Opinião

PL 7.448/2017, em sua integralidade, caminha na contramão de 1988

Autor

23 de abril de 2018, 12h43

A recente aprovação pelo Congresso Nacional do Projeto de Lei 7.448/2017, de autoria do senador Antônio Anastasia (originado do PLS 349/2015), com posterior encaminhamento para sanção presidencial, vem causando fundada inquietação no meio jurídico, em especial ao Ministério Público, aos órgãos de controle da administração pública e Poder Judiciário.

A ambição e temeridade das propostas de alteração ali contidas depõem contra a própria motivação que fundamentou a edição do projeto, que corresponderia ao suposto “aumento da incerteza e da imprevisibilidade” ocasionado pela crescente elevação na quantidade de “regras sobre processos e controle da administração”, que estariam colocando em risco “os ganhos de estabilidade institucional”.

O projeto coloca óbices jurídicas ao combate às irregularidades administrativas, limita a atuação de órgãos de controle, como o Ministério Público e os tribunais de contas e atenta contra o sistema de freios e contrapesos decorrente do princípio da separação de poderes (CF, artigo 2º), cerne fundamental do nosso panorama constitucional.

O PL 7.448/2017 tramitou apenas por comissões das duas Casas Legislativas, sem deliberação e votação no Plenário e sem suficiente realização de audiências públicas, o que impediu que diversas instituições envolvidas e interessadas se manifestassem no procedimento. O objeto do PL é uma proposta de modificação na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), mediante o acréscimo de 11 novos artigos.

A LINDB é um guia hermenêutico geral para o Direito, de alto grau de abstração e generalidade. Tal instrumento normativo ostenta a natureza de lex legum ou norma de superdireito, isto é, uma norma jurídica que visa regulamentar outras normas. Nesse sentido, os assuntos tratados na LINDB são: vigência e eficácia das normas jurídicas, conflito das leis no tempo e no espaço, critérios de hermenêutica jurídica, instrumentos de integração do ordenamento jurídico e normas gerais de Direito Internacional Privado.

O PL 7.448/2017 tem a pretensão de praticamente duplicar o tamanho da LINDB, impondo algumas normas de interpretação do sistema jurídico e algumas regras e obrigações de teor concreto e específico, muito mais pertinentes a diplomas legais como a Lei de Improbidade Administrativa e a Lei do Processo Administrativo.

O núcleo da proposta, visando suposta preservação das decisões da administração pública, proteção da segurança jurídica e da eficiência na criação e aplicação do Direito, é a proibição da aplicação de princípios, que chama de “valores jurídicos abstratos”, sem que sejam consideradas as “consequências práticas da decisão”, bem como a judicialização da política, no sentido de atribuir aos magistrados o ônus de gestão de temas que constituem tipicamente mérito administrativo.

Trata-se de um retrocesso, um gesto anacrônico, diante da tentativa de enfraquecimento da força normativa e capacidade vinculativa dos princípios constitucionais, alçando a LINDB ao mesmo patamar da Constituição enquanto centro e referência do sistema jurisdicional. A conquista da primazia constitucional enquanto parâmetro hermenêutico do Direito brasileiro, em especial do Direito Público, foi fruto de um esforço duradouro acadêmico e jurisdicional, que já surtiu profundos efeitos na aplicação do Direito no país.

O Poder Judiciário, por sua vez, é rebaixado a órgão de chancela das ações administrativas, inclusive quanto à sua adequação e economicidade dos preços e valores.

O artigo 25 do projeto institui a chamada ação civil pública declaratória de validade de ato administrativo — uma estranha e improdutiva mistura entre a ACP e a ADC, seguindo o rito da primeira —, silenciando sobre legitimados ativos e relegando o Ministério Público surpreendentemente ao papel de réu. A atuação do parquet aqui seria pautada não pelas suas atribuições constitucionais, mas pelas demandas criadas pelos gestores públicos.

Conforme já apontado na Nota Técnica Conjunta 1/2018, documento público de repúdio ao PL 7.448/2017 emitido por várias das câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, tal movimento é flagrantemente inconstitucional, caracterizando uma subversão à função constitucional do MP. A tutela dos interesses sociais e individuais indisponíveis fica submetida à tutela dos interesses secundários da administração pública, interesses estes que nem sempre caminham na mesma direção.

O dispositivo, além de inconstitucional por ofensa aos artigos 127 e 129 da Constituição Federal, viola ainda os artigos 70 e 71, subtraindo, através de lei ordinária, competências relativas à verificação da regularidade dos atos, contratos, ajustes, processos e normas da administração pública, afetadas pela Carta Magna ao Poder Legislativo e aos tribunais de contas.

O maior paradoxo detectado no PL 7.448/2017 é a fórmula de que se valeram seus autores para enfrentar problemas como insegurança jurídica, alto grau de indeterminação do direito e imprevisibilidade decorrentes do aumento de regras sobre processos e controle da administração: uma profusão de expressões jurídicas abertas, profundamente suscetíveis interpretações e subjetivismos.

Nesse sentido, constam as seguintes expressões: “modo proporcional e equânime”, “interesses gerais”, “ônus ou perdas anormais ou excessivos” (artigo 21), “orientações gerais da época” (artigo 24), “segurança jurídica de interesse geral” (artigo 25), “solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais” (artigo 26), “prejuízos anormais ou injustos” (artigo 27) e “interpretação razoável” (artigo 28).

O PL 7.448/2017, em sua integralidade, caminha na contramão de 1988, ignorando o agora inevitável caráter constitucional do Direito Público, isto é, o fato de que as garantias individuais que estiverem envolvidas em uma relação jurídica pública têm primazia até mesmo ante ao imperativo da segurança jurídica e previsibilidade das decisões administrativas.

O que seus autores não conseguiram vislumbrar é que a conquista dos direitos fundamentais tem um preço, e ele é alto: o Estado e seus agentes têm responsabilidade e respondem judicialmente por ela, sempre que cabível. O impacto, a repercussão, as consequências jurídicas das relações jurídicas de Direito Público, por maiores e mais amplos que sejam, não são aptos a neutralizar as garantias individuais.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!