Observatório Constitucional

Ingerências em cortes constitucionais são sintomas de patologia democrática

Autor

  • Beatriz Bastide Horbach

    é doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo mestre em Direito pela Eberhard-Karls Universität Tübingen (Alemanha) assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

4 de agosto de 2018, 10h52

Spacca
Tentativa de ingerências em cortes constitucionais — seja em sua composição ou por meio de limitação de poderes — é alerta máximo de grave patologia no sistema democrático. Não apenas alguns exemplos atuais demonstram isso, como o que ocorre na Polônia, na Turquia e na Venezuela, mas também históricos, aqui sendo válido mencionar a própria história brasileira, com as intervenções feitas no Supremo Tribunal Federal durante a ditadura militar1.

No cenário mundial, ganham especial destaque as medidas que vem sendo executadas pelo governo polonês com objetivo de limitar os poderes do Judiciário do país. Desde novembro de 2015, após o partido conservador Lei e Justiça (PiS) vencer as eleições parlamentares, a Polônia enfrenta uma série de idas e vindas legislativas que, por fim, concederam à agremiação dominante controle dos principais órgãos nacionais — ao argumento de que as reformas seriam necessárias para aumentar a transparência e a confiabilidade de um sistema ainda marcado pela antiga influência comunista.

Por lá, os constitucionalistas têm falado muito na importância da “autodefesa institucional”, utilizando-se de premissas de Direito Penal para justificar a atuação da Corte Constitucional em momentos em que ameaçada ou agredida por outros órgãos — no caso, pelo Parlamento. Ao analisar a proporcionalidade da resposta dada pelo tribunal quando provocado, chegam à conclusão de que muitas de suas ações são legítimas e adequadas para defender sua independência.

Para entender a crise, especialmente no tocante às alterações feitas na composição da Corte Constitucional polonesa, é preciso voltar ao início de outubro de 2015, altura em que a Câmara baixa do Parlamento (Sejm) ainda tinha maioria formada pelo partido Plataforma Cívica (PC). Na iminência de perder o controle para o PiS, os parlamentares elegeram em sua última sessão cinco novos membros para a Corte Constitucional — para três mandatos que se expirariam em novembro, logo após as novas eleições, e para duas vagas que abririam em dezembro. Seguiram, para tanto, procedimento previsto por lei aprovada alguns meses antes.

Confirmada a eleição do candidato do PiS à presidência, Andrzej Duda, novo gabinete foi formado e, dias depois, o Parlamento aprovou emendas à lei da Corte Constitucional, que incluíram limitação dos mandatos do presidente e do vice-presidente do tribunal, corte de orçamento e estipulação da necessidade de indicação de cinco novos juízes — justamente os cinco juízes indicados pelo parlamento anterior, que ainda não tinham assumido o cargo.

Em verdadeira corrida contra o tempo, em 2 de dezembro de 2015 o Sejm elegeu cinco novos membros da Corte Constitucional. Curiosamente, os cinco novos apontados prestaram juramento ao presidente do país em cerimônia fechada, na madrugada seguinte à aprovação, e seguiram direto para o tribunal acompanhados do Gabinete de Proteção do Governo para ocupar escritórios do prédio.

Tudo isso ocorreu na madrugada anterior ao julgamento de inconstitucionalidade da lei aprovada meses antes pelo Partido Cívico e que permitira a indicação dos cinco juízes antes das eleições. Ao analisá-la, em 3 de dezembro de 2015, a corte declarou constitucional a nomeação dos três membros indicados pelo CP para as vagas que abriram em novembro, mas declarou inconstitucional a indicação feita para as vagas de dezembro. Todavia, o presidente do país recusou-se a aceitar o juramento desses três ministros indicados pelo governo anterior, alegando que todas as 15 vagas da corte já estavam ocupadas — pelos cinco membros nomeados horas antes.

A situação gerou um “limbo legal”, já que três juízes validamente indicados não puderam assumir o poder, enquanto o presidente da corte, Andrzej Rzepliński, negou-se a distribuir ações aos três “pseudojuízes” indicados pelo PiS. O tribunal ficou funcionando com apenas 12 membros.

As mudanças não pararam. Alguns dias depois foi aprovada nova lei de reorganização da Corte Constitucional. A partir daí, foi introduzido novo quórum de votação, que passou a ser de dois terços (ainda que a Constituição polonesa exija apenas a maioria simples), bem como prazo para julgamento dos processos e a possibilidade de os juízes serem dispensados a pedido do Parlamento, do presidente ou do Ministério da Justiça.

As ações perpetradas pelo governo contra a Corte Constitucional incluíram, ainda, a ameaça de transferência da sede do tribunal da capital, Varsóvia, para uma remota cidade ao leste do país, a rejeição do orçamento anual e acusações púbicas de ineficiência feitas pelo Ministro da Justiça.

O momento ápice da crise ocorreu em março de 2016, quando a corte analisou a constitucionalidade das alterações feitas pelo PiS à lei do Tribunal Constitucional. A corte julgou o caso sem os três “pseudojuízes” e recusando-se a utilizar o rito estipulado exatamente pela lei que estavam apreciando. Fundamentou a decisão, todavia, em rito adotado pela própria constituição polonesa. Declarada a inconstitucionalidade das emendas, a primeira-ministra recusou-se a publicá-la.

Em dezembro de 2016 chegou ao fim o exercício da Presidência da corte pelo juiz Andrzej Rzepliński, que desempenhou papel fundamental no início da crise e foi firme nas críticas ao governo por ofensa ao Estado de Direito. Para sua substituição foi indicada uma das integrantes do grupo de juízes que estavam no “limbo”, que, ao assumir, de pronto autorizou que seus colegas também tomassem assento no tribunal. Algumas semanas depois, a pedido do ministro da Justiça, suspendeu três juízes empossados em 2010, ao mesmo tempo em que forçou outro membro a uma licença compulsória A partir daí é possível dizer que o tribunal passou a ser mais alinhado ao governo em suas decisões.

Todo esse quadro gera ainda mais perplexidade por ocorrer em país integrante da União Europeia. Em janeiro de 2016, a Comissão Europeia decidiu aplicar, de forma inédita, o procedimento do artigo 7º do Tratado da União Europeia. Trata-se de medida para verificar se os valores europeus estariam sendo consideravelmente violados por algum Estado-membro — isto é, liberdade, democracia, igualdade, Estado de Direito e respeito pela dignidade humana e direitos humanos — para possível adoção de medidas mais efetivas.

A Comissão de Veneza também se manifestou em mais de uma oportunidade sobre as ingerências na Corte Constitucional da Polônia. Por certo, esse será um grande teste dos instrumentos disponíveis para a garantia da estabilidade constitucional de países da comunidade.

Em meio a essa turbulência, o Ministério das Relações Exteriores polonês enviou declaração de amizade a Turquia, em telegrama especial dirigido ao presidente Recep Erdoğan no aniversário da tentativa de golpe de 2016. A aproximação é curiosa por também ser o governo turco responsável por diversas tentativas de neutralizar a atuação do Poder Judiciário.

Por lá, reforma constitucional realizada em 2010 passou a permitir que os turcos ingressassem com ações individuais diretamente endereçadas ao tribunal constitucional, feito bastante elogiado especialmente pelos países da União Europeia. Por outro lado, aumentou o número de membros da corte de 11 para 17 e limitou o mandato dos seus magistrados. Já nessa época passou a haver rumores de que as mudanças objetivavam, em verdade, conter um tribunal caracterizado por defender o laicismo turco e que vinha constantemente se manifestando contrário a muitas medidas levadas a cabo por Erdoğan.

Não foram raras as vezes em que Erdoğan dirigiu-se contra a Corte Constitucional em suas manifestações públicas. A campanha de deslegitimação do órgão também pode ser verificada pelo descumprimento de suas decisões por instâncias inferiores, já influenciadas pelo presidente. O tribunal, todavia, seguiu julgando casos de acordo com os preceitos constitucionais, mostrando independência especialmente no julgamento de Habeas Corpus de presos pelo atual regime. Em um dos casos mais famosos, em que determinou a soltura de jornalistas, mas a ordem não foi cumprida, a Turquia acabou condenada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que indicou não haver razão para chegar a conclusão diferente da do Tribunal Constitucional turco.

Novas alterações constitucionais foram feitas em 2017 e, com as eleições deste ano, Erdoğan assumiu novo mandato com ainda mais poderes. A Comissão de Veneza também emitiu parecer sobre o caso turco em que manifesta preocupação pelo caráter autoritário das reformas, consideradas necessárias e progressistas pelo atual governo.

Assim como a Europa dispõe de meios diplomáticos e institucionais de lidar com a questão polonesa e turca, na América Latina os países do Mercosul possuem a opção da chamada “cláusula democrática”, prevista no Protocolo de Ushuaia e aplicada como tentativa de restabelecer a ordem democrática da Venezuela. Nesse país, as ingerências foram tantas que chegaram ao ponto de fazer com que o próprio guardião da Constituição, o Supremo Tribunal de Justiça, chegasse a suspender os poderes do Parlamento, de maioria contrária ao governo, em decisão de controle de omissão constitucional.

Em terras latino-americanas, interferências em tribunais constitucionais também fizeram parte da história de regimes ditatoriais da região, inclusive do brasileiro. Poucos dias após o golpe que levou à destituição do presidente João Goulart, foi publicado o Ato Institucional 1, de 9 de abril de 1964, que autorizou, entre outras medidas, a suspensão das garantias constitucionais de vitaliciedade e estabilidade, podendo ser seus titulares, mediante investigação sumária, demitidos, dispensados, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados, desde que tivessem tentado contra a segurança do país, do regime democrático e da probidade da administração pública.

No Supremo Tribunal Federal, a expectativa sobre as consequências da deposição do governo no funcionamento da Corte e na independência de seus magistrados foi, por óbvio, alta. Alguns dias após assumir a presidência do país, Castello Branco fez rápida visita protocolar ao STF e deu certo alívio inicial aos ministros. Confirmou, então, sua reverência à instituição e declarou aos seus membros que “a Justiça, quaisquer que fossem as circunstâncias jurídicas políticas, não tomava partido, não era favor ou contra, não aplaudia nem censurava. Mantinha-se equidistante, acima das paixões políticas”.

Tratava-se, por certo, de conceito difícil a ser mantido no regime que acabara de ser instaurado. Era esperado que os ministros que colaboraram com o sistema anterior — Evandro Lins e Silva e Hermes Lima — fossem atingidos de imediato, o que só veio a ocorrer em momento posterior. Não apenas havia manifestações no Congresso nesse sentido, mas também diversos jornais lançaram campanhas, declarando estranhar a inércia da revolução contra esses “dois agitadores e comunistas” da Suprema Corte.

Nesse período, foram vários os esforços institucionais do STF em proteger a manutenção de suas garantias, em especial as defesas conduzidas pelo seu então presidente, Ribeiro da Costa. Este, inclusive, teria protagonizado o famoso “episódio das chaves”, em que teria dito: “se mexerem no Supremo Tribunal fechá-lo-ei e entregarei a sua chave ao presidente Castello Branco”.

Apesar de tudo, a composição da Corte acabou por ser alterada pelo Ato Institucional 2, de 27 de outubro de 1965, que aumentou de 11 para 16 o número de ministros do Supremo Tribunal Federal. Todavia, se o objetivo do regime era inserir cinco novos magistrados para neutralizar a ação do STF, Evandro Lins e Silva recorda que foi um grande engano, já que os nomeados chegaram e passaram a votar absolutamente de acordo com os demais nos processos políticos. Eram todos liberais, especialmente os novos integrantes Aliomar Baleeiro e Pedro Kelly.

Mas a pior intervenção ainda estava por vir. Por decreto de 16 de janeiro de 1969, baseado no Ato Institucional 5, de 13 de dezembro de 1968, três ministros acabaram aposentados: Victor Nunes Leal, e os dois já visados desde o início do regime — Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. O então presidente do STF, Gonçalves de Oliveira, além do decano, ministro Lafayette de Andrade, acabaram se aposentando.

No mês seguinte, em fevereiro de 1969, o AI-6 estabeleceu a volta ao formato anterior dacorte com a composição de 11 ministros, número que restara após a aposentadoria compulsória e a renúncia de cinco de seus membros.

O STF chegou ao período democrático sem alterações em sua composição e seguiu ainda por muitos anos com ministros indicados durante a ditadura. Nomes que marcaram a história da corte, inclusive, como os ministros Moreira Alves e Sidney Sanches. Durante seus anos mais difíceis, o tribunal demonstrou não se entregar totalmente às pressões externas. Apesar de ter suas competências bastante limitadas, especialmente com a edição do AI-5, procurou realizar suas atribuições da melhor forma possível.

É fato que as cortes constitucionais desempenham importante papel em regimes democráticos. Entretanto, é em momentos de instabilidade política que elas tendem a se agigantar, muitas vezes demonstrando postura audaz contra avanços indevidos, sabendo ser o último bastião dos direitos e garantias fundamentais ameaçados. O espírito de autodefesa institucional que aflora em seus magistrados a combater agressões externas é evidência máxima da clara percepção da missão constitucional que receberam.

Nesse quadro, a independência do Judiciário mostra-se como liberdade primordial para a manutenção do Estado de Direito. Todas as espécies de ingerências em cortes constitucionais devem ser evitadas, desde as que se baseiam na flagrante ruptura da ordem constitucional, até as mais modernas formas de intervenção, por meio de processos democráticos que mascaram tentativas de neutralização judicial.


1 Durante o período republicano, alterações na composição do Supremo Tribunal Federal também ocorreram após a Revolução de 1930, além da própria adaptação do STF do Império ao modelo republicano. Bibliografia básica utilizada: BALEEIRO, Aliomar. “O Supremo Tribunal Federal”. Belo Horizonte: RBEP, 1972; COSTA, Emilia Viotti da. “O STF e a construção da cidadania”. São Paulo: Ieje, 2007; KAUFMANN, Rodrigo de Oliveira. Memória jurisprudencial – Ministro Ribeiro da Costa. Brasília, 2012; RECONDO, Felipe. “Tanques e togas. O STF e a ditadura militar”. São Paulo: Cia das Letras, 2018; SILVA, Evandro Lins e. “O salão dos passos perdidos”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997; PIETRZAK, Mikolaj. “The constitutional court of Poland: the battle for judicial independence”; MATCZAK, Marcin. “Poland: from paradigm to pariah?”. Palestra na Universidade de Oxford.

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    é assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal, mestre em Direito pela Eberhard- Karls Universität Tübingen, Alemanha e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

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