Opinião

Os "amigos da corte" e a crise de parcialidade do Poder Judiciário

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5 de agosto de 2018, 6h34

A Constituição da República Federativa do Brasil, logo no seu artigo 1º, enuncia que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

O povo, de quem emana todo o poder, constituiu três Poderes, atribuindo a cada um deles o exercício de determinada função pública típica, em prol da pacificação social.

Dentre esses Poderes constituídos se situa o Poder Judiciário, incumbido, por função delegada pelo povo, do exercício da jurisdição, ou seja, do poder-dever de aplicar a lei ao caso concreto, devendo fazê-lo, logicamente, de maneira imparcial e com equidade.

Comumente se utiliza a figura da Deusa Têmis, “divindade grega por meio da qual a justiça é definida, no sentido moral, como o sentimento da verdade, da equidade e da humanidade, colocado acima das paixões humanas”1, para representar a imparcialidade do Poder Judiciário, eis que os pratos iguais da balança de Têmis indicam que não há diferenças entre os homens quando se trata de julgar os seus erros e acertos.

Mas afigura-se realmente possível afirmar que não há distinção entre os homens aos olhos da Justiça? Ao menos em território nacional, há reiterados exemplos de que não!

Aqui, parece que com mais razão está Eduardo Galeano: “Somos todos iguais perante a lei. Perante que lei? Perante a lei divina? Perante a lei terrena, a igualdade se desiguala o tempo todo e em todas as partes, porque o poder tem o costume de sentar-se num dos pratos da balança da justiça” (GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre, RS: L&PM Editores, 2010. p. 207).

Inúmeros casos concretos evidenciam que dentre os “homens” há aqueles que podem ser considerados como “amigos da corte” e que, por isso, recebem olhar diferenciado por parte da Justiça.

Um caso, sem tanta repercussão midiática nacional, tem causado espanto aos operadores do Direito, ante o andamento sui generis conferido a um processo interposto em desfavor de um dos “amigos da corte”.

Na cidade de Araraquara, no interior de São Paulo, um cidadão, após cumprir integralmente a pena privativa de liberdade que havia sido a ele imposta, foi novamente preso, de maneira flagrantemente ilícita, assim permanecendo por longos e sofridos 10 meses e 13 dias, até a sua pena ser cumprida, pela segunda vez.

Este cidadão, integrante do povo (de quem emana todo o poder, vale frisar), solicitou à Defensoria Pública de São Paulo que fosse ajuizada ação de indenização em desfavor da Fazenda Pública e, também, do juiz de Direito da Vara de Execuções Criminais, por entender que a sua prisão indevida decorreu, diretamente, da postura pessoal do julgador ao longo do feito.

Ante o princípio do acesso à Justiça, insculpido no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal, de acordo com o qual toda lesão ou ameaça a direito deve ser apreciada pelo Poder Judiciário, e existindo precedente do próprio Tribunal de Justiça de São Paulo no sentido de que a responsabilidade direta do juiz não pode ser obliterada, devendo-se analisar, no mérito, o preenchimento dos requisitos legais de tal responsabilização (Apelação Cível 212.661-1), houve a distribuição da ação.

O que se seguiu, a partir de então, é prova inequívoca de que a Deusa Têmis, no Brasil, diferencia os homens quando de seu julgamento. Para não nos alongarmos por demasiado, cumpre indicar alguns dos diversos “equívocos” cometidos no caso concreto acima mencionado.

Uma hora e 40 minutos após a distribuição da ação, o juízo de 1ª instância conseguiu analisar detidamente mais de 400 páginas para atestar que o magistrado agiu dentro dos ditames legais do exercício da função, fundamentando suas decisões, não se podendo falar em prática dolosa ou fraude, menos ainda em atraso injustificado. E o sentenciado teve oportunidade de ofertar recursos contra as decisões do magistrado.

Inexplicavelmente, ao mesmo tempo, asseverou o juiz da causa que, para auferir se houve dano moral a ser indenizado pelo Estado, se afiguraria necessário observar o devido processo legal, embora a responsabilidade civil do Estado seja objetiva, e a do juiz, subjetiva.

Em consequência, decidiu: “Indefiro a deflagração da instância por inépcia da inicial, devendo o autor emendar a peça vestibular para excluir o Juiz de Direito do polo passivo da ação”.

Como o cidadão (de quem emana todo o poder, ressalta-se novamente) não tem o interesse de apresentar a petição inicial nos moldes que o Estado-juiz lhe impôs, pois pretende que o juiz que lhe aplicou uma pena por ele tida como ilegal seja responsabilizado pessoalmente pelo seu ato, houve a apresentação de recurso de apelação e decisão judicial para que os réus fossem citados para apresentar contrarrazões, na forma do artigo 1.010, parágrafo 3º do Código de Processo Civil.

Encerrada a jurisdição em 1ª instância, esperava-se que o feito fosse seguir o seu trâmite regular, com a apresentação de contrarrazões e remessa ao Tribunal de Justiça.

Longe disso: após a citação do juiz de Direito para responder à ação, eis que a Associação Paulista dos Magistrados (Apamagis) requereu o seu ingresso no feito como assistente simples do réu.

Embora já houvesse indeferido a inicial e encerrado a sua jurisdição, o juiz de 1ª instância, sem ao menos ouvir o autor, deferiu a intervenção da Apamagis no feito, em que pese a associação de classe não ostentar interesse jurídico na causa (conforme exige o artigo 119 do Código de Processo Civil), mas, sim, e tão somente, interesse corporativo.

Na mesma oportunidade em que deferiu o ingresso da associação de classe, o juiz de 1ª instância, que já havia extinguido sua jurisdição, determinou a suspensão do processo individual até o julgamento do Recurso Extraordinário 1.027.633, Tema 940, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, em que se discutirá a possibilidade de propositura de ação diretamente em desfavor do agente público, inobstante não exista decisão de suspensão proferida pelo relator do recurso no Supremo Tribunal Federal, conforme exige o parágrafo 5º do artigo 1.035.

Diante disso, com o fito de preservar a competência da suprema corte deste país, o jurisdicionado apresentou reclamação ao Supremo Tribunal Federal; todavia, o ministro relator, Ricardo Lewandowski, originário do Tribunal de Justiça de São Paulo, negou seguimento à reclamação, sob o “fundamento” de que “somente o Supremo Tribunal Federal pode determinar nacionalmente o sobrestamento dos processos que versem sobre o mesmo tema cuja repercussão geral foi reconhecida” e de que “a suspensão foi determinada apenas em relação a um único feito, o que não usurpa a competência desta Suprema Corte”.

Verdadeira afronta à inteligência da parte; o “todo”, como se sabe, é composto de “unidades”, e a competência do Supremo para determinar a suspensão do “todo”, logicamente, o torna competente para a suspensão das “unidades”; a prevalecer o engenhoso raciocínio do ilustre ministro, poderia haver, hipoteticamente, a suspensão de todos os processos no país, por decisões individuais dos juízes de 1ª instância (o que acarretaria na suspensão do todo), sem que, com isso, a competência do Supremo fosse afrontada.

A Apamagis interpôs recurso de agravo de instrumento contra a sentença (isso mesmo, interpôs recurso de agravo contra uma sentença) do juiz de 1ª instância que indeferiu a liminar, por ilegitimidade passiva do juiz de Direito réu na ação; em que pese a notória ausência de interesse recursal da associação (já que a decisão de 1ª instância foi a melhor possível para o seu assistido), o Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu efeito ativo ao recurso para excluir (o já excluído) juiz do polo passivo da demanda.

E, como derradeiro destaque deste artigo (embora outros vários pudessem ser enfocados), o Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio de petição datada de 10 de julho, requereu a sua habilitação no feito como amicus curiae e a extinção da ação sem julgamento do mérito com relação ao juiz demandado, por ilegitimidade passiva (o que já foi feito e os órgãos jurisdicionais, sem qualquer pudor, negam-se a conferir o regular andamento ao processo, com a oportuna remessa do recurso de apelação ao tribunal para julgamento) ou, subsidiariamente, a improcedência da ação em relação ao juiz de Direito.

Há tempos não se contemplava tamanho absurdo.

Veja-se: o Poder Judiciário, incumbido de aplicar a lei ao caso concreto com imparcialidade, requer a sua habilitação em um processo individual para pedir a extinção ou a improcedência com relação a uma das partes?

O tribunal paulista, afinal, irá julgar ou defender o réu?

O amicus curiae, expressão latina que significa “amigo da corte” ou “amigo do tribunal”, é a pessoa ou instituição estranha à causa, que pode contribuir com o Poder Judiciário para seu devido e justo deslinde.

Na espécie, teremos o Poder Judiciário contribuindo com o próprio Poder Judiciário para que se obtenha a improcedência da ação no que tange ao pedido formulado em desfavor do juiz de Direito, em uma verdadeira manifestação de transtorno dissociativo de personalidade.

Talvez pretenda o Tribunal de Justiça de São Paulo criar uma hipótese de desaforamento3 no processo civil; uma hipótese, inclusive, de desaforamento estadual, eis que a habilitação do Tribunal como amicus curiae em defesa do juiz de Direito demandado cria a legítima expectativa no jurisdicionado de que todos os juízes vinculados àquele tribunal adotarão a mesma postura, qual seja, defender o juiz de Direito processado.

Não bastasse o absurdo ululante que daí ecoa, oportuno registrar que o artigo 138 do Código de Processo Civil exige, para a intervenção do amicus curiae, a “relevância da matéria”, a “especificidade do tema” e a “repercussão social da controvérsia”.

Com o máximo respeito, o tema referente à responsabilidade civil dos agentes públicos não é dotada de especificidade a justificar tal intervenção e há muito é levada a julgamento pelos tribunais pátrios.

Ademais, a controvérsia instalada não goza de repercussão social, ao menos que se considere que a admissão do processamento de um pedido em desfavor de um dos “amigos da corte”, que necessitará, em razão disso, contratar um advogado para a realização de sua defesa (o que não constitui qualquer demérito, ao menos para a população em geral), possa gerar tal repercussão.

Para o Tribunal de Justiça de São Paulo, todavia, a intervenção como amicus curiae se justificaria, pois, conforme noticiado em sua página na internet na quinta-feira (2/8), “há dezenas de demandas idênticas, patrocinadas pelos mesmos causídicos e em face dos mesmos juízes, na maior parte das vezes sob o pálio da justiça gratuita, indicando tentativa de intimidação do Poder Judiciário do Estado de São Paulo” (referência à petição do próprio TJ-SP que solicitou sua intervenção na feito).

Cumpre, aliando-nos à boa-fé, esclarecer que: a) não há “juízes” no polo passivo da ação em comento, mas apenas um juiz; b) os “causídicos” mencionados não patrocinaram “dezenas de demandas idênticas” em face do mesmo juiz; esta é a única demanda ajuizada em face do juiz da Vara das Execuções Criminais de Araraquara por um único causídico (a Defensoria Pública de São Paulo, em cumprimento à sua missão constitucional de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados), bastando realizar uma consulta no site do próprio tribunal, pelo nome do juiz demandado, para se comprovar que não há outra ação idêntica a esta.

Aparentemente, o TJ-SP tem buscado justificar o injustificável, através da criação de um factoide em torno da suposta “tentativa de intimação do Poder Judiciário do Estado de São Paulo”, quando, a bem da verdade, não se atentou (ou não quer se atentar) para o fato de que o cidadão não busca “intimidar” o Poder Judiciário, almejando, sim, e tão apenas, que o Poder Judiciário de São Paulo, cumprindo o dever que a Constituição Federal lhe impõe, analise, com a devida isenção, se houve excesso por parte de um de seus membros, a justificar a responsabilização pessoal deste pelos graves danos sofridos pelo jurisdicionado.

Na medida em que o Tribunal de Justiça de São Paulo busca transparecer que a ação individual proposta interessa, direta ou indiretamente, a todos os magistrados paulistas (o que, como visto, não condiz com a realidade), deveria o próprio tribunal estadual remeter o caso ao Supremo Tribunal Federal, pois, conforme prevê o artigo 102, I, “n” da norma positiva suprema, compete originariamente à suprema corte processar e julgar “a ação em que todos os membros da magistratura sejam direta ou indiretamente interessados, e aquela em que mais da metade dos membros do tribunal de origem estejam impedidos ou sejam direta ou indiretamente interessados”.

Enfim, reiteradas e inimagináveis pérolas jurídicas, encontradas “ocasionalmente” em um processo individual ajuizado em desfavor de um juiz de Direito.

Respeitosamente, é chegada a hora de o Poder Judiciário se atentar para a real missão que lhe fora delegada pelo povo, qual seja, a aplicação da lei ao caso concreto, indistintamente a todos os cidadãos.

O autor da ação individual proposta em desfavor do juiz de Direito acredita que ainda “há juízes em Berlim”4, ou melhor, que ainda “há juízes no Brasil”. Juízes capazes de, efetivamente, exercer a função pública que lhes fora confiada, independentemente do nome ou do cargo ocupado pela pessoa que figura como autor ou como réu na ação sob julgamento.

Aguarda-se que, efetivamente, a esperança deste cidadão ecoe no Poder Judiciário e seu pedido (assim como inúmeros outros espalhados pelo Brasil) recebam o devido julgamento, com imparcialidade e equidade.


1 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaSimboloJustica&pagina=temis
2 Instituto previsto no Código de Processo Penal para julgamentos perante o Tribunal do Júri.
CPP – Art. 427. Se o interesse da ordem pública o reclamar ou houver dúvida sobre a imparcialidade do júri ou a segurança pessoal do acusado, o Tribunal, a requerimento do Ministério Público, do assistente, do querelante ou do acusado ou mediante representação do juiz competente, poderá determinar o desaforamento do julgamento para outra comarca da mesma região, onde não existam aqueles motivos, preferindo-se as mais próximas.
3 Expressão extraída da célebre passagem de O moleiro de Sans-Souci, de François Andrieux, em que o rei Frederico II da Prússia passou a exigir que o vizinho de seu palácio de verão destruísse o moinho velho que havia na propriedade daquele, pois impedia o rei de contemplar integralmente a bela paisagem. O moleiro respondeu que não pretendia demolir o seu moinho, afirmando que, independentemente do título real de Frederico II, ainda havia juízes em Berlim.
A expressão “ainda há juízes em Berlim”, então, passou a ser utilizada por aqueles que creem na Justiça como meio hábil para enfrentar arbitrariedades.

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