Mudança polêmica

"Com a reforma trabalhista, advogados estão propondo ações mais consistentes"

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3 de agosto de 2018, 9h45

Em vigor há nove meses, a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) reduziu o número de ações ajuizadas no Rio de Janeiro. No primeiro semestre de 2017, 139.969 reclamações foram apresentadas. No mesmo período deste ano, foram 82.253 casos, uma diminuição de 41%. Para o presidente da Associação dos Juízes do Trabalho do Rio de Janeiro (Ajutra-RJ), Otávio Amaral Calvet, a imposição de honorários de sucumbência ao trabalhador que ficar vencido tem um grande peso nessa mudança.

No entanto, a redução no número de ações trabalhistas não é, por si só, positiva, ressalta Calvet em entrevista à ConJur. Se a queda tiver ocorrido devido a um uso mais racional e responsável da Justiça do Trabalho, será benéfica à sociedade. Porém, caso se deva ao afastamento dos empregados, será negativa, diz. Nesse caso, o acesso à Justiça estará comprometido.

Mas o juiz também destaca uma alteração na qualidade das reclamações trabalhistas. Os advogados, afirma, têm apresentado ações mais consistentes e robustas.

Nesta sexta-feira (3/8), a Ajutra-RJ promove o I Seminário Nacional da Reforma Trabalhista, em parceria com a Dase Treinamento, empresa de educação corporativa e capacitação de servidores públicos. O objetivo do encontro, que reunirá especialistas em Direito do Trabalho, é esclarecer aos profissionais e estudantes do setor, além de empresários, as principais alterações na legislação trabalhista a partir da reforma, para auxiliar no exercício diário da profissão.

Leia a entrevista:

ConJur — Quais foram os principais pontos modificados na legislação trabalhista pela reforma?
Otávio Calvet
Temos muitas mudanças, mas a principal delas se refere aos honorários de sucumbência, que antes não eram aplicados e agora são. Isso significa que, anteriormente, o trabalhador que entrasse na Justiça, de antemão, não era responsabilizado por pagar os honorários da outra parte, mesmo perdendo o processo. Atualmente, após a reforma, se ele perder no todo ou mesmo que em parte, ele se responsabiliza a pagar os custos do advogado contrário.

A despesa é de cerca de 5% a 15% do valor que ele perdeu. Na prática, o que isso ocasionou de imediato? Uma inibição no ajuizamento de reclamações trabalhistas, o que pode explicar a redução observada de novos processos pós-reforma. Outros pontos importantes foram o fim da contribuição sindical compulsória, a aplicação de multas para testemunhas mentirosas, necessidade de comprovação na Justiça caso o trabalhador precise de gratuidade e inclusão da possibilidade de terceirização da atividade-fim, muito conhecido como pessoa jurídica.

ConJur — A questão dos honorários sucumbenciais vai diminuir a procura pelo litígio?
Otávio Calvet
Não necessariamente. Os honorários sucumbenciais foram trazidos para o processo do trabalho para ambas as partes. Se o empregado sair vencedor, caberá ao empregador custear os honorários do advogado do trabalhador, o que pode inclusive melhorar as condições de contratação deste advogado pelo seu cliente (trabalhador). Claro que a responsabilidade aumenta para todos com os honorários sucumbenciais, o que tende a afastar do Poder Judiciário as lides temerárias e aquelas em que o cidadão, apesar de ter o direito, já avaliar de antemão a impossibilidade de prová-lo em juízo. Nesse sentido ganhamos todos, pois racionalizar o uso da Justiça do Trabalho somente produz ganhos para a sociedade.

ConJur — A queda no número de ações trabalhistas é uma razão válida para a reforma?
Otávio Calvet
Depende. Qualquer reforma em nossa sociedade deve buscar sua melhoria. A queda do número de ações trabalhistas, se for fruto de um uso mais racional e responsável da Justiça do Trabalho, justifica, sim, reformas na parte do sistema processual. Mas se a queda decorrer do afastamento do jurisdicionado do Poder Judiciário, afrontando o valor constitucional do acesso à Justiça, óbvio que não. O que se pode notar deste primeiro ano após a reforma trabalhista, e falo isso como juiz de primeiro grau que está vivenciando todas essas mudanças, é uma alteração na qualidade das reclamações trabalhistas, fruto do belo trabalho que os advogados trabalhistas têm produzido de trazer ações consistentes e robustas ao Poder Judiciário.

Na minha unidade jurisdicional, a previsão é fecharmos o ano com cerca de 1,5 mil novos casos, contra cerca de 1,8 mil em 2016 e 2 mil em 2017, valendo lembrar que no ano passado houve um acréscimo de demandas às vésperas da entrada em vigora da reforma, o que, se distribuído para o ano em curso, gera um número compatível com o histórico da comarca. Logo, creio, a tendência é o número de ações se estabilizar em um patamar razoável, o que, repito, é bom para toda a sociedade.

ConJur — Como está sendo a aceitação da reforma trabalhista?
Otávio Calvet
A aceitação dessa reforma está sendo muito polêmica. Muitas divergências de entendimento e muitas divergências de opiniões, até mesmo ressaltando que a nova legislação foi aprovada em um momento de crise no país. Ou seja, existem muitos debates que extrapolam o lado jurídico, até por conta do momento que o Brasil vive. Porém, nosso foco de discussões precisa se concentrar nos pontos de que a lei existe, está em vigor e temos que aplicá-la e interpretá-la conforme o ordenamento jurídico atual e a Constituição. Não se deve ter concepção política sobre a lei, muito menos partidária. Nosso debate e enfoque neste seminário é falar sobre a contribuição acadêmica, científica e jurídica.

ConJur — A comissão do Tribunal Superior do Trabalho encarregada de analisar a reforma trabalhista preferiu não emitir um parecer. Deliberou que os processos devem ser examinados caso a caso. Como interpretar essa decisão?
Otávio Calvet
De forma elogiosa. O TST, ao assim proceder, reforçou um dos pilares da nossa República: a independência funcional de cada magistrado. O Poder Judiciário, encarregado de decidir em cada caso concreto acerca da aplicação das leis, deve paulatinamente produzir as interpretações condizentes com a Constituição Federal, formando a jurisprudência, verdadeiro patrimônio social que, para as questões trabalhistas, é gerido ao final pelo TST. Logo, ao não inverter o caminhar natural da construção da jurisprudência trabalhista, o TST mostra seu compromisso com os valores que representa.

ConJur — Nas decisões sobre terceirização e planos de demissões voluntárias em que o Supremo Tribunal Federal contrariou o TST, os ministros seguiram votando de acordo com seu ponto de vista. Em geral, alegam que o caso concreto não se encaixa no paradigma vetado pelo Supremo. Pode acontecer a mesma coisa com a reforma trabalhista?
Otávio Calvet
O sistema de decisões judiciais no Brasil passou por algumas modificações recentes, principalmente a partir do Código de Processo Civil de 2015, onde se reconheceu a força dos precedentes judiciais, alguns deles vinculantes. Nos casos trabalhistas que chegam ao STF, obviamente por força de matéria constitucional, deve-se realizar o exame tal qual ocorre nos demais ramos do Direito, ou seja, não é privilégio do TST verificar se o caso sob julgamento deve ou não seguir o julgado anterior realizado pelo Supremo, sendo possíveis decisões diferentes quando presentes alguns requisitos, como, por exemplo, a razão de decidir estar superada ou o caso sob exame não se amoldar ao caso anterior.

Ao contrário do que pode parecer, os casos trabalhistas são muito complexos, com muitas circunstâncias fáticas diferenciadas, o que possivelmente gera a impressão, para quem não conhece a fundo a situação, de mero descumprimento do julgamento anterior realizado pelo STF. Assim, não só com a reforma trabalhista, mas com qualquer lei, de qualquer área, a situação pode, sim, justificar uma decisão diferente, o que inclusive garante a todos um julgamento justo, pois trata-se de dever do Poder Judiciário analisar criteriosamente as circunstâncias de cada caso posto a julgamento, distribuindo justiça de forma adequada.

ConJur — Como o senhor vê o papel exercido hoje pelo Ministério Público do Trabalho?
Otávio Calvet
O Ministério Público exerce papel de extrema importância em nossa sociedade. Sua missão constitucional é a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. No caso específico do MPT, que atua na área trabalhista, é comum ser alvo de críticas pelo simples fato de que os interesses sociais envolvidos cuidam justamente do que há de mais especial no conflito capital-trabalho: a defesa dos valores sociais que norteiam este ramo do Direito.

Não se pode confundir a proteção que a ordem jurídica destina a certo grupos da sociedade, considerados vulneráveis, com as instituições criadas pelo Estado para a defesa desses valores. Se o MPT muitas vezes é visto realizando a defesa de trabalhadores perante as empresas, nada mais natural dentro do sistema constitucional. Da mesma confusão muitas vezes a própria Justiça do Trabalho é vítima, pois em regra os magistrados trabalhistas nada mais fazem do que aplicar uma lei que, na sua essência, tem viés protetivo ao trabalhador, tal como acontece nos juizados especiais em que se trata da defesa do consumidor.

ConJur — Qual a sua opinião sobre o entendimento do MPT de que as sociedades por cotas uniprofissionais, como as de advogados, camuflam relações de emprego e fraudam a legislação trabalhista?
Otávio Calvet
Minha opinião é de absoluto respeito, pois cada membro do Ministério Público possui independência funcional para defender a ordem jurídica dentro do seu campo de entendimento. Como juiz, não tenho nem posso ter opinião previamente formada sobre a questão, pois, como já frisei, tudo depende do caso concreto. Posso afirmar que já julguei casos em que reconheci vínculo de emprego em tais situações e casos em que neguei o pedido de vínculo, tudo a depender dos vários elementos que a causa envolve.

ConJur — A reforma deve valer para contratos assinados antes de ela entrar em vigência? Uma comissão do Tribunal Superior do Trabalho entendeu que não.
Otávio Calvet —
A comissão do TST que elaborou a Instrução Normativa 41 não fixou entendimento de que a reforma somente seria aplicada para contratos assinados após a nova lei. Desconheço qualquer outra comissão que tenha chegado a tal conclusão. No meu entendimento, qualquer lei nova na área trabalhista deve ter aplicação imediata, e não retroativa, respeitando a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, aliás como em regra ocorre em todos os ramos do Direito. No caso do contrato de trabalho, a meu ver, a reforma possui aplicação imediata, respeitando as condições contratuais previamente estabelecidas, ou seja, naquilo em que o empregador estava obrigado a cumprir por força de lei, já prevalece a nova lei de imediato, mas nas condições contratuais pactuadas nada se modifica, prevalecendo as cláusulas do contrato antes estabelecidas pelos interessados.

ConJur — Algumas cortes têm acolhido o argumento de que a contribuição sindical é tributo e por isso só poderia ser mexida por meio de lei complementar. O que pensa?
Otávio Calvet
Sempre discordei de tal entendimento, mas agora a questão já resta pacificada ante a recente decisão do STF que considerou constitucional o fim da contribuição sindical compulsória.

ConJur — O fim da contribuição sindical não pode asfixiar os sindicatos e, com isso, enfraquecer os trabalhadores?
Otávio Calvet
A contribuição sindical compulsória sempre foi vista como um dos fatores impeditivos de o Brasil alcançar a sonhada liberdade sindical e, finalmente, poder ratificar a Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho sobre o tema. Sempre houve consenso na doutrina trabalhista, e inclusive em algumas lideranças sindicais, da necessidade de se abandonar este modelo sindical atrelado ao Estado para se avançar na afirmação dos direitos fundamentais que norteiam o chamado Direito Coletivo do Trabalho, como a liberdade de organização e atuação dos sindicatos, garantindo-se sua real autonomia. Assim, creio que o problema não foi em si o fim da contribuição sindical compulsória, mas a forma como ocorreu, sem antes uma completa reforma sindical que levasse à pluralidade e instalasse por vez o ambiente desejado de autonomia para o setor.

Da minha parte, fazendo um exercício de tentar prever o cenário de um futuro próximo, acho que os trabalhadores sairão, sim, enfraquecidos num primeiro momento, pois não é fácil fazer a transição de um modelo que perdurava por mais de 70 anos, ainda mais em meio à grave crise econômica que vivemos. Agora, das crises surgem as oportunidades, e não adianta mais lamentar. O momento agora é de arregaçar as mangas e trabalhar muito para que os sindicatos possam se reinventar e se fortalecer, é hora de os trabalhadores participarem da vida coletiva, é hora de os brasileiros mudarem a cultura acerca do papel do sindicalismo. A sociedade poderá sair melhor disso tudo.

ConJur — Uma ação direta de inconstitucionalidade no STF questiona a regra da reforma trabalhista que permite o trabalho insalubre para grávidas e lactantes, exceto nos casos de laudo recomendando o afastamento. O que o senhor pensa dessa permissão?
Otávio Calvet
O ideal seria o legislador retornar ao texto da MP 808/17 no particular, ou seja, impedir o trabalho de grávidas e lactantes em qualquer tipo de trabalho insalubre, pois os valores envolvidos na questão recomendam, em tese, que prevaleça a proteção à maternidade. Vale lembrar, entretanto, que o oposto pode ocorrer: o empregador não querer que a mulher trabalhe durante tais períodos e a empregada desejar a manutenção do trabalho, situação que já tive também oportunidade de ver em caso concreto. De qualquer sorte, ainda que se entenda constitucional a lei em vigor, basta que médico da confiança da própria mulher ateste a impossibilidade de manutenção do trabalho, o que garante o direito ao afastamento.

ConJur — Como o senhor avalia a dispensa da negociação com o sindicato para demissão em massa de trabalhadores?
Otávio Calvet
Como um retrocesso. O legislador tentou igualar situações que, a meu ver, são diferentes. A dispensa individual impacta a vida do trabalhador, enquanto a dispensa em massa impacta toda a sociedade. Já tive oportunidade de trabalhar como juiz em comarca do interior onde uma única empresa era responsável por quase 50% dos empregados da cidade. Uma dispensa em massa ali, por exemplo, levaria ao colapso toda a economia da região, o que obviamente justifica um tratamento coletivizado para a questão, como já havia construído a jurisprudência do TST. De qualquer sorte, o empresário está vinculado à função social da empresa, sendo responsável por toda a comunidade criada em seu entorno, o que por si só justifica a realização de tratativas para reduzir o impacto das dispensas coletivas. Não se trata de proibir as dispensas, mas de se buscar meios adequados para sua realização, desejo compartilhado, creio, pelo empresário e pelos trabalhadores.

ConJur — Como o senhor avalia o trabalho intermitente?
Otávio Calvet
A ideia de se criar um modelo de contrato que pudesse retirar da informalidade uma fatia de trabalhadores não é ruim, pois tudo que prima pela busca do pleno emprego cumpre os princípios que regem a ordem econômica conforme comando de nossa Constituição. Infelizmente a regulamentação deixou a desejar, criando um modelo com tantas inconsistências que é opinião geral dos estudiosos da área o enorme risco para quem o utilizar. Quem conhece de perto as dificuldades da relação de emprego desaconselha tal contratação nos moldes em que criada, sendo praticamente impossível antever como será o entendimento dos tribunais acerca da interpretação dessas normas. Há quem, inclusive, chegue a falar da ineficácia do instituto por ausência de regulamentação, tamanha a dificuldade de sua aplicação prática.

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