Debate amplo

Punir aborto é ineficiente e descumpre acordos internacionais, dizem especialistas

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3 de agosto de 2018, 20h00

A legislação brasileira está desconectada tanto da realidade da população feminina quanto dos tratados internacionais. Assim defenderam, nesta sexta-feira (3/8), expositores que colocaram foco sobre a controvérsia com argumentos jurídicos do primeiro dia da audiência pública no Supremo Tribunal Federal que discute a descriminalização do aborto no país.

Três dezenas de especialistas e entidades apresentaram posição acerca do tema desde às 8h30. Nesta sexta, ficaram concentradas aquelas que defenderam o acolhimento da arguição de descumprimento de preceito fundamental que pede a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal, que tratam o aborto como crime. Do total deste primeiro dia, apenas quatro pediram a manutenção da lei.

Juiz titular da 1ª Vara do Júri de Campinas (SP) e professor de Direito Penal da PUC-SP, José Henrique Rodrigues Torres considerou a criminalização da prática como norma que fere princípios e tratados internacionais das quais o Brasil é signatário. Ele representou o Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp).

"O princípio constitucional da racionalidade é violado, porque os custos sociais causados pela criminalização do aborto são muito maiores que os benefícios pretensamente almejados com a criminalização, como revelam as terríveis taxas de mortalidade materna e de sequelas físicas e psíquicas suportadas pelas mulheres em razão da prática de abortos inseguros, decorrentes da clandestinidade provocada pela irracional criminalização", argumentou.

Para ele, o princípio constitucional da idoneidade é também violado, porque o Código Penal não tem sido um meio eficaz nem idôneo para controlar a prática. Por fim, o princípio da subsidiariedade também integra a lista de violações. Isso porque, de acordo com ele, há alternativas, mais eficazes e sem danos, para o enfrentamento dessa questão.

Torres citou ainda o Pacto de São José da Costa Rica, que é evocado porque estaria a impedir a descriminalização do aborto, porque o seu artigo 4.1 dispõe que a vida deve ser protegida desde a concepção.

"A Corte Interamericana de Direitos Humanos, que é o órgão jurisdicional com a competência para realizar a última interpretação desse Pacto, nos termos de seu artigo 62 proclamou que o direito à vida, protegido, em geral, desde a concepção busca proteger os direitos da mulher grávida, não os direitos do embrião e, consequentemente, não os direitos do feto", afirmou o magistrado.

Na mesma decisão, de acordo com ele, a CIDH entendeu que “o direito à vida desde a concepção não pode ser absoluto, mas, apenas, incremental e admite exceções” e, ainda, que “o direito à vida desde a Além disso, também decidiu a Corte Interamericana, nessa mesma sentença, que “o direito à vida desde a concepção não pode ser absoluto, mas, apenas, incremental e admite exceções” e, ainda, que “o direito à vida desde a concepção não pode ser usado para limitar outros direitos de maneira desproporcionada, nem pode gerar efeitos discriminatórios”.

Pela Associação Brasileira de Antropologia, falou a professora da Universidade de Brasília Lia Zanotta. Para ela, também, a criminalização produz e reforça o estigma da discriminação das mulheres. "Direito e cultura se encontram nessa questão e especialmente porque a lei pode reproduzir padrões culturais opressivos para certo", disse.

Ao penalizar mulheres que interrompem uma gestação, o Estado "abandona e marginaliza mulheres quando decide que um tema comum à vida das mulheres será caso de prisão". Não existem, para ela, uma questão de natureza feminina não deve ser conformada pela lei de forma a ser criminalizada.

"A lei penal é imposição da lei como forma de definir a existência. As mulheres lidam com o aborto de muitas formas, para a além da lei e do crime. Há uma permanência no tempo: as mulheres fazem aborto. O campo moral vivido não é o da coerência das doutrinas", ponderou a antropóloga.

Entidades internacionais também se fizeram presentes. Verónica Undurraga defendeu, em nome da Human Rights Watch que a criminalização do aborto não cumpre o objetivo de proteger a vida potencial. "É inconstitucional e contrária aos tratados de direitos humanos", afirmou. Para ela, a penalização afasta as mulheres dos serviços estatais, impedindo que sejam plenamente atendida pelos sistemas de saúde.

"A criminalização da primeira etapa da gestação não respeita a ultima ratio do direito penal. A mulher é titular de direito constitucional, os nascituros, não. A potencialidade pode ser protegida, mas tem proteção menor que a tutela da vida das pessoas. Como está, só as mulheres são castigadas", argumentou Verónica Undurraga.

ADPF 442.

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