Direito Comparado

25 de abril: Revolução dos Cravos e fim da ditadura salazarista faz 44 anos

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

25 de abril de 2018, 22h34

Spacca
25 de abril de 1974, vinte minutos passados da meia-noite, a Rádio Renascença, emissora da Igreja Católica portuguesa, transmite a música Grândola, Vila Morena, cuja primeira estrofe tem os seguintes versos, cantados ao estilo do cante alentejano[1]: “Grândola, vila morena/Terra da fraternidade/O povo é quem mais ordena/Dentro de ti, ó cidade”. Em plena ditadura, falar-se em uma terra de fraternidade, na qual o povo é quem mais ordena, seria algo impensável. Não fosse, é claro, a circunstância de que a música de Zeca Afonso[2] era o segundo sinal dado aos revoltosos das Forças Armadas para confirmar o início das operações contra Marcello Cateano, presidente do Conselho de Ministros e herdeiro político de Antonio Salazar, o homem que governou Portugal por muitas décadas do século XX.

O levante, que se iniciara na madrugada de 24 de abril, teve início na Escola Prática de Cavalaria, localizada em Santarém, sob o comando do capitão Salgueiro Maia, um jovem oficial do Exército, que, como muitos de sua geração, se opunham à continuidade das guerras coloniais em África. O avanço até Lisboa deu-se sem incidentes e, no amanhecer de 25 de abril, o complexo político-administrativo da República, o Terreiro do Paço, foi ocupado pelos homens de Salgueiro Maia, com apoio de outras unidades sublevadas.

A reação do regime marcelista foi inócua. O brigadeiro Junqueira dos Reis, subcomandante da Região Militar de Lisboa, liderou um coluna de tanques até o Terreiro do Paço. Ao ordenar que disparassem fogo contra os rebeldes, a cadeia de comando rompeu-se. Ignorado por seus homens, Junqueira dos Reis sacou de sua pistola e ameaçou o tanquista-artilheiro: “Ou dá fogo ou meto-lhe um tiro na cabeça!”[3] A reação dos oficiais subordinados do brigadeiro foi de inércia. A ele não restou alternativa do que se retirar daquele sítio. Salgueiro Maia, anos após esse fatídico incidente, declarou: “Aqui é que se ganhou o 25 de Abril”.

Refugiado no Quartel do Carmo, com homens da polícia secreta e um pequeno contingente leal, o presidente Marcello Caetano foi assediado pelas forças de Salgueiro Maia e unidades da infantaria de Marinha. A queda do regime oficializou-se quando representantes do general António de Espíndola, herói das guerras coloniais e opositor à ditadura, negociaram a rendição do governo. Caetano saiu do quartel dentro de um tanque e terminou seus dias em exílio no Brasil, assim como toda uma geração de ilustres juristas, como Mário Júlio de Almeida Costa e João Antunes Varela.

Assim começava a Revolução dos Cravos e assim terminava um período histórico iniciado formalmente em 1932, quando o ministro da Fazenda António de Oliveira Salazar assumiu a presidência do Conselho de Ministros e, por consequência, a chefia de governo em Portugal.

A jovem democracia de 1974 seria marcada por um período inicial de enorme turbulência, cujo clímax passou à História como o Verão Quente de 1975, com a radicalização do chamado Processo Revolucionário em Curso – Prec. Empresas e bancos foram desapropriados. Milhares de servidores públicos perderam seus cargos, no que se chamou de “saneamento”, muitos dos quais eram professores universitários. Gabinetes ministeriais eram derrubados. O Partido Socialista, uma das bases de apoio da Revolução dos Cravos (o nome romântico da revolução de 1974), deixou o governo, distanciando-se da radicalização do Partido Comunista. A Assembleia Nacional Constituinte, da qual fizeram parte os catedráticos Jorge Miranda e Marcelo Rebelo de Sousa (hoje presidente da República), foi “sequestrada” por elementos radicais, tendo sido os deputados mantidos presos no recinto da assembleia.

Em 25 de novembro de 1975, deu-se uma tentativa de golpe militar, liderado por paraquesdistas da Base de Tancos e por militares do Regimento de Artilharia de Lisboa, com objetivo de destituir o governo moderado do primeiro-ministro almirante Pinheiro de Azevedo. No dia seguinte, o coronel Jaime Neves e o tenente-coronel Ramalho Eanes, liderando o Regimento de Comandos (um corpo especial do Exército português empregado nas missões mais perigosas nas guerras coloniais), deram o contragolpe de Estado e, após horas de combates, renderam os militares rebeldes, prenderam ou destituíram seus líderes e ocuparam a Rádio Televisão Portuguesa. Ramalho Eanes, saltando posições, foi graduado em general e nomeado chefe do Estado Maior do Exército. Nas eleições presidenciais de junho de 1976, terminou eleito presidente da República.

Dois anos após o 25 de abril, em 1976, na mesma data da Revolução dos Cravos, é promulgada a nova Constituição de Portugal, ainda hoje em vigor. Em linguagem fortemente marcada pelos ideais socialistas, que predominavam na época da Assembleia Constituinte, a constituição de 1976 foi o típico exemplo do que José Joaquim Gomes Canotilho viria a chamar de “constituição dirigente”, que vinculava o legislador em vários aspectos essenciais de sua atividade.

A Constituição de 1976, em seus quase 300 artigos, nasceu com um amplo catálogo de direitos fundamentais, ditos “direitos, liberdades e garantias” (em linguagem tipicamente francesa), que se dividiam pelos adjetivos: a) pessoais; b) de participação política; c) dos trabalhadores; d) econômicos, sociais e culturais. Estatizante, com um programa normativo pela reforma agrária, com normas de proteção aos trabalhadores de cunho eminentemente socialista, a versão original foi amplamente modificada a partir dos anos 1980. A constituição previu um mecanismo de revisão facilitada.

É interessante observar que as revisões de 1982, 1989, 1992 e 1997, as mais intensas, desfiguraram o caráter estatista e socialista do texto original. Particularmente no decênio de 1982-1992 as mudanças foram mais intensas. Curiosamente, Mário Soares, o grande líder do Partido Socialista português, liderou essas revisões quando foi primeiro- ministro ( mandato de 1983-1985) e presidente da República (1986-1996), as quais tiveram por efeito desestatizar a economia (que havia sido estatizada imediatamente após a Revolução dos Cravos) e abrir Portugal para seu ingresso na então Comunidade Econômica Europeia. As revisões de 2001, 2004 e 2005 acentuaram a adequação de Portugal à realidade europeia e aos desafios da economia capitalista.

A Constituição portuguesa, a despeito de suas amplas revisões, permanece com sua estrutura central relativamente preservada. Ela já ultrapassa a Constituição de 1826 no número de alterações em seus dispositivos. Sua importância, sua qualidade técnica e seu papel de inspiradora para as constituições lusófonas são inegáveis. A Constituição de 1988, outro exemplo de uma constituição considerada como dirigente, possui diversos pontos de contacto com sua homóloga de 1976, ao exemplo do catálogo de direitos fundamentais, de direitos trabalhistas e sociais; do controle de constitucionalidade por omissão; e da intervenção econômica.

O processo cultural, político e social que envolveu a elaboração da Constituição portuguesa de 1976 e a redemocratização do país em 1974, ambas as efemérides ocorridas em 25 de abril, foi marcado por diversas notas de interesse para o Direito e para as instituições jurídicas.

Inicialmente, é preciso observar que o saneamento de dezenas de professores de Direito no período de 1974-1976 fez com que houvesse um salto geracional inesperado nas universidades portuguesas. Grandes professores como Antunes Varela, integrantes de um governo de “catedráticos mandarins” (para esse conceito, ver minha coluna: https://www.conjur.com.br/2015-fev-25/direito-comparado-produz-jurista-modelos-portugues-parte) de António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano, perderam seus cargos e abriram-se claros que foram rapidamente preenchidos por jovens na casa dos 30 anos. Por outro lado, nomes promissores, verdadeiros prodígios jurídicos, como José de Oliveira Ascensão, foram saneados e interromperam o fluxo natural da carreira acadêmica.

No lugar desses catedráticos ou de futuros catedráticos, ficaram jovens como José Joaquim Gomes Canotilho (discípulo de Konrad Hesse) e Jorge Miranda (de formação francófona), os quais se converteram nos grandes nomes do Direito Constitucional em Coimbra e Lisboa, respectivamente, nas décadas seguintes.

Uma década mais tarde, em 1985, Menezes Cordeiro revelou-se no horizonte jurídico português com sua tese sobre a boa-fé no Direito Civil (com sucessivas reedições pela Almedina), que é um dos textos mais influentes na dogmática privatística internacional até os dias de hoje.

Alguns desses jovens professores, como Marcelo Rebelo de Sousa (catedrático de Direito Constitucional na Universidade de Lisboa) e Jorge Miranda, foram deputados à Assembleia Constituinte e usaram de seus conhecimentos jurídicos para dotar a Constituição de 1976 das qualidades que até hoje impressionam os que se dedicam a seu estudo.

Apesar da ruptura institucional de 1974, o 25 de abril não quebrou a tradição portuguesa dos “catedráticos mandarins”, construída ao longo do século XX, em larga medida graças a António Salazar, ele mesmo o arquétipo do governante oriundo da universidade e que se cercou de catedráticos para formação de seus gabinetes. Não sem razão que Marcello Caetano, seu sucessor, era ele um catedrático de Direito. A relevância dos professores universitários, embora se haja abrandado com o tempo, ainda é muito grande e são vários os exemplos de docentes como Paulo Mota Pinto (deputado à Assembleia da República) e João Calvão da Silva (ministro do governo de Pedro Passos Coelho, do Partido Social Democrático) que conjugam – ou conjugaram – a vida acadêmica e a atuação partidária.

Na celebração de mais um aniversário da Revolução dos Cravos, Portugal relembra seu papel na História do século XX. Charles Ralph Boxer (1904-2000), militar, agente secreto britânico no Extremo Oriente na Segunda Guerra Mundial, professor da Universidade de Cambridge, foi um dos maiores estudiosos de Portugal e da história portuguesa dos últimos 100 anos. Em seu livro Império Marítimo Português, de 1969, ele terminava com um alerta aos que ridicularizavam Portugal: o pequeno país europeu havia construído um império colonial que durava 500 anos e, diferentemente de britânicos e franceses, seria este o último da Europa e os portugueses lutariam até o fim. O 25 de Abril foi antes de tudo uma revolta de militares que não desejavam mais lutar pelas colônias. Eles se rebelaram contra o lema de Salazar: “orgulhosamente sós”.

Marcelo Rebelo de Sousa, atual presidente, é filho de um dos homens fortes do regime salazarista. Em 1974, ele estava ao lado dos liberais democratas na luta contra a ditadura e construiu sua carreira na universidade e na política. Chegou ao ápice em ambas. E hoje tenta simbolizar a unidade nacional de seu país. Esse Portugal complexo, contraditório, europeu e afro-asiático-americano, comemora hoje um dia especial em sua História e da democracia universal.


[1] Cante alentejano é um gênero musical português, reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade em 2014, por decisão da Unesco.

[2] José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, 1929-1987, compositor português.

[3] Conforme depoimento dos soldados envolvidos no incidente: https://www.publico.pt/2014/03/25/politica/noticia/ou-da-fogo-ou-meto-lhe-um-tiro-na-cabeca-1629510. Acesso em 20-4-2018.

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  • é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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