Opinião

A incongruência da Teoria Eclética da Ação proposta por Liebman

Autor

  • João Roberto Machado

    é advogado especialista em Processo Civil pelo IDP (Instituto Brasiliense de Direto Público) diretor-adjunto de Publicações na ABPC (Associação Brasiliense de Processo Civil) membro do Tribunal de Ética da OAB-DF.

22 de abril de 2018, 16h08

O Código de Processo Civil de 2015 manteve em suas disposições as figuras do interesse de agir e da legitimidade para a causa, deixando de lado a previsão da impossibilidade jurídica do pedido existente no código de 1973. Ocorre que a manutenção das condições da ação no Direito Processual brasileiro não estão harmônicas com o sistema, sendo de relevância uma análise da Teoria Eclética da Ação proposta por Liebman.

A dissociação do sistema processual dos capítulos dedicados ao Direito Privado resultou no processo civil moderno, o qual passou a ser visto como matéria autônoma do Direito, e não mais como um modo de exercício destes. Oskar Von Bulow foi parte essencial no nascimento da fase autonomista do processo, demonstrando a existência de uma relação jurídica entre sujeitos do processo (incluindo neste momento o juiz), dotada de pressupostos processuais, condições, objetos e princípios próprios, que tornam o sistema processual diferente da relação jurídica material em litígio[1].

Durante as fases sincrética, autonomista e instrumentalista, vários estudos se dedicaram a definir o conceito de ação, surgindo, entre os principais, a Teoria Civilista da Ação, a Teoria do Direito Concreto de Ação, a Teoria do Direito Abstrato de Ação e a Teoria Eclética da Ação, sendo esta última capitaneada por Enrico Túlio Liebman em tentativa de superar as teorias anteriores, de onde se originou as chamadas condições da ação[2], adotada pela legislação processual civil brasileira a partir de 1973.

A Teoria Civilista da Ação, apresentada por Savigny e Clóvis Beviláqua (entre tantos outros), trata a ação como parte do direito material consubstanciado no direito de perseguir em juízo o que lhe é devido[3], incorrendo em consequências que não possibilitavam explicar a ação que vinha a ser julgada improcedente, já que não haveria ação sem direito, não haveria direito sem ação, e a ação seguiria a natureza do direito[4]. Havia, portanto, uma confusão entre o exercício da pretensão de tutela jurídica estatal e o direito material tutelado.

Oskar Von Bulow já havia demonstrado a impossibilidade de continuar se confundindo o direito material com o direito processual, despertando em Adolf Wach a necessidade do estudo da relação jurídica de Direito Público[5]. Wach, acompanhando essa necessidade, apresentou a Teoria do Direito Concreto de Ação, onde afirmava não ser necessária a existência de um direito subjetivo material violado ou ameaçado para o exercício do direito de ação, sendo possível o seu exercício através das ações meramente declaratórias de inexistência de uma relação jurídica[6]. Percebe-se que o reconhecimento da ação declaratória negativa consiste em um passo adiante para afastar o direito material do direito de ação.

Filiando-se à Teoria da Ação como direito concreto, Giuseppe Chiovenda formula a ação como um novo direito, também autônomo, de natureza potestativa, diferenciando-se de Adolf Wach ao afirmar que a ação seria dirigida ao adversário, e não ao Estado, produzindo o efeito jurídico da atuação da lei[7]. Contudo, como se percebe, tanto Wach como Chiovenda não trouxeram resposta para o fenômeno da ação improcedente, já que a atividade estatal exercida através da sentença de mérito não seria considerada ação neste caso, vez não proteger o direito subjetivo de quem a exerceu[8].

Paralelamente ao debate acerca da ação como direito concreto, surge o debate do direito de ação como direito abstrato, desvinculado do direito material invocado. A Teoria do Direito Abstrato de Ação afirma que esta é o resultado do exercício da função jurisdicional, seja em resolução favorável ao autor, como também em sentença que nega a sua pretensão[9].

Destaca-se, nos estudos da mencionada teoria, a doutrina de Degenkolb, o qual afirma ser a ação direito público subjetivo pertencente a todos que demandassem do Estado o cumprimento de sua atividade jurisdicional. Em que pese a nítida desvinculação do direito material, a crítica à teoria vem da existência de confusão entre o direito de ação e o direito de petição[10], além de levar ao extremo o distanciamento entre o direito material e o processo[11].

Diante dessas teorias, Liebman traz a Teoria Eclética da Ação como tentativa de superar os extremos vivenciados na confusão e no afastamento exagerados entre o direito material e processual, definindo-a como o direito a uma sentença de mérito condicionada ao preenchimento de determinados requisitos, os quais denominou condições da ação.

A vinda de Liebman ao Brasil possibilitou a evolução dos estudos do processo civil, principalmente com a reunião de jovens processualista, a qual veio a ser denominada Escola Processual de São Paulo, onde se aproximou de Alfredo Buzaid, o qual posteriormente veio a ser o encarregado de elaborar o anteprojeto do Código de Processo Civil, depositando nele os estudos compartilhados acerca da Teoria Eclética da Ação.

Entretanto, o nascimento do Código de Processo Civil de 1973, elaborado por Buzaid, se deu defasado no tocante às condições da ação. A publicação da Lei 5.869 se deu no mesmo ano em que Liebman removeu de sua teoria eclética uma das condições da ação: a impossibilidade jurídica do pedido, deixando o Direito Positivo brasileiro consubstanciado em uma teoria já modificada.

A doutrina brasileira já se pronunciara acerca das incongruências acerca das condições da ação como requisito para o julgamento do mérito, mas nenhuma atividade legislativa foi feita para corrigir os dispositivos que dispunham acerca da extinção do processo por carência da ação.

Em que pese o amplo debate doutrinário, tanto na defesa das condições da ação como na crítica pela sua índole concretista, a falta de disposição legislativa sistemática que a removesse do ordenamento jurídico exigiu que os sujeitos da relação processual vivessem em constante incongruência, sendo possível pontuar algumas:

1) Incongruência existente na exigência do interesse de agir para julgamento do mérito: as demandas instauradas com fundamento no artigo 844, II, o qual dispunha acerca da possibilidade de se pleitear, em procedimento cautelar, a exibição de documento próprio ou comum em poder de outrem, eram extintas sem julgamento do mérito com fundamento no artigo 267, IV, por falta de interesse de agir quando, na verdade, deveriam ser julgadas improcedentes. O posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial Repetitivo 1.349.453/MS) exigia para a configuração do interesse de agir a demonstração de que a medida cautelar pleiteada pretendia questionar relações jurídicas decorrentes dos documentos a serem exibidos. Como afirmar que a condição da ação neste caso está separada do mérito quando se exige a comprovação da relação jurídica de direito material? Nunca haverá demanda exibitória julgada improcedente, mas sempre extinta por falta de interesse de agir, logo, sem julgamento do mérito.

2) O artigo 486 do CPC/15 — sem correspondente no código anterior — prevê que a repropositura da demanda extinta por ausência de legitimidade e/ou interesse de agir pressupõe a correção do vício, o que não é possível — todavia — na medida em que suposta correção do vício está relacionada à alteração no plano da relação jurídica de direito material capaz de alterar a circunstância fática e, consequentemente, o enquadramento daqueles institutos no caso concreto.

3) A sentença qualificada como terminativa (processual) por falta de uma das condições da ação se vale de fundamento que diz respeito ao mérito da causa e conduz, tecnicamente, à improcedência do pedido formulado pelo autor. Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini denominam tal circunstância como “falsas carências de ação”, identificando que a sua ocorrência consiste em sentença de mérito, apesar da qualificação expressa textualmente de maneira indevida na sentença, exigindo uma correção interpretativa para que sejam observadas as determinações do comando sentencial[12].

4) A previsão de cabimento da ação rescisória (artigo 966, parágrafo 2º, I do CPC/2015) nos casos em que, embora a decisão não seja de mérito, impeça a propositura de nova demanda, tal como exposto no item 2).

Tem-se, portanto, uma construção jurisprudencial em cima do direito positivado como forma de admitir o instituto das condições da ação no ordenamento jurídico, havendo, inclusive, pronunciamento do Supremo Tribunal Federal em julgamento de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida (RE 631.240/MG) acerca da constitucionalidade das condições da ação frente ao exercício do direito de ação previsto no artigo 5º, XXXV, da Carta da República.

Todo o esforço realizado pelos tribunais seria (e poderá ser) dispensado com o advento de uma reforma processual que inclua as hipóteses de extinção do processo por carência da ação nas hipóteses em que haverá a resolução do mérito. Não haverá, assim, “falsas carências da ação” e tampouco sentença terminativa com efeitos similares ao da coisa julgada apenas para afirmar que as condições da ação existem.

As condições da ação como técnica de juízo prévio ao mérito que proporcione economia processual não mais se justifica no Direito brasileiro diante das incongruências apontadas, tendo em vista que a resolução do processo sem julgamento mérito resulta, na prática, naquilo que seria alcançável com a sua resolução, e a repropositura da demanda exige a presença de novas partes ou de nova causa de pedir, alterando, na realidade, a própria relação de direito material que fora anteriormente apreciada, sob a falsa imputação de sentença terminativa.


[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 260-261.
[2] SILVA, Ovídio A. Batista da. Curso de processo civil, volume 1: processo de conhecimento. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 79-97.
[3] Ibidem. p. 79.
[4] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 269.
[5] Ibidem. p. 81.
[6] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 271.
[7] FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima Freire. Condições da ação: enfoque sobre o interesse de agir. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 54.
[8] SILVA, Ovídio A. Batista da. Curso de processo civil, volume 1: processo de conhecimento. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 84.
[9] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 272.
[10] SILVA, Ovídio A. Batista da. Curso de processo civil, volume 1: processo de conhecimento. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 84.
[11] FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima Freire. Condições da ação: enfoque sobre o interesse de agir. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 54.
[12] WAMBIER, Luiz Rodrigues. TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: cognição jurisdicional (processo de conhecimento e tutela provisória), volume 2. 16ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 421.

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    é advogado, especialista em Processo Civil pelo IDP (Instituto Brasiliense de Direto Público), diretor-adjunto de Publicações na ABPC (Associação Brasiliense de Processo Civil), membro do Tribunal de Ética da OAB-DF.

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