Segunda Leitura

A polêmica transmissão ao vivo dos julgamentos nos tribunais

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

22 de abril de 2018, 8h10

Spacca
O Supremo Tribunal Federal criou, no ano de 2002, a TV Justiça, exibida nos canais 24 (Sky) e 8 (Net). Iniciativa pioneira, ela permite ao público que conheça melhor o Judiciário do país. Transmite julgamentos, promove entrevistas, oferece seminários e cursos sobre temas do momento.

Não é essa uma prática adotada em outros países. A Suprema Corte do Reino Unido exibe parte de seus julgamentos. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte sequer decide em público, seus integrantes retiram-se, discutem o caso e anunciam a decisão. Nem se cogita dar-se publicidade aos julgamentos em Portugal, Itália, França e outros países.

No Brasil, a iniciativa da corte suprema acabou influenciando ações semelhantes em outros tribunais. Reportagem revela que “a prática de transmitir em tempo real os julgamentos é realizada em 41 dos 93 tribunais”1 e, em anexo, informa qual o procedimento de cada um. Por exemplo, o STF utiliza a sua TV, a Rádio Justiça e o YouTube. O TRF-4 e o TJ-RN valem-se do site e do YouTube. O TJ-DF usa o Twitter2. Muitos utilizam apenas o site, como o TJ-PA.

Nenhum tribunal está obrigado a transmitir seus julgamentos. É verdade que o artigo 93, inciso 9º e o artigo 792 do Código de Processo Penal determinam que todos os julgamentos sejam públicos. Isso, porém, significa apenas que, quem quiser, poderá assisti-los, e não que o tribunal esteja obrigado a transmiti-los. A transmissão dos julgamentos é, portanto, voluntária, cada tribunal é soberano para decidir a respeito.

O assunto, entretanto, desperta posições antagônicas. Para uns, ela torna mais transparente o Poder Judiciário e, assim, atende ao objetivo de permitir à sociedade o conhecimento de decisões que irão afetá-la. Para outros, expõe os julgadores, estimula vaidades, origina votos longos e os induz a julgar da forma como pensa a maioria.

Fácil é ver que ambas as posições têm vantagens e desvantagens. O melhor caminho, por certo, é analisar todos os aspectos e optar pelo que traduza maior interesse público. Ao meu ver, após muita reflexão, a transmissão dos julgamentos é a melhor opção.

O primeiro motivo é a ponderação de que vivemos época de crescente divulgação dos atos da vida pública e privada. Nesta, o Facebook é a maior expressão; são nada menos do que 1,6 bilhão de usuários ao redor do mundo3. Voluntariamente, um significativo número de pessoas expões suas vidas privadas, alguns relatando até fatos banais, como a entrada em um shopping center.

O seriado Black Mirror, da Netflix, assusta-nos retratando como poderá ser a vida dentro de alguns anos. Ao que parece, no futuro todos serão controlados de alguma forma e dessa tendência não escaparão os serviços públicos, inclusive do Poder Judiciário. Por isso, o melhor a fazer é preparar-se e antecipar-se, adaptando-se, da melhor forma, ao inevitável.

Outro ponto tido por negativo é a exposição dos julgadores. Assumem o risco de serem hostilizados em locais públicos pelos que pensam de forma diferente de seus votos. Parece-me que essa é uma meia verdade. Se a exposição for técnica, discreta, desapaixonada, o risco será pequeno. Mas, se o julgador se empenhar em fazer valer sua opinião, como se fosse advogado de uma das partes, com certeza o risco de ser confrontado será maior.

O estímulo à vaidade é um argumento forte. Mas é preciso lembrar que a vaidade acompanha, em maior ou menor grau, todos os seres humanos. Na Bíblia Sagrada, está a palavra do filho de David: “Vaidade de vaidades! Tudo é vaidade”4. Alguns animais também trazem consigo a vaidade, e o pavão é o símbolo máximo. Na fábula O corvo e o pavão, La Fontaine bem retratou tal sentimento, e o corvo, acidamente, mostrou ao pavão que seus pés eram feios. Portanto, “não há beleza sem senão”5.

Mas, se a vaidade é uma de nossas humanas imperfeições, a inteligência manda que ela dominada. Ninguém chega a um tribunal sem dotes intelectuais e um QI de bom tamanho. Assim, magistrados de qualquer instância devem se inspirar naqueles que alcançaram grande sucesso e nunca cederam à vaidade. E lembrar-se todos os dias que as glórias do mundo são passageiras (Sic transit gloria mundi). Em poucos anos, o porteiro do prédio, que corria para abrir-lhe a porta, trocará o pomposo título que precedia seu nome por “Seu Fulano”.

Longos votos, recheados de palavras incompreensíveis, estão totalmente fora de moda, estão mais para século XIX do que XXI. Se o objetivo da exibição do julgamento em tempo real é a aproximação com a sociedade, deve-se procurar evitar expressões que até os profissionais do Direito têm dificuldade de identificar (por exemplo, juízo de delibação) ou o latim (como fumus boni juris, locus ou de lege ferenda). Claro que elas podem entrar no voto escrito e assim ficarem resguardadas para a posteridade. Mas não precisam ser ditas publicamente, tirando o bom humor de quem assiste.

O magistrado que está sendo filmado ou televisionado em tempo real pode fazer o grande favor de poupar os espectadores de sua 43ª referência a doutrinadores estrangeiros, limitando-se, de forma clara e direta, a dizer o que pensa. Ninguém tem tempo ou interesse em longas exposições. Não é à toa que o maior centro de palestras do mundo, TED talkvi, limita em 18 minutos a apresentação de seus expositores.

O último ponto negativo é o risco de julgar com base na opinião pública. Aí, sim, o cuidado deve ser redobrado. Todos sabem a interferência que a opinião pública exerce sobre quem investiga, acusa ou julga. Em cidades pequenas, isso é acompanhado de perto pela população. Mas, nas grandes, os atores públicos podem ser influenciados pelos meios de comunicação e redes sociais.

O professor Roberto Omar Berizonce, da Universidade de La Plata, Argentina, alerta que é necessário rechaçar a presença de todos os grupos de pressão, inclusive a mídia, para “a salvaguarda da livre convicção judicial que é garantia insubstituível para os cidadãos”7.

O caminho é um só. O magistrado deve procurar cumprir o que determina a Constituição e as leis de seu país, tudo em conformidade com a sua consciência. Juiz não é político, não é eleito e não está no cargo para agradar esta ou aquela parcela da sociedade, seja minoria ou maioria. Mesmo que pague um preço alto por isso, como a rejeição da sociedade. Quem entra na magistratura deve estar preparado para isso.

Nos tribunais, todas essas dificuldades podem ser superadas com a discussão prévia dos julgamentos mais complexos. Posições diversas podem ser aproximadas. Ou mantidas, o que não é nenhum problema. O importante é que as divergências existentes não sejam expostas no julgamento, com ataques que destroem a credibilidade das pessoas nos que os julgam.

Comparando-se os aspectos favoráveis e desfavoráveis à transmissão dos julgamentos em tempo real, a conclusão a que chego é que os positivos prevalecem sobre os negativos e que estes podem ser superados com inteligência e boa vontade.

De resto, no Brasil, a população já incorporou seu direito de ver e conhecer os motivos das decisões judiciais. A tendência é que as transmissões dos julgamentos venham a tornar-se cada vez mais frequentes. E assim se aumenta o controle social dos atos públicos pela sociedade, caminho sem volta que auxilia no aprimoramento das instituições dos três Poderes de Estado.


1 MELO Thiago, Menos da metade dos tribunais brasileiros transmitem suas sessões ao vivo. Disponível no site Poder 360, https://www.poder360.com.br/justica/menos-da-metade-dos-tribunais-brasileiros-transmitem-suas-sessoes-ao-vivo/. Acesso em 20/4/2018.
2 Disponível em https://www.poder360.com.br/wp-content/uploads/2018/04/Tribunais-2.pdf. Acesso em 20/4/2018.
3 Disponível em https://www.guiase.com.br/numeros-do-facebook-e-whatsapp-surpreendem-no-brasil-e-no-mundo/. Acesso em 19/4/2018.
4 BÍBLIA, Eclesiastes, 1:2.
5 Monteiro Lobato. Fábulas. São Paulo: Ed. Brasiliense Ltda., 1957, p. 88.
6 Disponível em https://www.ted.com/ . Acesso em 19/4/2018.
7 Berizonce, Roberto Omar. Recientes tendencias em la posición del juez. Em El juez y la magistratura. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 199, p. 54.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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