Direito Civil Atual

Il terzo contrato, uma nova categoria de contratos empresariais (parte 2)

Autor

  • Carlos Alberto Garbi

    é mestre e doutor em Direito Civil pela PUC-SP. Pós-doutorando pela Universidade de Coimbra em ciências jurídico-empresariais. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Consultor e advogado. Professor e Chefe do Departamento de Direito Privado e Social da FMU-SP.

6 de agosto de 2018, 15h06

ConJur
Retomando a coluna anterior, em que discutimos as duas características de contratos em que uma das partes se encontra em posição de vulnerabilidade, iniciamos agora o estudo da nova categoria de contrato, il terzo contrato.

Essa terceira categoria de contrato é devida à ideia de assimetria de poderes das partes na relação. Resulta, portanto, numa espécie de macrocategoria, unitária, na qual o que importa é só a assimetria de poderes das partes, e não a qualidade de consumidor ou empresário, porque esse desequilíbrio pode representar um abuso da autonomia contratual e autorizar a intervenção do legislador e do juiz em busca do equilíbrio desejável. Esse traço comum pode orientar, como veremos, a unidade do paradigma do direito contratual.

Nas relações de consumo, a tutela do contratante vulnerável é estabelecida a partir, fundamentalmente, da intervenção legislativa na disciplina das práticas e cláusulas abusivas, mesclando regras de nulidade e responsabilidade. Para outras relações contratuais, supostamente negociadas em igualdade de condições e informações pelas partes empresárias, não existe tutela alguma, como se esses contratos pudessem ser compreendidos plenamente no modelo clássico liberal (primeiro contrato). Há tutela no âmbito da concorrência.

A restrita liberdade e, portanto, a imperfeita contratação, concretizada sem que o contratante fraco possa participar efetivamente das regras a que deve se submeter, justifica o controle do legislador sobre essas relações. Esse controle está legitimado pela fraqueza e vulnerabilidade da parte em relação a outra e pelo interesse do Estado Social em promover a igualdade substancial e a equidade nas relações jurídicas, seja a parte empresária ou não. É sobre este ponto, como antecipamos, que se pode investigar a unidade do paradigma do direito contratual na busca do equilíbrio das relações de força[1].

A tutela para esta nova situação, e digo nova do ponto de vista do seu desenvolvimento na doutrina, não se dá simplesmente pela aplicação aos contratos entre empresas (quando uma delas se pode dizer fraca e dependente econômica da outra), por empréstimo, do regime jurídico das relações de consumo, porque não é possível reconhecer nessas relações, objetivamente, o desequilíbrio contratual presumido, desde a sua formação, como ocorre com as relações de consumo[2].

Na busca da tutela desta situação de assimetria de poderes nos contratos entre empresas deve-se perquirir sobre a relação de dependência econômica[3] e a sua repercussão na estrutura concorrencial do mercado, ainda que não resulte vantagem anticompetitiva em favor da parte mais forte. A tutela do desequilíbrio nas relações entre empresas exige a demonstração de que uma empresa é dependente economicamente da outra e que o abuso se verificou em razão desta dependência[4]. Consequentemente, a tutela da assimetria de poderes contratuais será tanto diversa quanto é a sua causa. A unidade do paradigma contratual não está na forma específica de tutela, mas na razão de equidade que a justifica.

A liberdade contratual e a preocupação com a reputação da parte mais forte, frequentemente consideradas pela doutrina liberal americana como suficientes para inibir contratos abusivos, não são capazes de impedir que nos casos de dependência econômica, evidenciada em contratos de distribuição, franchising, de rede e outros tipos empresariais, possa ocorrer a assimetria patológica de poderes e levar a abusivas contratações. Como bem anota Paula A. Forgioni, o ilícito antitruste e os abusos e inadimplementos do contrato são aspectos que podem misturar-se no mundo dos fatos e do direito, numa interpenetração dos direitos contratual e antitruste[5].

O exame da correção do terceiro contrato, de outra parte, não pode recair isoladamente sobre uma cláusula ou outra, mas deve passar pela racionalidade própria da empresarialidade e compreender amplamente as relações entre as partes. É possível perceber, diante desta distinção entre as hipóteses de assimetria contratual (relações de consumo e dependência econômica), que a intervenção no contrato, dirigida a promover o seu equilíbrio, não tem a mesma natureza, embora se possa aceitar parte da técnica que se aplica nas relações de consumo, como por exemplo a nulificação de cláusulas e a responsabilização do abuso.

Por isso sustenta Pardolesi que a intervenção no contrato deve limitar-se à hipótese em que a disparidade de poderes negociais dos contratantes não se verifica apenas em determinado ponto da relação contratual, mas está presente na sua origem, na essência da própria atividade contratual, anulando o poder de barganha, de modo a que se possa afirmar que o contrato não teria sido feito naquelas condições se houvesse igualdade de poderes entre as partes.

A fórmula mágica, diz Pardolesi, é o abuso[6], que será corrigido por uma intervenção e poder conformativo de equidade, que não se ajusta aos contratos negociados ou com a tutela que se confere ao consumidor[7]. Não se trata, evidentemente, de defender, como bem adverte Emanuela Navarretta, uma genérica instância equitativa ao contrato e à autonomia privada, ou suscitar um juízo de justiça contratual, que pode conduzir o intérprete a soluções absolutamente equivocadas[8]. Somente quando a disparidade de poderes possa ter influência determinante na alteração da liberdade e autonomia da parte contratante é que se pode falar em abuso, o que depende da investigação casuística dirigida à causa substancial do desequilíbrio de poderes e sua relação com o contratado. O exame não deve recair, como visto, exclusivamente, sobre as cláusulas contratuais (injustas ou desiquilibradas) previamente apresentadas, mas na ampla relação de cooperação entre as partes e na essência da conduta reprovada lesiva ao equilíbrio econômico do contrato[9].

Decorre da ideia de terceira categoria de contratos também investigar o grau de intervenção judicial admitida na relação contratual. Se a respeito dos contratos clássicos (liberais) a intervenção do juiz é mínima, enquanto nas relações de consumo o ativismo judicial é favorecido, é natural admitir para a terra do meio uma intervenção intermediária, visando a busca de “standard valorativos” e “cláusulas gerais”[10]. O risco, evidentemente, na admissão desta intervenção judicial nos contratos entre empresas está na dificuldade de operar essa interferência sem alterar substancialmente a equação econômica própria do contrato e ferir a segurança jurídica, que tem especial valor nessas relações. No entanto, a tutela necessária a esta assimetria não é a causa da morte ou falência do paradigma clássico dos contratos, consubstanciado na segurança e no valor das declarações. É antes a salvação do contrato pelo equilíbrio da relação.

A definição de um terceiro contrato, a despeito das dificuldades existentes na formulação de uma disciplina jurídica adequada e da resistência de parte da doutrina, tem o valor de individualizar o problema e provocar a formulação de método. O reconhecimento desta fattispecie contratual provoca ainda o debate sobre a unidade do paradigma do direito contratual, porque evidencia que as duas categorias de contrato conhecidas não oferecem respostas satisfatórias a outras categorias contratuais. São duas polaridades opostas, que não podem ser reduzidas a uma matriz comum, ambas incapazes de cobrir todas as possíveis manifestações da atividade contratual. Entre estes dois polos, afirma Pardolesi, se estende uma terra do meio, órfã de caracterização relevante e que remete a uma regulação amorfa. É aqui que se delineia a hipótese do terceiro contrato (B2b) e se coloca o desafio de encontrar a disciplina adequada[11].

Na próxima semana a terceira e última deste artigo aborda a tutela adequada a essa categoria de contrato e a sua aplicação na jurisprudência brasileira.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Roma 2-Tor Vergata, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).


[1] Nicolò Lipari observa que o contrato não pode mais ser reduzido a um puro ato de vontade ou ao resultado de uma técnica de composição de interesses realizada segundo a lógica de natureza mercantil. O contrato perdeu a sua originária conotação de expressão máxima de liberdade privada. Identifica Lipari no direito comunitário europeu o superamento de um parâmetro subjetivo de exame das circunstâncias para evidenciar a necessidade de sua valoração objetiva na apreciação da conduta mais oportuna do contratante, inclusive dentro do território da transação econômica, e definir a conformidade de uma conduta devida, porque o exame do contrato não deve recair sobre o ato, mas sobre a relação. A nova realidade europeia do contrato, afirma Lipari, considera que o direito, enquanto medida do agir humano, é por natureza multiforme e variável, de modo que não pode haver um método unitário capaz de racionalizar e sistematizar essa realidade variegada e complexa, de forma que o terceiro contrato tende a assumir um significado peculiar na progressiva revisão da categoria de contrato, porque prescinde de uma diferença qualitativa dos contratantes para assegurar ao juiz o poder de controle também sobre o conteúdo de um contrato entre empresários, desvinculando-se do paradigma do contrato quanto à liberdade determinativa da parte, para examinar a possibilidade de o contrato se tornar instrumento de abuso. Adverte Lipari para não se deixar atrair pela força condicionante de uma categoria, mas pensar segundo a lógica de uma série diferenciada de disciplinas para chegar a um sistema geral do direito dos contratos. Portanto, o superamento de uma ótica condicionante da categoria do contrato pode levar ao desenvolvimento de uma teoria geral para o contrato. Como diz o autor, embora possa parecer não significativa a tentativa do sistemático enquadramento do terceiro contrato, o que conta é evidenciar “il disagio dello studioso di fronte all’evoluzione dell’idea stessa di contrato.” Lipari sustenta que as categorias de direito civil não têm despertado o interesse particular do jurista, que fazem uso delas como instrumento essencial do seu procedimento argumentativo, o que pode levar o jurista a ignorar os instrumentos formativos e a própria estrutura conceitual. Deve o jurista saber que o objeto da sua análise não pode ser simplesmente uma biblioteca de textos normativos, mas deve abraçar o panorama de um contexto de fatos e de realidade empírica utilizando as categorias como instrumento operativo, assim como é o bisturi para o cirurgião. O jurista deve ter nas categorias o subsidio precioso para classificar os fatos e assegurar a adequada disciplina e facilitar o processo aplicativo do direito a partir da força sedimentada nos conceitos. Nicolò Lipari sustenta a necessidade de romper com a velha cristalização conceitual das categorias, cujo uso deve ser repensado. É uma questão cultural. É nesse sentido, de revisitar as categorias fundamentais do direito civil, que o autor aborda o contrato e, como enuncia na apresentação da sua obra, a história futura dirá se aquele direito vivente, que estamos habituados a aplicar, reclama novos esquemas conceituais ou se ainda é possível adotar as velhas definições. Se trata, como diz o autor, “di sapere se stiamo facendo prosa o poesia” (Le categorie del diritto civile. Giuffrè Editore, 2013, p. 3-8 e 139-166).
[2] Não significa que não se tem espaço para estender disposições do Código de Defesa do Consumidor aos contratos entre empresas, como bem sustenta Paula Castello Miguel, especialmente quanto ao dever de informação, interpretação favorável ao contratante vulnerável, garantia contratual e as disposições sobre cláusulas abusivas que forem pertinentes (Contratos entre empresas. Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 159-178).
[3] Ver a propósito da definição e das situações de dependência Paula A. Forgioni (Contrato de Distribuição. Editora Revista dos Tribunais, 3ª ed., p. 227-230.
[4] Nesse sentido Ernesto Capobianco (op. cit., p. 178).
[5] Op., cit., p. 242-243.
[6] O abuso de direito previsto no art. 187 do Código Civil, conforme Paula A. Forgioni, “pode concretizar-se mediante o abuso de dependência econômica, desde que o exercício das prerrogativas contratuais seja contrário ao seu fim econômico ou à boa-fé” (Contrato de Distribuição. Editora Revista dos Tribunais, 3ª ed., p. 273).
[7] Op. cit., p. 347-348.
[8] Luci e ombre nell’immagine del terzo contrato. Op. cit., p. 318.
[9] Ver nesse sentido Giuseppe Amadio. Op. cit., p 26.
[10] É o que defende Giuseppe Amadio (op. cit., p. 29).
[11] Conclusioni. Op. cit., p. 346. Há quem sustente a existência de um quarto contrato consumer-to-consumer (C2C), envolvendo o comércio entre consumidores, em geral intermediado por sites de leilão ou de classificados. É possível ainda pensar no quinto contrato business-to-governement (B2G) relacionados à contratação entre empresa e governo.

Autores

  • Brave

    é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP, chefe do Departamento de Direito Civil das Faculdades Metropolitanas Unidas e coordenador de pós-graduação de Direito Civil da Escola Paulista da Magistratura.

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