Opinião

Um lupa no voto do ministro Luís Roberto Barroso no HC 152.752 (parte 2)

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25 de abril de 2018, 11h45

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7. O “caso da missionária Dorothy Stang”
7.1. Detalhamento da tramitação: o caso tramitou na Ação Penal 0003162-50.2010.8.14.0401, na 2ª Vara do Tribunal do Júri de Belém/PA. O crime ocorreu em 12/2/2005. A investigação, concluída rapidamente, embasou denúncia oferecida em 7/3/2005. O júri veio a ser realizado só cinco anos depois, em 30/4/2010. Condenado, o réu apelou. O TJ-PA julgou o recurso em 6/9/2011. O recurso especial interposto não foi conhecido no TJ-PA, sendo que o agravo contra a referida decisão foi encaminhado ao STJ em 9/12/2011 (autuado como AG 1.429.695). Em 6/3/2012, o ministro Campos Marques negou provimento ao agravo. Foram interpostos, sucessivamente, embargos de declaração e agravo regimental. Em 5/3/2013, o ministro Campos Marques deu provimento ao agravo regimental, determinando a subida do recurso especial (até então, no TJ-PA) ao STJ. Somente seis meses depois é que o processo ingressou novamente no STJ, autuado como REsp 1.405.233. Em 18/5/2017, o recurso especial foi parcialmente provido, sendo redimensionada a pena. Defesa e Ministério Público Federal ingressaram com agravos regimentais, improvidos em 27/6/2017. Opostos embargos de divergência, indeferidos liminarmente, porém submetidos ao colegiado via agravo regimental. Decisão da 3ª Seção em 27/2/2018, embargada e confirmada em 11/4/2018.

7.2. Conclusão: desde a data do fato até a presente data, transcorreram aproximadamente 13 anos. A instância ordinária esgotou-se ao cabo de quase seis anos. A jurisdição do STJ prolongou-se por quase sete anos, ou seja, temos aproximadamente metade da tramitação em cada segmento. Os recursos interpostos na instância extraordinária longe estão de ser considerados procrastinatórios. Apenas para ilustrar, veja-se que o agravo de instrumento contra o não conhecimento do recurso especial, assim como o agravo regimental contra o provimento apenas parcial do recurso especial, foram providos. Só no intervalo entre a primeira remessa dos autos ao STJ (9/12/2011) e a entrada do recurso especial (2/9/2013) transcorreram quase dois anos. É correto afirmar que a defesa lançou mão de diversos outros recursos. Mas o provimento interno de pelo menos dois deles no STJ não pode ser desprezado como fator importante de análise de eventual procrastinação indevida do feito. A propósito, todos os recursos interpostos detinham previsão legal. Eis o gráfico:

 

 

 

 

 

 

8. O “caso do propinoduto”
8.1. Detalhamento da tramitação: o feito tramitou na 3ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro (Processo 200351015002810). Os delitos teriam ocorrido entre 1999 e 2002. A denúncia foi oferecida em 21/3/2003, acolhida em sentença datada de 31/10/2003. Os autos foram remetidos, com os recursos interpostos, ao TRF da 2ª Região em 4/3/2004. O acórdão relativo ao julgamento das apelações foi publicado em 31/10/2007. Uma particularidade que o voto do ministro Barroso omitiu foi o fato de que a tramitação dos demais recursos cabíveis, perante o TRF da 2ª Região, perdurou até 2/12/2009, ou seja, mais de dois anos após o julgamento das apelações. Outro aspecto relevante é que ingressaram com recursos especiais tanto o Ministério Público Federal quanto as defesas. Tais recursos foram distribuídos no STJ em 14/12/2009 (REsp 1.170.545). O mérito foi julgado em 2/12/2014. Desse momento em diante, houve, de fato, uma sucessão de recursos de embargos declaratórios interpostos pelas defesas, reputados protelatórios pela relatoria em 1º/8/2017. Os autos foram enviados ao STF, onde os recursos extraordinários encontram-se pendentes de análise.

Da data dos últimos delitos apurados (2002) até a presente data, transcorreram aproximadamente 16 anos. A instância ordinária esgotou-se em sete anos, ao passo que apenas a jurisdição do STJ perdurou oito anos. Existem pontos relevantes a serem destacados, apontando para uma morosidade injustificável: primeiro, os mais de três anos que o TRF da 2ª Região levou para julgamento das apelações; segundo, os mais de dois anos que o TRF da 2ª Região levou para remessa dos autos ao STJ após o julgamento das apelações; terceiro, os cinco anos que o STJ levou para julgar o mérito dos recursos especiais (das defesas e da acusação, frise-se); quarto, a interposição de recursos protelatórios pelas defesas, durante quase três anos.

8.2. Conclusão: efetivamente, o caso é um exemplo a ser citado de morosidade da jurisdição. Mas longe, muito longe está, ao contrário do sustentado pelo ministro Barroso, de a interposição de recursos protelatórios ter sido a causa principal disso. O TRF da 2ª Região ficou com os autos durante cinco anos; o STJ levou iguais cinco anos para julgar recursos da acusação e da defesa. Graficamente, temos:

 

 

 

 

 

 

9. O “caso do primeiro beneficiário da mudança da jurisprudência em 2009”
9.1. Detalhamento da tramitação: Omar Coelho Vitor foi acusado da prática de crime de homicídio em 18/5/1991. A denúncia foi formulada em 23/4/1993. Foi julgado duas vezes pelo Tribunal do Júri: a primeira foi anulada pelo STJ em 21/5/1998, em recurso especial interposto pela defesa (REsp 120.140). Motivo: o juiz presidente entendeu incompatíveis os parágrafos 1º e 2º do artigo 121 do CP. O segundo júri resultou em sentença condenatória no dia 11/5/2000. O recurso de apelo foi submetido ao TJ-MG, que o denegou em 16/3/2001 (Apelação 000.197.933-5/00). Contra o acórdão, foi interposto recurso especial, distribuído no STJ em 19/2/2002 (REsp 403.551). Em 10/4/2008, quatro anos após adentrar no STJ, a ministra Maria Thereza de Assis Moura observou que o TJ-MG não havia realizado o juízo de admissibilidade do recurso especial, baixando os autos a fim de ser suprida a falha processual. O TJ-MG conheceu o recurso e remeteu os autos novamente ao STJ. Em 1º/10/2009, o recurso foi não conhecido pela relatora. Interposto agravo regimental, julgado em 3/11/2009. Interpostos embargos de declaração, acolhidos (sem efeito modificativo) em 11/12/2009. Novos embargos de declaração, rejeitados em 23/2/2010. Opostos embargos de divergência, indeferidos liminarmente em 20/4/2010. Agravo regimental julgado em 22/6/2011 e novos embargos declaratórios denegados em 24/8/2011. O recorrente postulou a extinção da punibilidade pela prescrição, sendo que o relator determinou a baixa ao TJ-MG para que as peças integrais fossem enviadas. Após idas e vindas do processo no STJ, decisão proferida em 24/2/2014 reconheceu a extinção da punibilidade pela prescrição, operada em 16/3/2013.

Eis o cenário processual: foram 22 anos de tramitação. A denúncia foi oferecida aproximadamente dois anos após o crime. Desse momento em diante, o processo apresentou dois erros grosseiros, que retardaram severamente a tramitação do caso: a anulação do júri em razão da (in)compatibilidade entre os parágrafos 1º e 2º do artigo 121 do CP (assunto há muito consolidado na jurisprudência); a não realização do juízo de admissibilidade do recurso especial pelo TJ-MG. Levamos em consideração o esgotamento da instância ordinária como sendo em outubro de 2009, pois o lapso operado entre 2002 e 2009 serviu tão-somente para a correção desse erro. Ou seja, a jurisdição ordinária prolongou-se por 16 anos aproximadamente. Já a jurisdição do STJ, iniciada regularmente em outubro de 2009, prolongou-se por aproximadamente quatro anos até a data da prescrição (16/3/2013).

9.2. Conclusão: a maior razão pela morosidade do processo deveu-se a equívocos processuais grosseiros nas instâncias ordinárias (anulação do júri e não realização do juízo de admissibilidade do recurso especial pelo TJ-MG). A defesa, é verdade, interpôs diversos recursos no STJ, mas veja-se que, do lapso prescricional de 12 anos incidente no caso, apenas quatro desses anos tramitaram na instância extraordinária. Eis a representação gráfica:

 

 

 

 

 

 

 

10. Análise final
Todos os casos citados são lamentáveis, porque efetivamente representam uma jurisdição morosa. Mas uma lupa nos detalhes de todos eles (e a mesma lupa poderia ser refeita em todos os processos penais brasileiros, com conclusões que certamente seriam bem piores) está muito longe de corroborar a linha argumentativa utilizada pelo ministro Barroso. As feridas são bem mais amplas do que as apontadas por ele.

Dos sete casos citados, quatro (Pimenta Neves, Luis Estevão, Pedro Talvane e Omar Coelho Vitor) tiveram uma instância ordinária mais morosa que a instância extraordinária, ou seja, a propalada letargia da jurisdição (capaz de propiciar a extinção da punibilidade pela prescrição, a tardia execução da pena ou a contemporânea pendência de solução final do caso) não pode ser atribuída à lenta tramitação dos recursos no STJ ou no STF, ou à interposição abusiva de recursos pela defesa.

Nesses quatro casos citados, são observadas verdadeiras bizarrices processuais que contribuíram, total ou parcialmente, para a tão criticada morosidade: ação penal proposta em juízo evidentemente incompetente; juiz federal que permanece com os autos conclusos durante um ano e sete meses; tribunal que se esquece de realizar juízo de admissibilidade em recurso especial; júri anulado por teimosia de juiz presidente; acórdãos levando tempo inimaginável para publicação etc. Nada disso está relacionado com interposição abusiva de recursos, tampouco com jurisdição extraordinária morosa.

Dos sete casos citados, apenas três (Dorothy, Edmundo e Propinoduto) ilustram uma morosidade processual predominante na instância extraordinária. Em alguns deles, é verdade, foi observada a interposição de recursos protelatórios. Mas em alguns dos casos também foram notadas anomalias processuais não imputáveis a medidas defensivas. Num dos casos, dois acórdãos, em conjunto, levaram um ano e oito meses para serem publicados pelo STJ; em outro, o TRF levou cinco anos para esgotar sua jurisdição, e assim por diante. Apesar de três casos citados pelo ministro Barroso terem a sua morosidade relacionada, em alguma medida, a estratégias defensivas que até se poderiam cogitar abusivas, esses mesmos casos contaram com contribuição não menos relevante da instância ordinária.

De tudo o que foi visto acima, não se irá negar que excessos no exercício da defesa podem contribuir para um atraso na prestação jurisdicional. Mas é sempre bom lembrar que a jurisdição possui outros mecanismos — que não fomentar imediatamente a execução antecipada da pena — para tolher distorções dessa natureza. Basta lembrar situações corriqueiras em que um ministro relator, deparando-se com recursos procrastinatórios, determina que os autos sigam tramitando, com a juntada em separado dos pedidos abusivos da defesa (em linha). Ou seja: o problema não é o abuso na interposição de recursos, mas, sim, omissão judicial em impedi-lo.

Para além disso, cremos que as razões de uma jurisdição morosa e socialmente desacreditada devem ser apontadas em toda a sua dimensão, não havendo espaço para seleção de dados no interesse do intérprete. Toda essa complexidade deve ser levada a conhecimento da sociedade em geral (afinal de contas, não é o “sentimento de impunidade” que está produzindo jurisprudência?) e da comunidade jurídica antes de qualquer avaliação razoável do objeto do julgamento. O voto do ministro Barroso no HC 152.752 debitou, na conta do uso abusivo de recursos perante o STJ e o STF, um passivo que possui outros devedores solidários bem mais relevantes. É chegada a hora de colocarmos em xeque o papel que todas as agências penais (Judiciário, Ministério Público, policiais, advogados etc.) vêm desempenhando para o descrédito na jurisdição.

Que dizer do artigo 62, II, da Lei 5.010/66 (que prevê excrescentes feriados de Quarta-feira Santa e Quinta-feira Santa para a Justiça Federal)? Por que o STJ não amplia o número mínimo de ministros previsto na Constituição (artigo 104) de modo a ter uma estrutura adequada para uma jurisdição célere? Quanto tempo dura, em média, um inquérito policial? A atuação do Ministério Público vem obedecendo aos prazos legais? Os juízes (inclusive, ministros) proferem seus despachos e suas sentenças em prazos razoáveis? As audiências são designadas com rapidez e com controle cartorário efetivo? Os servidores do juízo estão efetivamente preocupados com a tramitação célere de um processo? Os recursos tramitam em tempo hábil nos tribunais? A jurisdição brasileira (ordinária e extraordinária) pode ser considerada, de uma maneira geral, respeitosa, célere e efetivamente preocupada com uma distribuição justa do poder punitivo?

Essas perguntas poderiam ser aqui multiplicadas. Quem labuta na área criminal sabe que, com muita frequência, deparamo-nos com policiais, membros do Ministério Público, juízes, advogados e servidores que desempenham suas atividades com competência, zelo, respeito e celeridade. Não será aqui que iremos cometer o erro da generalização. Mas quem conta com essa mesma experiência também sabe que parcela significativa desses profissionais atua de forma ilegal, desidiosa e preguiçosa, beirando, às vezes, à prevaricação. O curioso é que o STF, ao valer-se da letargia da jurisdição para justificar a execução antecipada da pena, não tenha efetivamente colocado o dedo na ferida de todos os fatores que têm levado a população e os operadores do Direito a não mais confiar no Poder Judiciário. Enquanto isso não ocorre, seguimos com esse jeito tupiniquim de correção da seletividade do poder punitivo: em vez de melhorar o sistema, submetemos cada vez mais pessoas (e as mais vulneráveis são sempre as que mais sofrem) às suas distorções.

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