Direito Civil Atual

O caso Roe vs. Wade e o sistema de litígio estratégico nos Estados Unidos

Autores

  • Luciana Pedroso Xavier

    é advogada professora de Direito Civil na Faculdade de Direito da UFPR doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

  • Guilherme Brenner Lucchesi

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) doutor em Direito pela UFPR e master of laws pela Cornell Law School presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico secretário-geral do Instituto dos Advogados do Paraná e sócio-fundador do escritório Lucchesi Advocacia.

23 de abril de 2018, 8h05

Em 18 de fevereiro de 2017, morreu Norma McCorvey, mais conhecida pelo pseudônimo Jane Roe — utilizado no processo movido contra o estado do Texas na Justiça Federal dos Estados Unidos. O caso Roe vs. Wade1 acabou chegando à Suprema Corte, que decidiu pela primeira vez, em 1973, que a Constituição americana assegura às gestantes um direito à privacidade, o qual lhes confere a possibilidade de interromper a gestação durante o seu primeiro trimestre, livre de embaraços ou vedações pelo Estado.

O caso de McCorvey (ou Roe, nome que a levou à fama) chama a atenção não apenas pelo pioneirismo da decisão proferida, mas também pelo caminho percorrido até chegar à Suprema Corte. À época, com 22 anos, McCorvey enfrentava sua terceira gestação — já não tinha a guarda de seus dois primeiros filhos, em decorrência de problemas envolvendo inaptidão (não tinha trabalho fixo, era usuária de drogas e já fora moradora de rua). McCorvey não queria levar sua terceira gestação a termo e preferia interromper aquela gravidez. Suas opções, no entanto, eram limitadas: as leis do Texas apenas permitiam o abortamento em casos de risco à vida da gestante, o que não era o caso; em razão de suas condições econômicas, McCorvey não poderia viajar para outro local. Procurou uma clínica clandestina em Dallas — mas esta havia sido recém-fechada pelas autoridades. Buscou, então, uma autorização judicial para abortar, alegando falsamente ter sido vítima de violência sexual. Com isso, McCorvey acabou fazendo contato com duas advogadas, Sarah Weddington e Linda Coffee, que buscavam alguma mulher disposta a entrar em juízo contra as leis texanas que restringiam o acesso ao aborto.

Para que determinada situação possa ser levada à Justiça dos Estados Unidos, é necessária a existência de algum “caso ou controvérsia”, segundo o artigo III da Constituição2. Daí decorre que uma condição necessária à legitimidade ativa no processo americano é a existência de algum interesse real em jogo — chamado standing —, não se podendo questionar a constitucionalidade de leis em tese. Isso faz com que o litígio estratégico torne-se o principal meio de levar casos polêmicos à jurisdição da Suprema Corte.

Ademais, não basta que o advogado ou a instituição interessada em questionar a constitucionalidade de determinada lei encontre algum autor. Deve-se ter em mente que Suprema Corte tem discricionariedade na escolha de casos que serão julgados, com o poder de definir a sua própria agenda e de fato pautar as questões jurídicas que serão debatidas e decididas — de uma média de 7 mil processos recebidos a cada ano, apenas cerca de 100 a 150 tem o chamado writ of certiorari concedido3. É preciso, assim, se encontrar o “autor perfeito”4. Acaba-se, porém, esquecendo a figura do autor da vida real — utilizado, em algumas situações, como mero instrumento de acesso ao Poder Judiciário5.

Ao fim e ao cabo, há evidências de que McCorvey tenha sido uma vítima do sistema judicial americano, que exige a existência de um autor concreto. A decisão do caso Roe vs. Wade, com sete votos a dois em seu favor, modificou a regulação do aborto existente no país. Entretanto, apesar da “vitória”, McCorvey não conseguiu o que queria. Durante o processo, muito antes de seu caso chegar à Suprema Corte, houve o nascimento da criança, que foi encaminhada para a adoção. Apesar da importância de seu caso ao movimento Pro Choice, McCorvey nunca abortou.

O ressentimento de McCorvey com a atuação de suas advogadas e do sistema judicial ficou bastante claro anos mais tarde, quando assumiu publicamente sua identidade como Jane Roe e veio a se tornar uma ativista no movimento Pro Life, mudando paradoxalmente seu posicionamento e lamentando a influência sofrida pelas advogadas no processo judicial6. Chegou até mesmo a entrar na Justiça para reverter a decisão no caso Roe vs. Wade, mas perdeu em todas as esferas judiciais7.

Com a crescente “americanização” do Direito Processual brasileiro, costuma-se remeter ao sistema americano como um modelo a ser seguido. A experiência, por outro lado, como no exemplo vivido por Norma McCorvey (Jane Roe), mostra como o sistema de controle de constitucionalidade difuso dos Estados Unidos pode ser cruel.

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Agradecemos a oportunidade de escrever para a coluna "Direito Civil Atual", dirigida pela Rede de Direito Civil Contemporâneo, sob a coordenação dos ministros Luís Felipe Salomão, Antonio Carlos Ferreira e Humberto Martins, ao lado dos professores Ignacio Poveda, Otavio Luiz Rodrigues Junior, José Antônio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).


1 Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
2 SCALIA, Antonin. The Doctrine of Standing as an Essential Element of the Separation of Powers. Suffolk University Law Review, v.17, p.881-899, 1983. p. 882-885.
3 LUCCHESI, Guilherme Brenner; PUGLIESE, William Soares. Justiciabilidade nos Estados Unidos da América: Limites para a obtenção de uma decisão pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América. In: BUSTAMANTE, Thomas; SAMPAIO, José Adércio Leite; ENRÍQUEZ, Igor de Carvalho (Orgs.). Precedentes Judiciais, Judicialização da Política e Ativismo Judicial. Belo Horizonte: Initia Via, 2016. p.124.
4 Para um relato de reconstrução histórica da regra de standing a partir dos casos de discriminação racial, ouvir ABUMROD, Jad. The Imperfect Plaintiffs. More Perfect, 28 jun. 2016. Podcast. 1 MP3 (64 min.). Disponível em: <https://goo.gl/28FMPu>. Acesso em 12.fev.2018.
5 BUKOVSKÁ, Barbora. Perpetrando o bem: as conseqüências não desejadas da defesa dos direitos humanos. SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos, ano 5, n.9, p.6-21, São Paulo, dez. 2008.
6 FOSTER, Julie. The real “Jane Roe”: famed abortion lawsuit plaintiff says uncaring attorneys “used” her. WorldNetDaily, 4.fev.2001. Disponível em: <https://goo.gl/AfC4mc>. Acesso em 9.fev.2018: “Puro e simples, fui usada. Eu não era ninguém para elas. Elas só precisavam de uma mulher grávida para usar para o caso, e é isso. Elas se importavam, não comigo, mas apenas com a legalização do aborto. Mesmo depois do caso, nunca fui respeitada — provavelmente porque eu não era uma feminista liberal educada em universidades de prestígio, como elas eram” (tradução livre dos autores).
7 McCorvey v. Hill, 385 F.3d 846 (5th Cir., 2004), cert. denied McCorvey v. Hill, 543 U.S. 1154 (2005).

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    é advogada, professora do UniCuritiba, doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro do Grupo de Pesquisa em Direito Privado Comparado da UFPR.

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    é advogado, professor do UniCuritiba, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), master of laws pela Cornell Law School e membro do New York State Bar e do Grupo de Pesquisa em Direito Privado Comparado da UFPR.

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