Revelações indevidas

Tribunais de Justiça falham no dever de manter o segredo de processos

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28 de abril de 2018, 8h48

O Poder Judiciário tem falhado na manutenção de segredo judicial em determinados processos, expondo partes e pessoas indevidamente, inclusive menores de idade.

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Publicação original não apresenta tarjas.

Nesta semana, em Goiás, o Diário de Justiça Eletrônico publicou a íntegra de uma decisão de primeira instância sobre um pedido de quebra de sigilo de uma pessoa acusada ameaçar de morte e assediar pela internet uma menina de 11 anos. No despacho consta o nome completo da garota, e também nome de usuário do Facebook do investigado.

No caso de crianças e adolescentes, há diversas normas que garantem o direito a proteção à privacidade, como o artigos 70, 100 e 45 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). Além deles, recentemente foi aprovada a Lei 13.431/2017, que criou um sistema de garantias de direitos nos inquéritos e no curso dos processos. 

Em vigor desde abril de 2018, a norma diz expressamente em seu artigo 5º, inciso III, que a criança e o adolescente devem ter a intimidade e as condições pessoais protegidas quando vítima ou testemunha de violência. O mesmo artigo prevê ainda que a vítima deve ter as informações prestadas tratadas confidencialmente.

Outro caso ocorrido em primeira instância, desta vez em São Paulo, chegou a causar a censura da ConJur, em 2014. O Diário de Justiça Eletrônico divulgou decisão que condenou o autor da peça teatral Edifício London, baseada na morte de Isabella Nardoni, a indenizar a mãe da menina. 

A ConJur publicou notícia sobre o caso e, por causa disso, chegou a ser censurada. Segundo a juíza Fernanda de Carvalho Queiroz, da 4ª Vara Cível de São Paulo, o texto não poderia ter sido publicado pois o processo estava em segredo de Justiça.

A notícia só voltou ao ar após decisão do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, que ressaltou que o sigilo imposto a processos não atinge a imprensa, que é livre para noticiar o que é decidido ou disputado nas ações.

Outra falha envolve o senador Aécio Neves, que moveu ação para descobrir os dados de uma usuária do Facebook que o associou ao tráfico de drogas. Mesmo não sendo possível sequer ver o andamento processual pelo site do TJ-SP, o despacho com o nome das partes foi publicado no Diário de Justiça. No início, ele até preserva as partes, tratando-as pelas iniciais, porém na primeira linha já chama o senador pelo nome completo.

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Nome do senador Aécio Neves (PSDB-MG) foi publicado na íntegra, logo após as iniciais. Reprodução

O segredo nesse caso foi pedido pelo próprio senador, o que foi inicialmente negado. Porém, depois, o segredo foi decretado "para preservar o sigilo do usuário da curiosidade alheia".

Em outro caso mais antigo, ocorrido em 2009, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro expôs o nome de uma menor em um processo de divórcio, mesmo havendo previsão expressa para que esse tipo de ação tramite em segredo de Justiça.

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Responsável pelo site Observatório do Marco Civil da Internet, Omar Kaminski vem alertando sobre este problema há anos. Em artigo publicado na ConJur, em março de 2017, ele apontou alguns exemplos, entre eles este ocorrido no Rio de Janeiro.

Segundo Kaminski, as falhas nesses sentido são rotineiras em suas buscas por temas ligados ao Marco Civil da Internet. Apesar disso, não é possível perceber uma atitude por parte dos tribunais para coibir esse tipo de falha.

"A regra é a publicidade e a transparência das decisões judiciais, mas há diversas situações que precisam ser prevenidas e resguardadas. Ainda se pensa analógicamente, ou ainda não há plena compreensão do alcance da Internet na vida das pessoas, que acabam expostas inadvertidamente nos mecanismos de busca pela divulgação de seus nomes ou informações em despachos e decisões que não deveriam ser públicas ou publicadas, ou ao menos deveriam contar com algum resguardo", avalia.

Para ele, além da exposição indevida de acusados, é ainda mais sensível a exposição indevida de nomes e informações sobre menores de idade, sequer envolvidos em atos infracionais senão como vítimas, como aconteceu no caso de Goiás. 

"Os efeitos podem ser sentidos muito mais tarde, ou amplificados e multiplicados, causando bullying, discriminação e preconceito. A remoção de tais conteúdos, mesmo com o auxílio do Marco Civil, não é simples e dependerá de ordem judicial. Mas, buscar uma ordem judicial para remover outra ordem judicial? Por aí vemos que o assunto merece muito mais atenção por parte dos magistrados de primeiro grau, principalmente e preventivamente", complementa.

Controle automático
O Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou, via assessoria de imprensa, que desde o ano passado conta com regras da Corregedoria-Geral da Justiça para cumprir internamente o segredo judicial.

A corte afirma que o sistema de publicação identifica automaticamente quando o processo está cadastrado com segredo e, nesses casos, os nomes são abreviados no cabeçalho da publicação no Diário da Justiça Eletrônico. O sistema, no entanto, não abrevia palavras que estejam no termo do documento.

A ConJur procurou também os tribunais de Justiça do Rio de Janeiro e de Goiás para comentar a questão. Porém, não obteve nenhum retorno até a publicação da notícia.

Vítimas expostas
Nesta semana, o jornal Folha de S.Paulo mostrou que até o Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP), base de dados criada pelo Conselho Nacional de Justiça, expõe para consulta pública informações sigilosas de processos que tramitam em segredo de Justiça.

Em alguns casos, aparecem nomes completos e descrição minuciosa de estupros e abusos sexuais sofridos por crianças. O jornal identificou 68 casos, em 13 estados, nos quais as vítimas foram expostas indevidamente. 

As falhas contrariam resolução de 2016, na qual o próprio CNJ determina que os tribunais do país devem restringir a identificação de vítimas apenas às iniciais de nome e sobrenome, principalmente em crimes sexuais contra vulneráveis.

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