Opinião

Questão de fato e questão de direito: superação das súmulas 7 e 279

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2 de agosto de 2018, 6h49

O exercício da jurisdição está atrelado a dois pilares: questão de fato e questão de direito.

Todo o sistema processual civil (vinculado ao Direito Privado, portanto) carrega o dogma da separação do que é prova ou fato, daquilo que constitui propriamente dito a interpretação jurídica de uma norma, regra ou equiparado legal (resolução, portaria e outros atos normativos).

Já na fase postulatória, o Código de Processo Civil deixa claro no artigo 336 que “incumbe ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito”.

Aí temos a primeira diferenciação legal. Na contestação, o réu deve se desincumbir das provas e dos questionamentos jurídicos. Por exemplo, se o autor alega na inicial que determinada relação contratual inexiste, na contestação o réu deve fazer prova da existência do contrato bem como discutir eventual prescrição que acometa a pretensão.

A primeira é uma questão de fato, e a segunda, uma questão jurídica. Para decidir a primeira, o magistrado desce à prova, analisa a concretude dos acontecimentos na vida dos envolvidos; já a prescrição depende da interpretação do magistrado quanto ao prazo aplicável à espécie.

Depois, na fase recursal, o Código de Processo Civil reza no artigo 1.014 que “as questões de fato não propostas no juízo inferior poderão ser suscitadas na apelação, se a parte provar que deixou de fazê-lo por motivo de força maior”.

Mais uma vez o sistema cognitivo processual faz a cisão entre questão de fato e questão de direito. No caso da apelação, é vedado ao apelante acrescentar matéria fática, inovar quanto aos acontecimentos probatórios que poderia — ou deveria — haver suscitado durante a instrução.

A despeito da impossibilidade da denominada inovação recursal, os tribunais de Justiça ou regionais federais ocupam o papel de corte de revisão, para o qual é devolvida toda a matéria posta nos autos, calhando o registro da previsão contida no CPC, segundo a qual dispõe no artigo 1013 que “a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada”.

O apelante não pode inovar em sede recursal, porém toda a matéria — de fato e/ou de direito — pode ser objeto de rediscussão pela corte de segundo grau.

E o recurso especial e o recurso extraordinário?

Com relação aos recursos para os tribunais superiores, a dinâmica é ainda mais polêmica.

O Superior Tribunal de Justiça, criado em 1988 pela atual Constituição Federal, substituindo o extinto Tribunal Federal de Recursos, tem para si a tarefa da interpretação da lei federal e sumulou o verbete 7, que dispõe “a pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”.

Por seu lado, o Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula, estabelecido no período imperial, depois desenhado na Constituição de 1891 com forte influência de Rui Barbosa e o constitucionalismo norte-americano, analogicamente, possui enunciado de súmula 279 que reza “para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”.

Em ambos os enunciados das cortes superiores o recado é claro: não cabe à corte superior reavaliar a matéria de prova ou matéria de fato, estando circundada aos elementos jurídicos e enquadramento legal da consequência normativa contida no acórdão vergastado.

Significa dizer, voltando ao exemplo dado ao início, caso o tribunal entenda que a prescrição no caso é trienal com base no artigo 206, parágrafo 3º do Código Civil, o Superior Tribunal de Justiça poderá avaliar se, na espécie, o correto não seria a aplicação da prescrição quinquenal do artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor.

O que o STJ estaria limitado a fazer é dizer se no caso a contratação existe ou é inválida, se a parte assinou ou não, se determinada cláusula está ou não escrita no contrato, se eram válidas ou abusivas etc., porque esses são acontecimentos.

Nem sempre esse limiar é fácil. Muitas das vezes as questões se imbricam, logo, a jurisprudência do STJ avançou nesses 30 anos de funcionamento, para aceitar a tese da revaloração das provas.

Como já defendeu o ministro Villas Boas Cuêva, “a revaloração da prova constitui em atribuir o devido valor jurídico a fato incontroverso, sobejamente reconhecido nas instâncias ordinárias, prática admitida em sede de recurso especial, razão pela qual não incide o óbice previsto no Enunciado n.º 7/STJ” ( REsp 1.369.571/PE).

Por esse entendimento, quando certo fato incontroverso fizer parte do acórdão recorrido, tornando possível a análise direta pelo ministro relator, então isso possibilita a revaloração da prova, ou seja, considerá-la para o fim de modificar a conclusão do julgado.

Por seu turno, o Supremo Tribunal Federal causou surpresa ao reconhecer a repercussão geral no Recurso Extraordinário 888.815/RS, sob a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso.

Na origem, determinada família da cidade de Canela solicitou à Secretaria de Educação local o aval para educar o filho em ensino doméstico, prática difundida nos Estados Unidos com a denominação de homeschooling.

Diante do indeferimento, ingressou com mandado de segurança junto ao Poder Judiciário local, o qual, de plano, declarou inepta a pretensão por entender inexistir direito líquido e certo a amparar a concessão da segurança.

Inconformados, interpuseram recurso de apelação. Contudo, o recurso foi declarado deserto porque o preparo não foi recolhido pelo interessado, logo, não houve revisão da matéria de fato e/ou de direito pela segunda instância.

Os pais, então, interpuseram recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal. A Vice-Presidência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul inadmitiu o recurso extraordinário, em razão de não haver mérito a ser revisado, vez que houve a deserção.

Os pais interpuseram agravo nos próprios autos, o qual, após remessa ao STF, foi distribuído ao ministro Barroso, que, de pronto, converteu-o em extraordinário e determinou a remessa ao Plenário para reconhecimento da repercussão geral.

Eis o ponto que mais nos interessa.

A deserção é óbice intransponível, pois, em razão dela, há impedimento de análise do mérito recursal, uma vez que o pressuposto recursal de regularidade formal não foi preenchido, logo, não ultrapassado o plano do juízo prelibatório.

Aliás, é o que reza o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, ao dispor no artigo 323: “Quando não for caso de inadmissibilidade do recurso por outra razão, o(a) Relator(a) ou o Presidente submeterá, por meio eletrônico, aos demais Ministros, cópia de sua manifestação sobre a existência, ou não, de repercussão geral”.

A deserção do recurso na origem impede a análise da matéria constitucional, em razão da ausência do prequestionamento que defina o mérito da questão de direito que pode ser objeto de análise.

Porém, neste caso, a corte inovou. Acompanhando o voto do ministro Barroso, o Pleno entendeu pela existência de repercussão geral, superando o óbice formal da deserção do recurso de origem.

Conforme destacou o ministro, “no mais, o tema de fundo está a exigir o crivo do Supremo, como guarda maior da Constituição Federal. Cumpre definir a possibilidade, ou não, de os pais da criança optarem pelo implemento da educação no próprio domicílio, sem a frequência a aulas na rede regular”.

Observa-se que, a despeito da extinção sem resolução do mérito no primeiro grau, a despeito da deserção em segundo grau, o STF apreciou o mérito, estudou os fatos, examinou os acontecimentos trazidos pelo recorrente e, por fim, reconheceu a existência de questão abstrata de envergadura constitucional.

Assim, a corte caminha para o abandono da tese trazida da tradição do Direito inglês e norte-americano, da cisão plena entre questão de fato e questão de direito, enfraquecendo a eficácia das súmulas 7 do STJ e 279 do STF.

A origem da cisão da questão de fato e da questão de direito nos recursos dirigidos aos tribunais superiores deriva do trial perante os jurados, eis que, vigorando a oralidade do procedimento perante o grande júri, as questões de fato, as provas e depoimentos discutidos não faziam parte do bojo decisório.

O júri emite sua conclusão ao final pela condenação ou absolvição e pelo reconhecimento, ou não, de circunstâncias que agravam ou que reduzam a pena do agente. Diante da soberania do júri popular, não se lhe exigia a motivação de sua decisão.

Assim, o procedimento do júri cindia, ao final, as questões de fato das questões de direito, o conteúdo probatório da subsunção normativa que aplica a consequência do texto legal ao caso concreto.

Na narrativa histórica, ensina William Blackstone: “Next follows, sixthly, the judgment of the court upon what has previously passed; both the matter of law and matter of fact being now fully weighed and adjusted” (Commentaries on the Laws of England, by William Blackstone. Book 3, Chapter 24).

Na esteira da decisão do STF no caso do homeschooling, distancia-se cada vez mais da tradição histórica, tracejando um novo modelo jurisdicional, mais preocupado com o direito do que com a forma.

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