Direito Civil Atual

Qual era a visão do jurista Orlando Gomes sobre o direito autoral?

Autor

  • Rodrigo Moraes

    é advogado e procurador do município do Salvador professor adjunto de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFBA atual presidente do Conselho Cultural da Fundação Orlando Gomes e organizador da obra "Orlando Gomes o cronista" (Ed. Edufba).

30 de abril de 2018, 13h24

O Direito Autoral sempre esteve presente na trajetória acadêmica de Orlando Gomes, que dedicou mais de cinquenta anos ao ensino jurídico.

Em 1933, aos 23 anos, o civilista se inscreveu em seu primeiro concurso na Faculdade Livre de Direito da Bahia, para concorrer à cátedra de Introdução à Ciência do Direito. Mesmo tendo sido derrotado por Nestor Duarte, Orlando impressionou a banca examinadora, tendo obtido, na prova didática, a mais alta nota do concurso.

Em 1936, aos 26 anos, Orlando fez o seu segundo concurso na mesma Faculdade Livre de Direito da Bahia. Dessa vez, como candidato único para a cátedra de Direito Civil. O ponto sorteado para a sua prova escrita foi “posse – teorias de Savigny e von Ihering”. A última prova do concurso foi a didática, e Orlando Gomes fez uma preleção sobre “direitos autorais e artísticos”, diante de um auditório repleto de estudantes e professores. Obteve nota 9,9 (nove vírgula nove) tanto na prova didática quanto na prova escrita.[1]

Em dezembro de 1982, após cirurgia médica em decorrência de problemas cardíacos, o ilustre civilista criou a Fundação Orlando Gomes.

No artigo 5º do seu Estatuto, consta que o patrimônio da Fundação Orlando Gomes constitui-se não apenas “dos livros, revistas e outras publicações da biblioteca particular do instituidor”, como também “dos direitos autorais que a este couberem pela edição de suas obras ou de novas edições destas que venham a sair após a sua instalação”.

Portanto, o instituidor Orlando Gomes cedeu os direitos autorais de suas obras jurídicas, editadas ou não, para a Fundação. Esse gesto nobre de Orlando Gomes demonstra, de maneira cabal, a sua relevância para a defesa dos interesses sociais.

2. O Direito Autoral na obra de Orlando Gomes
Traremos a visão de Orlando Gomes sobre o Direito Autoral exposta nas seguintes obras: (i) Introdução ao Direito Civil; (ii) Anteprojeto de Código Civil de 1963; (iii) Direitos Reais; (iv) Contratos; (v) A proteção jurídica do software.

Comentemos, pois, cada uma dessas obras, que trazem preciosas contribuições ao estudo do Direito Autoral.

2.1. No livro Introdução ao Direito Civil
No seu clássico livro Introdução ao Direito Civil, cuja primeira edição foi publicada em 1957 (ano em Orlando Gomes completara 48 anos), o jurista considera o direito moral do autor como um dos direitos da personalidade. Mesmo não aprofundando a questão do direito moral, diz, com acerto, que a sua natureza jurídica é de direito da personalidade.[2]

Inexiste, na Introdução ao Direito Civil, crítica expressa ao absurdo art. 667 do Código Civil de 1916, que trazia a possibilidade de cessão de autoria.[3] O projeto original de Clóvis Beviláqua, em seu art. 774, com acerto, previa exatamente o reverso, proibindo a cessão desse elemento extrapatrimonial.[4]

A redação do art. 667 do Código Civil de 1916, fruto de uma equivocada interferência do deputado revisor Arthur Lemos, foi bastante criticada por Beviláqua, que dizia: “não deve o direito fomentar a mistificação do público”.[5]

Orlando Gomes não criticou expressamente essa possibilidade de cessão de autoria prevista no art. 667 do Código Civil de 1916, mas o caput do art. 29 do seu Anteprojeto de Código Civil, de 1963, dizia que os direitos da personalidade são “inalienáveis e intransmissíveis”.[6] Com isso, Orlando Gomes criticou, ainda que tacitamente, o art. 667 do CC-1916.

Em suma, Orlando Gomes era contrário à possibilidade de cessão do direito moral de autoria.

2.2. No Anteprojeto de Código Civil de 1963
O art. 37 do Anteprojeto de Código Civil, de autoria de Orlando Gomes, apresentado em 31 de março de 1963 ao então Ministro da Justiça João Mangabeira, trazia a seguinte redação: “Direitos Autorais – Ao autor de obra literária, científica ou artística e outras produções da inteligência é assegurada proteção jurídica nos termos das leis especiais que regulem os direitos autorais e a propriedade industrial”.[7]

Nas suas considerações, assim dissera Orlando Gomes:

“Direitos Intelectuais

Quanto aos direitos intelectuais, a complexidade de sua regulamentação, decorrente, dentre outras razões, do alargamento do seu tipo de aplicação em consequência dos progressos alcançados na técnica de expressão das manifestações da inteligência humana, indica a conveniência de submetê-los ao regime normativo de leis especiais, que disciplinem, de um lado, os denominados direitos autorais, compreendidos na propriedade literária, artística e científica e, do outro, os inventos e outras criações do espírito humano, que constituem o objeto do Direito Industrial (art. 37)”.[8]

Orlando Gomes, ao falar do “ocaso das codificações” e da “maré montante das leis especiais”, entendia que o regime do Direito Autoral era um “microssistema” e, portanto, refratário à unidade sistemática do Código Civil de 1916, que tinha perdido a generalidade e completude.[9] Orlando tinha plena consciência de que o deslumbramento pela codificação era “um insulto à lógica do tempo”, e que era inevitável “a proliferação de microssistemas ou pequenos universos legislativos”.[10]

O legislador ordinário seguiu o pensamento de Orlando Gomes e submeteu o Direito Autoral a regime normativo de lei especial, editando, assim, a Lei nº 5.988, de 14 de dezembro de 1973.

Era inevitável a ramificação dessa grande árvore jurídica chamada de Direito Civil, e Orlando Gomes não se opôs a isso.

2.3. No livro Direitos Reais
No seu livro Direitos Reais, também considerado um clássico do Direito Civil, Orlando Gomes afirma que a denominada “propriedade intelectual” não é, na verdade, propriedade. Certíssima observação do jurista. Para ele, “a assimilação é tecnicamente falsa”.[11]

Apesar de a terminologia propriedade intelectual ser a mais conhecida em todo o mundo, acreditamos que a sua utilização não atende a um rigor científico. Um bem intelectual, protegido pelo Direito de Autor, não se confunde com a propriedade (móvel e imóvel) estudada pelos civilistas.

Concordamos com a nomenclatura direitos intelectuais para designar uma quarta categoria de direitos (além dos direitos pessoais, obrigacionais e reais), seguindo, assim, a classificação quadripartida criada pelo jurista belga Edmond Picard, no final do século XIX.

Já tivemos a oportunidade de dizer que a atribuição do Direito de Autor como “propriedade” surgiu de uma necessidade histórica. Os revolucionários franceses, avessos a todo e qualquer tipo de privilégio do Ancien Régime, preferiram chamar a obra protegida de “propriedade literária, científica e artística”. Ou seja, com a Revolução Francesa, em 1789, renomeou-se o direito de exclusivo, que passou a ser chamado de “propriedade”.[12]

Em síntese, Orlando Gomes não concordava que o direito de autor possui natureza jurídica de propriedade. Esse é, também, o nosso ponto de vista.

Na próxima coluna, analisaremos a visão do Mestre sobre o Direito Autoral exposta nas seguintes obras: (iv) Contratos; (v) A proteção jurídica do software.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).


[1] RAMOS, Luiz Felipe Rosa; FILHO, Osny da Silva. Para entender Orlando Gomes. Coordenação de Celso Fernandes Campilongo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015, p. 24.

GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 133.

[3] Art. 667: “É suscetível de cessão o direito, que assiste ao autor, de ligar o nome a todos os seus produtos intelectuais”.

[4] MORAES, Rodrigo. Os direitos morais do autor: repersonalizando o Direito Autoral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 62-68.

[5] BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil Comentado. 3v. 5. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1938, p. 220-221.

[6] “Art. 29. Direitos da Personalidade – O direito à vida, à liberdade, à honra, e outros reconhecidos à pessoa humana são inalienáveis e intransmissíveis, não podendo seu exercício sofrer limitação voluntária”.

[7] GOMES, Orlando. Código civil: projeto Orlando Gomes. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 128.

[8] GOMES, Orlando. Código civil: projeto Orlando Gomes. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 21.

GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 58-59.

[10] Conferir o estudo intitulado “O problema da codificação”. In: GOMES, Orlando. Ensaios de Direito Civil e de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Aide, 1986, p. 132-133.

[11] GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19. ed. Revista, atualizada e aumentada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: 2008, p. 112.

[12] MORAES, Rodrigo. Direito fundamental à temporalidade razoável dos direitos patrimoniais de autor. In: Manoel J. Pereira dos Santos. (Org.). Direito de Autor e Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011.

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    é professor de Direito Civil, Direito Autoral e Propriedade Industrial da Faculdade de Direito da UFBA e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo

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