, muito especialmente o Supremo Tribunal Federal, fosse acompanhada de alguma responsabilidade social por parte dos órgãos de comunicação de massa. Bastaria, para tanto, que jornalistas e demais comentaristas especializados — a maior parte deles, sem formação jurídica — esclarecessem ao público que é essencial, imanente mesmo, a qualquer espécie de decisão, notadamente a decisão judicial, a possibilidade de mais de uma escolha. Decidir é tautologicamente escolher[6]. Se houvesse apenas uma escolha a magistrados, não se poderia falar seriamente em decisão. Onde só há uma possibilidade de decisão ou de escolha, em termos lógicos, na verdade, não há decisão a ser tomada, mas inexorável posição e conduta que se impõem a quem decide.

Aliás, como os jornalistas e órgãos de imprensa não aceitam que o Supremo possa, em nenhum caso, ter mais de uma escolha — por exemplo, absolver/condenar —, isso explica perfeitamente a sua impaciência com o curso dos processos. Por que demorar se todos já sabem o que deve ser feito?

Entretanto, é curial que os julgamentos levados a cabo numa democracia diferenciem-se daqueles próprios dos julgamentos prosseguidos na inquisição, em ditaduras ou em totalitarismos, precisamente, porque nessas aberrações históricas os indivíduos, por sua condição de classe ou de poder, já entram na corte — e no processo — em uma exclusiva posição: ou já condenados, ou já absolvidos. Na democracia, a condição de culpado ou inocente do acusado só se permite alcançar ao final de um devido, repito, ao final de um devido processo legal.

Para ficar num exemplo absolutamente extremo dessa abominável pretensão de condenar antes de se concluir o processo, no Malleus Maleficarum — conhecido como Martelo das Feiticeiras —, principal documento da igreja católica sobre procedimentos em inquéritos e julgamentos de bruxas e feiticeiras, compilado e escrito por dois inquisidores dominicanos, Heinrich Kraemer e James Sprenger, com base na bula Summis desiderantes do Papa Inocêncio VIII, como de regra não se admitia a possibilidade de inocência das mulheres acusadas de feitiçaria, os inquisidores advertiam que naqueles procedimentos em que, mesmo sob tortura, a acusada negasse a culpa, mesmo aí, ou, principalmente aí, é que se deveria condená-la, pois, numa pervertida justificativa de quem sempre enxerga o mal, só alguém que de fato tenha firmado pacto com o demônio teria força para negar sua culpa debaixo de tortura.

Numa democracia, contudo, é um contrassenso que alguém entre num processo já condenado.

Por outro lado, como antecipado, não se poder confundir publicidade com superexposição. Os processos judiciais são públicos, mas pressupõem reflexão e amadurecimento, o que, obviamente, exige tempo, formas e liturgias próprias, essenciais quando se cuida de julgar a vida das pessoas; em direção bem diversa, estão a transmissão e os espetáculos em tempo real, que, por sua própria natureza, prejudicam ou mesmo impedem a reflexão racional e amadurecida.

Decisões judiciais devem revelar racionalidade e adequação ao direito. Por isso carecem de tempo e exigem ser procedimentalizadas: isso as legitimam[7], e não a sua eventual conformação aos anseios de justiçamento de interesses massificados. Serenidade não se compatibiliza com campeonatos de popularidade e a ansiedade própria do horário nobre da televisão.

Julgamento justo exige algum distanciamento de quem decide. Tudo isso é impossível ou, no mínimo, improvável em julgamentos sob o influxo do encurtamento do tempo real e sob a influência do interesse da grande mídia. Com efeito, processos judiciais, sobretudo os de apelo midiático, exigem a serenidade de algum tempo de reflexão, além de distância e imparcialidade de quem decide em relação aos fatos e a seus supostos autores — no direito, quem é testemunha ou vítima, obviamente, não pode julgar. A mídia exige, ao contrário, o tempo real da transmissão “ao vivo” e a proximidade máxima de quem opina

Ainda uma vez Baudrillard: “Pela abolição da distância, do patos da distância, tudo se torna irrefutável. (…) A excessiva proximidade do acontecimento e de sua difusão em tempo real cria a indemonstrabilidade, a virtualidade do acontecimento que lhe retira a dimensão histórica e o subtrai à memória. Por toda parte onde opera essa promiscuidade, essa colisão de polos, há massificação”[8].

A eventual restrição a uma superexposição do Judiciário nem de longe constrangeria o princípio da publicidade que deve governar os processos judiciais em uma democracia. O modelo de televisionamento ao vivo é uma opção certamente legítima do legislador brasileiro e do próprio Supremo. Mas não se pode omitir que é uma exceção nas democracias ocidentais.

Em outras palavras, não se exige, para resguardar o princípio da publicidade, a superexposição a que vemos submetidos os juízes de nossa mais alta corte. Com efeito, no âmbito do devido processo legal, a publicidade existe, sobretudo, para servir a um julgamento justo, e não o contrário. Tanto é assim, que o magistrado poderá — na verdade, deverá — restringir a publicidade do processo sempre que perceber que, de alguma forma, a publicidade se mostre prejudicial à verdadeira finalidade a que se presta a instituição do Judiciário numa democracia, que é precisamente a concretização do devido processo legal, ou, em outras palavras, a concretização de um processo o mais formal e substancialmente justo possível.

O justice Scalia, em depoimento no Senado norte-americano, como já relatei aqui na ConJur, justificando por que aquela alta corte, celebrada em todo o mundo civilizado, permanece infensa à ideia de transmissão em tempo real por câmeras de televisão, afirmava que, no geral, dez pessoas tomam conhecimento integral do caso, mas, com câmeras no Tribunal, mil pessoas o comentariam sem saber do que falam, sendo que o resto da população formaria sua opinião a partir desse fosso de informação.

No caso brasileiro, a própria Constituição contém limitação constitucional expressa à publicidade dos julgamentos, “podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação” (art. 93, IX, CF).

O mais incrível é que, mesmo com o amplo acesso ao julgamento, a mídia não se conforma aos limites legítimos do seu código de comunicação (informar/não informar), pretendendo antes substituir-se aos próprios tribunais, na sua competência constitucional de dizer o direito, pois passou abertamente a confrontar ministros e juízes, ao dizer ao público com ares de correção e perícia técnica o que é lícito ou ilícito nas condutas daqueles que estão sendo submetidos a julgamento naquela Suprema Corte.

Mais do que isso, alguns órgãos da imprensa e seus profissionais, não se limitando a “julgar” o caso, passaram a julgar os próprios juízes e ministros, não aceitando qualquer outra resposta ao caso que não seja aquela por eles próprios — órgãos de imprensa — considerada adequada, além de invadir outro sistema social — a ética — para dizer o que, no comportamento de cada juiz do Supremo, é certo ou errado, legítimo ou ilegítimo.

Ora, entre as várias instâncias do Estado que pedem recolhimento, prudência e discrição para decidir — espero ter deixado claro que nada disso é antinômico com a necessidade de publicidade que governa o processo judicial —, neste mundo líquido e instantâneo, nenhum órgão corre mais perigo do que o Poder Judiciário. Muitos acreditam que os tribunais irão se legitimar com a superexposição. O que antevejo é a sua canibalização. Mais uma vez, Jean Baudrillard, a informação devora os seus próprios conteúdos[9]. Obviamente, que essa frase só tem sentido no âmbito de uma realidade em que as informações circulam, em verdadeiro paroxismo, de maneira absolutamente descontrolada (instantânea). De fato, num âmbito em que toda a informação (certa ou errada) é possível, e é possível instantaneamente, os mass media estão ao lado das massas na liquidação do sentido.

Nesse quadro, cabe aos juristas, especialmente aos juízes, exigirem e imporem, pela reflexão e tempo adequados, um pouco de dignidade aos julgamentos de destinos humanos.


[1] Han, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017.
[2] Han, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017, versão Kindle, posição 37 de 1122.
[3] Han, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017, versão Kindle, posição 37/45 de 1122.
[4] J. Baudrillard. Simulacros e Simulações. Lisboa : Relógio D’Água, 1981, p. 103.
[5] J. Baudrillard. Tela total. P. Alegre: Sulina, 2005, p. 129.
[6] N. Luhmann. Organisation und Entscheidungen. Westdeutscher Verlag GmbH, Opladen/Wiesbaden, 2000, p. 122 e ss.
[7] Lembro-me aqui do ótimo livro “Legitimação pelo Procedimento” de Luhmann, que a UnB deveria fazer um esforço para reeditar.
[8] J. Baudrillard. Tela total. P. Alegre: Sulina, 2005, p. 129.
[9] J. Baudrillard. Simulacros e Simulações. Lisboa : Relógio D’Água, 1981, p. 105.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!