Opinião

O PL 7.448/17: quando os efeitos reais são diferentes dos resultados esperados

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24 de abril de 2018, 12h07

Entre os anos de 1998 e 2000, diversas creches na cidade de Haifa, em Israel, enfrentavam problemas com o atraso dos pais para buscar os seus filhos após o término das atividades. Com vistas a resolver esse problema, instituiu-se multa para coibir os atrasos e forçar os pais a cumprirem o horário.

Ocorre que, após a instituição da multa, os atrasos, ao invés de diminuírem, aumentaram. Uma das razões para explicar esse efeito inesperado é que o incentivo para as pessoas chegarem no horário correto deixou de ser apenas moral e passou a ser financeiro. Com isso, os pais puderam valorar economicamente o seu atraso e decidir, sem maiores pesos na consciência, quando valeria a pena chegar atrasado e quando seria melhor cumprir o horário (GNEEZY; RUSTICHINI, 2000).

Esse exemplo serve para ilustrar que os efeitos reais decorrentes de modificações de cláusulas contratuais ou mesmo de alteração de normas jurídicas podem produzir mudanças de comportamento diametralmente opostas daquelas esperadas.

Pensando no caso das creches de Haifa, é possível fazer algumas breves reflexões sobre as novidades trazidas pelo Projeto de Lei 7.448/17, o qual inclui, na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do Direito Público e que se encontra para sanção do presidente do República.

O referido projeto recebeu apoio de grandes juristas ligados ao campo do Direito Público, mas também foi alvo de críticas por entidades de classe e órgãos de controle, como o Ministério Público Federal e os tribunais de contas.

Um dos pontos que muito se discute e que vem gerando polêmicas diz respeito ao artigo 28, segundo o qual “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.

De um lado, aqueles que defendem a norma contida no artigo 28 argumentam que o dispositivo “possui por finalidade evitar que o administrador público fique acuado diante da possibilidade de, a qualquer equívoco posteriormente constatado por órgão de controle, ser responsabilizado com a perda do cargo público — muitas vezes obtido após disputado concurso público —, além do pagamento de multa, bloqueio de bens pessoais etc.” (ISSA, 2018).

As vozes contrárias, no entanto, advertem que “o dispositivo retrocede na almejada profissionalização da gestão pública, tão ansiada pela sociedade brasileira e buscada pela própria administração, em especial, pelo Controle Externo. A lógica exposta no dispositivo desconsidera o dever do Estado e de quem atua em prol do interesse público de agir com o máximo zelo e respeito às normas, não sopesando como relevante a responsabilidade daqueles que, embora não tenham atuado com dolo, demonstraram descuido ou inaptidão para atuar no serviço público e, em decorrência disso, também geraram prejuízos a toda uma coletividade” (ATRICON; AUDICON, 2018).

O que se pretende com a norma, de fato, é minimizar os riscos para o gestor público e trazer alguma segurança jurídica para sua atuação. A ideia por trás do dispositivo em comento não é ruim, já que leva em consideração os diversos desafios a que estão sujeitos os administradores públicos no cotidiano. No entanto, limitar a responsabilidade do agente apenas ao dolo ou ao erro grosseiro, excluindo quase por completo o elemento culposo, parece não ter sido boa escolha.

Em geral, a determinação do dolo nos ilícitos envolvendo a administração pública perpassa pela utilização de instrumentos de investigação e instrução que não foram, ordinariamente, outorgados aos tribunais de contas, tais como a quebra dos sigilos bancário e telefônico. Nessa linha, o TCE-PE, citando questionamento do ministro Bruno Dantas, indagou: “‘De que forma o órgão de controle vai provar que o agente público agiu deliberadamente para prejudicar o erário?’, perguntou o ministro do TCU, lembrando que os Tribunais de Contas não podem quebrar sigilo bancário, fiscal ou telefônico” (TCE-PE, 2018).

Diante dessa situação em que haverá necessidade de provar o dolo ou o erro grosseiro para responsabilizar agentes públicos que tiverem atuado em contrariedade ao Direito, os tribunais de contas poderão adotar ao menos duas medidas: de um lado, poderá haver a utilização de meios consensuais não punitivos para restaurar o equilíbrio na administração pública, tais como os termos de ajustamento de gestão. Além disso, os tribunais poderão aplicar, na prática, teorias que ainda são adotadas de forma tímida ou não tão clara no âmbito dos órgãos de controle. Cito, em especial, a teoria do “dolo administrativo”.

De acordo com Fábio Medina Osório, “o dolo, para efeitos de ser reconhecido no Direito Administrativo Sancionador, é genérico, o mais amplo possível” (2015, p.382). Assim, “se o agente descumpre abertamente normas legais, pouco importa o interesse perseguido, há uma infração dolosa” (OSÓRIO, 2015, p. 389).

Percebe-se, então, que, para a teoria do dolo administrativo, a violação às normas jurídicas já é condição suficiente para atestar o elemento subjetivo doloso da conduta do agente. Justamente pela amplitude com que se desenha, “o dolo administrativo pode absorver, nesses domínios tão rígidos, grande parcela dos elementos que ordinariamente integram figuras culposas”. (OSÓRIO, 2006).

Assim, adotando-se a teoria do dolo administrativo, a zona cinzenta entre o dolo e a culpa ficaria ainda mais nebulosa. Sendo o dolo caracterizado pelo descumprimento de normas legais pelo agente público, o campo reservado à culpa ficaria praticamente esvaziado.

Por esse motivo, caso os tribunais de contas venham abraçar essa teoria como meio de interpretação do artigo 28, alguns atos que então eram enquadrados como ilícitos culposos poderão passar a ser caracterizados como dolosos.

No processo de controle, a mudança de enquadramento da conduta culposa para a dolosa representaria, provavelmente, alterações na dosimetria das sanções aplicadas. Esse, contudo, não seria o fenômeno maior decorrente dessa “simples” mudança.

No campo eleitoral, saber se a rejeição das contas, pelo órgão de controle externo competente, se deu em virtude de ato doloso ou culposo é fundamental para que se determine se o sujeito poderá ser declarado inelegível, ou não. Refiro-me, expressamente, ao sempre lembrado artigo 1º, inciso I, alínea “g”, da Lei Complementar 64/90 (também chamada de Lei da Ficha Limpa), o qual possui a seguinte redação:

Art. 1º São inelegíveis:

I – para qualquer cargo:

g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição.

Caso os órgãos de controle passem a adotar a teoria do dolo administrativo, o número de agentes públicos que passarão a compor a lista a ser encaminhada pelos tribunais de contas à Justiça Eleitoral, nos termos do artigo 11, parágrafo 5º, da Lei 9.504/97, tenderá a ser maior, já que alguns atos até então vistos como culposos poderão ser encarados como dolosos, diante da zona cinzenta existente entre dolo e culpa.

Percebe-se, portanto, que, na tentativa de retirar os atos culposos praticados por agentes públicos do escopo de responsabilização dos órgãos de controle, o Projeto de Lei 7.448/17, caso aprovado, poderá criar situações ainda mais difíceis para essas pessoas.

Daí surge a importância de se atentar para os efeitos diretos e indiretos das novas regulamentações. Seja nas creches de Haifa ou mesmo na análise do Projeto de Lei 7.448/17, o exame adequado das variáveis e dos efeitos que uma norma de conduta pode gerar é de extrema importância, sob pena de se ter, justamente, o resultado oposto ao desejado.

Referências
Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon); Associação dos Ministros e Conselheiros Substitutos dos Tribunais de Contas (Audicon). Nota Técnica 01/2018. 10.abr.2018. Disponível: <http://www.atricon.org.br/wp-content/uploads/2018/04/Nota-Tecnica-01-2018-PL-7448-2017Atricon-Audicon.pdf>. Acesso em: 17.abr.2018.
ISSA, Rafael Hamze. Aprovação do PL 7.448/17 representará uma importante melhora institucional. Revista Consultor Jurídico. 16.abr.2018. Disponível: <https://www.conjur.com.br/2018-abr-16/rafael-issa-pl-744817-representa-melhora-institucional>. Acesso em: 17.abr.2018.
GNEEZY, Uri; RUSTICHINI, Aldo. A fine is a price. Journal Of Legal Studies, Chicago, v. 29, p.1-17, jan. 2000. Disponível em: <http://rady.ucsd.edu/faculty/directory/gneezy/pub/docs/fine.pdf>. Acesso em: 14.abr.2018.
OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2015.
OSÓRIO, Fábio Medina. Improbidade Administrativa: reflexões sobre laudos periciais ilegais e desvio de poder em face da Lei federal nº 8.429/92. 2006. Disponível: <http://amprs.org.br/arquivos/comunicao_noticia/Improbidade%20administrativa.pdf>. Acesso em: 17.abr.2018.
Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE). Procuradora defende veto a projeto aprovado no Congresso Nacional. 11.abr.2018. Disponível: <http://www.tce.pe.gov.br/internet/index.php/mais-noticias-invisivel/193-2018/abril/3870-procuradora-defende-veto-a-projeto-que-esvazia-atribuicoes-dos-orgaos-de-controle>. Acesso em: 17.abr.2018.

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