Opinião

O contrato de trabalho no sistema time-sharing, ou multipropriedade

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22 de abril de 2018, 6h40

1. Introdução
A expressão inglesa time-sharing significa, ao pé da letra, “tempo compartilhado”. Foi utilizada, originalmente, na programação de computadores para definir o processo de alternância entre os diversos sistemas operacionais de informática, de modo a permitir ao usuário o acesso simultâneo a várias tarefas. Os átimos de tempo ociosos entre uma operação e outra são aproveitados (“compartilhados”) pela operação seguinte para agilizar o processamento dos dados e, ao mesmo tempo, dar ao usuário a sensação de que todas as partes do sistema funcionam simultaneamente, embora, na prática, uma operação em sequência somente seja iniciada com a conclusão da anterior.

Como conceito aplicado ao mercado imobiliário, o time-sharing nasceu no pós-guerra, por volta de 1960, para fazer frente à recessão econômica e permitir o uso compartilhado de casas de veraneio (vacation home sharing). Em 1974, o sistema foi introduzido nos EUA pela empresa Caribbean International Corporation no compartilhamento de "licenças de uso" (vacation license) em quartos de seus resorts. Algum tempo depois, Richard Santuilli criou através da NetJets o fractional ownership (propriedade compartilhada) para permitir que pessoas físicas ou jurídicas adquirissem quotas ou frações de aviões particulares.

Time-sharing é a fruição compartilhada de um bem por unidade de tempo. Como regra, o bem pertence a um ou mais empreendedores que concebem e organizam sua fruição periódica pelos próprios titulares, ou por terceiros, mediante cessão livre ou pagamento de determinadas cotas pelas unidades de tempo (diárias), além de, eventualmente, prever-se a necessidade compulsória de taxas extras para manutenção, reparo, ampliação ou modernização do negócio.

Na prática, o titular de uma cota sobre um bem administrado em regime de time-sharing, ou multipropriedade, assemelha-se a um condômino de um condomínio edilício e equipara-se ao consumidor de um serviço contado em unidade de tempo mediante pagamento de uma mensalidade que lhe dará direito a usufruir de diárias (unidades de tempo) segundo o calendário livremente ajustado em contrato com o gestor ou administrador da multipropriedade.

A diferença básica entre o fractional ownership e o time-sharing é que no ownership o comprador se torna proprietário de uma fração do próprio bem e pode vendê-la lucrando com a diferença entre o preço de compra e o de venda, e no time-sharing não se compra o bem, propriamente, mas uma unidade de tempo desse bem para ser usada e fruída pelo próprio adquirente ou terceiros por ele autorizados mediante empréstimo ou locação nos prazos e condições fixados em contrato.

2. Natureza jurídica do contrato de time-sharing
A natureza jurídica do contrato de time-sharing — se é direito real ou pessoal, comunidade de bens ou propriedade quatridrimensional — é controvertida na doutrina e nos tribunais. Direito real é aquele em que seu detentor possui a coisa de modo definitivo, podendo usá-la e fruí-la segundo a livre disposição de sua vontade. O direito real diz respeito ao conjunto de regras que dispõem sobre o poder das pessoas sobre as coisas apropriáveis, isto é, aquelas que podem ser objeto de propriedade. Numa palavra, o direito real investe o seu titular diretamente na propriedade da coisa. Direito pessoal é aquele em que o seu detentor não possui a coisa diretamente, mas um direito sobre o seu uso.

Além de entender que a multipropriedade tanto pode ser direito pessoal como real, há quem a ela se refira como “comunidade de bens” ou “regime jurídico imobiliário”. A doutrina italiana fala em “propriedade quatridimensional” por considerar o tempo de uso do imóvel no sistema time-sharing uma quarta dimensão da propriedade. Como a lei não classifica o time-sharing como direito real e não se cria direito real por convenção entre particulares, a maioria da jurisprudência entende que o contrato de time-sharing é um direito pessoal.

Recentemente, contudo, o STJ disse[1] que se trata de direito real porque o time-sharing se perfaz por meio de um contrato preliminar formalizado e registrado como promessa particular de cessão de direitos em favor do comproprietário. Assim, tendo por objeto a fração ideal do imóvel submetido ao regime de multipropriedade, esse registro atribuiria ao seu titular um direito real de aquisição, na forma dos artigos 1.225, 1.417 e 1.418 do Código Civil. O coproprietário seria terceiro em relação ao empreendimento e em caso de penhora da multipropriedade deveria defender-se por meio de embargos[2].

Este é o entendimento prevalente:

Multipropriedade imobiliária. Time-sharing. Direito real ⸺ fração ideal. Penhora. Processual civil e civil. Recurso especial. Embargos de terceiro. Multipropriedade imobiliária (time-sharing). Natureza jurídica de direito real. Unidades fixas de tempo. Uso exclusivo e perpétuo durante certo período anual. Parte ideal do multiproprietário. Penhora. Insubsistência. Recurso especial conhecido e provido.

1. O sistema time-sharing ou multipropriedade imobiliária, conforme ensina Gustavo Tepedino, é uma espécie de condomínio relativo a locais de lazer no qual se divide o aproveitamento econômico de bem imóvel (casa, chalé, apartamento) entre os cotitulares em unidades fixas de tempo, assegurando-se a cada um o uso exclusivo e perpétuo durante certo período do ano.

2. Extremamente acobertada por princípios que encerram os direitos reais, a multipropriedade imobiliária, nada obstante ter feição obrigacional aferida por muitos, detém forte liame com o instituto da propriedade, se não for sua própria expressão, como já vem proclamando a doutrina contemporânea, inclusive num contexto de não se reprimir a autonomia da vontade nem a liberdade contratual diante da preponderância da tipicidade dos direitos reais e do sistema de numerus clausus.

3. No contexto do Código Civil de 2002, não há óbice a se dotar o instituto da multipropriedade imobiliária de caráter real, especialmente sob a ótica da taxatividade e imutabilidade dos direitos reais inscritos no art. 1.225.

4. O vigente diploma, seguindo os ditames do estatuto civil anterior, não traz nenhuma vedação nem faz referência à inviabilidade de consagrar novos direitos reais. Além disso, com os atributos dos direitos reais se harmoniza o novel instituto, que, circunscrito a um vínculo jurídico de aproveitamento econômico e de imediata aderência ao imóvel, detém as faculdades de uso, gozo e disposição sobre fração ideal do bem, ainda que objeto de compartilhamento pelos multiproprietários de espaço e turnos fixos de tempo.

5. A multipropriedade imobiliária, mesmo não efetivamente codificada, possui natureza jurídica de direito real, harmonizando-se, portanto, com os institutos constantes do rol previsto no art. 1.225 do Código Civil; e o multiproprietário, no caso de penhora do imóvel objeto de compartilhamento espaço-temporal (time-sharing), tem, nos embargos de terceiro, o instrumento judicial protetivo de sua fração ideal do bem objeto de constrição.

6. É insubsistente a penhora sobre a integralidade do imóvel submetido ao regime de multipropriedade na hipótese em que a parte embargante é titular de fração ideal por conta de cessão de direitos em que figurou como cessionária.

7. Recurso especial conhecido e provido. Recurso Especial 1.546.165, São Paulo, j. 26/4/2016, DJe 6/9/2016, rel. João Otávio Noronha.

3. Tipos de multipropriedade
As relações obrigacionais dos contratantes de um bem em regime de time-sharing são complexas e multifacetárias porque envolvem interesses dos multiproprietários entre si, dos multiproprietários e a sociedade empresária administradora do negócio, dos multiproprietários e os terceiros a quem eventualmente locarem o direito de usufruto das suas unidades de tempo e dos empregados e os multiproprietários ou daqueles e a empresa administradora do empreendimento. A doutrina costuma referir-se a três tipos de multipropriedade.

Na primeira — acionária ou societária —, uma sociedade, proprietária de bem destinado ao lazer, emite ações ordinárias e ações preferenciais. As primeiras representam a propriedade do bem e permanecem em poder de seus proprietários; as segundas são vendidas a sócios-usuários e representam um direito de uso por turnos (unidades de tempo) previamente definidos em contrato.

Na segunda — direito real de habitação periódica —, a multipropriedade seria um direito real de fruição da coisa alheia por unidade de tempo. Na terceira — copropriedade imobiliária ou de complexo de lazer —, cada multiproprietário detém uma quota da fração ideal do solo, da edificação e dos aparatos de lazer (lavanderia, quadras de esporte, piscinas, lanchonete, restaurante, academia etc.), podendo usá-la e fruí-la (compartilhá-la) em determinados lapsos de tempo ao longo do ano.

4. Responsabilidade trabalhista
Para a CLT, empregador é a empresa. Empresa é a atividade do empresário. É essa atividade quem contrata, assalaria e dirige a prestação pessoal do serviço. Patrão é, em princípio, essa atividade, e não as pessoas que a exercitam. No time-sharing, em regra um bem (casa, resort, apartamento, barco, avião, título de clube etc.) pertence a uma ou mais pessoas (físicas ou jurídicas) que poderão explorá-lo diretamente ou por meio de um terceiro especializado (pessoa física ou jurídica) chamado gestor, administrador ou empreendedor.

O usufruto dos bens por seus proprietários ou usuários ocasionais assemelha-se à comunhão própria dos condomínios edilícios, com a diferença de que nos condomínios horizontais o condômino quase sempre é proprietário de uma unidade habitacional e, no time-sharing, o contratante não possui uma fração ideal do bem, mas uma unidade de tempo em que pode usar e fruir desse bem como se fosse seu.

Tratando-se de uso compartilhado de imóveis, ao lado das áreas privativas pode haver outras de uso comum como piscinas, saunas, restaurantes, salas de ginástica e quadras de esporte cuja manutenção requer um staff treinado e à disposição dos usuários. Se esse pessoal é contratado diretamente pelos proprietários do bem ou por uma empresa que, a mando deles, o administra, a empresa e todos esses proprietários respondem direta e solidariamente pelos contratos de trabalho como se se tratasse de um autêntico condomínio ou um consórcio de empregadores onde os comunheiros respondem pelas obrigações in solidum, sem se admitir que uns respondam apenas por uma parte das obrigações e outros por outras. Os vínculos de emprego formam-se com a empresa administradora do time-sharing — se houver — ou diretamente com os proprietários das unidades habitacionais exploradas nesse regime, segundo esses empregados tenham sido contratados por uma empresa administradora da multipropriedade ou diretamente pelos próprios donos do bem.

Pode ocorrer, contudo, que os proprietários das unidades habitacionais comercializadas no sistema time-sharing decidam que cada um poderá contratar o seu próprio pessoal, estabelecendo salários diferenciados, horário e condições de trabalho e outras normas de serviço próprias da sua organização pessoal. Se esses empregados, assim contratados, prestarem serviços exclusivamente aos proprietários contratantes, no âmbito dessas unidades habitacionais, e não aos demais proprietários, se não se ocuparem de nenhuma tarefa de administração ou não exercerem nenhuma atividade nas áreas comuns da multipropriedade, a responsabilidade pelos seus contratos de trabalho será exclusiva do proprietário que os admitiu, mas os demais comproprietários e a empresa gestora dos bens no sistema time-sharing respondem subsidiariamente pelas obrigações dos contratos de trabalho caso o proprietário contratante desapareça ou não tenha saúde financeira para responder pelos débitos.

5. Empregados de time-sharing são domésticos?
Empregados contratados pelo gestor da multipropriedade ou pelo proprietário de um imóvel em regime de time-sharing para os serviços de administração e manutenção do negócio não são domésticos. A eles aplica-se a CLT. Doméstico, segundo o artigo 1º, da PEC 150, de 1º de junho de 2015[3], é aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de dois dias por semana. Um imóvel em regime de time-sharing tem evidente finalidade lucrativa.

Conclusão
Time-sharing, ou multipropriedade, é o uso compartilhado de um bem por unidade de tempo. Os contratantes não adquirem uma fração ideal do bem, mas de um direito de uso desse bem por unidade de tempo.

Não há consenso na doutrina ou nos tribunais se se trata de direito real ou pessoal. Os empregados que tornam o negócio viável podem ser contratados diretamente pelos multiproprietários ou pela sociedade que administra o bem em nome deles. Se contratados diretamente pelos proprietários do bem ou pela empresa que o administra, a empresa e os comproprietários contratantes respondem direta e solidariamente pelos contratos de trabalho como se se tratasse de um autêntico condomínio ou de um consórcio de empregadores onde os comunheiros respondem pelas obrigações in solidum, sem se admitir que uns respondam apenas por uma parte das obrigações e outros por outras.

Os vínculos de emprego formam-se com a empresa administradora do time-sharing — se houver — ou diretamente com os proprietários das unidades habitacionais exploradas nesse regime, segundo esses empregados tenham sido contratados pela empresa administradora ou pelos próprios donos do bem. Se cada proprietário de uma fração ideal do bem contratar o seu próprio pessoal estabelecendo salários diferenciados, horário e condições de trabalho e outras normas de serviço próprias da sua organização pessoal, o contratante responde diretamente, mas os outros comproprietários respondem em caráter subsidiário. Nenhum desses empregados é doméstico porque a multipropriedade tem evidente finalidade lucrativa.


[1] REsp. 1.546.165, de 26/4/206, publicado no DJe em 6/9/2016.
[2] No caso, o imóvel administrado em regime de time-sharing estava registrado em nome da incorporadora, executada em ação judicial. Feita a penhora da totalidade do imóvel, uma das coproprietárias aviou embargos de terceiro para excluir da constrição a sua fração ideal. O Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu tratar-se de direito obrigacional e julgou o pedido improcedente. O STJ reformou essa decisão.
[3] Revogou a Lei 5.859/72 e regulamentou o trabalho doméstico.

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