Opinião

Obra do filósofo Ronald Dworkin é gigante, mas possui falhas

Autor

  • André Portugal

    é advogado sócio do Klein Portugal mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra e professor de Teoria da Decisão do FAE Centro Universitário.

22 de abril de 2018, 6h16

Uma característica infelizmente marcante da academia jurídica brasileira é a deferência, não raras vezes irrefletida, a teorias e autores estrangeiros, especialmente norte-americanos e alemães.

Outra, que poderia parecer paradoxalmente contraditória à primeira, é que são poucos os que efetivamente leem, a não ser por intermédio de autores brasileiros, as obras ou autores que idolatram, e ainda mais raros são os que se dedicam a compreendê-los, o que exige atenção, paciência e honestidade intelectual.

Ronald Dworkin talvez seja o maior exemplo disso: cuida-se do filósofo mais aclamado pelos estudiosos brasileiros, ao mesmo tempo em que as partes mais relevantes de sua obra costumam ser completamente ignoradas, de modo que várias são as teses e monografias sobre a sua teoria escritas com base em premissas falsas, que chegam, por óbvio, a conclusões precipitadas.

Várias são as críticas que considero relevantes, sob o ponto de vista da Teoria do Direito e do Direito Constitucional, à obra de Dworkin. Por razões de espaço, mencionarei apenas algumas delas — todas aparecem, com mais detalhes, em Decisão Judicial e Racionalidade: Crítica a Ronald Dworkin[1].

Antes disso, porém, considero relevante enunciar, muito resumidamente, algumas das premissas de que parte o autor, para chegar à sua conhecida tese da “única resposta correta”:

a) O conceito de Direito guardaria estrita vinculação com princípios morais, embora, em tese, não se confunda com a moral. O Direito seria, na realidade, um ramo da moral, de modo que os princípios jurídicos teriam a sua origem, precisamente, na moral. Metaforicamente, pode-se imaginar uma árvore, com raízes e diversos galhos. As raízes seriam os princípios morais, ao passo que um dos vários galhos seria o Direito;

b) Esses princípios que sustentariam o sistema jurídico seriam dois: o direito a ser tratado com igual consideração e respeito e a responsabilidade pessoal de cada um por sua própria vida;

c) A aplicação prática, bem como a fundamentação da moral, não incluiria senão os seus próprios princípios: cada um deles deveria ter o seu papel elaborado em um projeto geral e conjunto, que deveria considerar todos os outros princípios, no que Dworkin chamou de unidade e integridade da moral, de uma moral compartilhada por uma dada comunidade política. Como esses princípios fundamentariam o Direito, também no Direito essa unidade deveria ser buscada. Haveria, em todo caso, verdades morais, assim como verdades jurídicas;

d) O Direito, portanto, tratar-se-ia de um sistema íntegro, coerente e completo de regras e princípios — ou, ao menos, ele deveria ser visto e interpretado como tal. A base desse sistema seriam, naturalmente, os princípios morais, que dariam fundamento para todo o resto, inclusive para a interpretação judicial. Daí é que aos juízes caberia decidir “por princípio”;

e) A melhor interpretação seria aquela que envolvesse a correlação entre todo e partes, ou, em outros termos, que demonstrasse como os casos novos se enquadrariam naquela totalidade íntegra e coerente de princípios e regras jurídicas. Naquela totalidade, residiria a “única resposta correta”, cuja busca caberia a Hércules, o juiz ideal de Dworkin, habitante de um mundo próximo ao da “posição original”, de John Rawls;

f) Embora Hércules se trate de um ideal regulador — o juiz com o conhecimento, capacidade, tempo e paciência ilimitados, além de uma dose invejável de isenção —, Dworkin deixa claro que, para ele, haveria, sim, uma única resposta ou interpretação correta para todo caso jurídico. Bastaria, para encontrá-la, que fôssemos dotados dessas capacidades. Ou, em outras palavras: se todos dispuséssemos dessas qualidades, todos chegaríamos a uma mesma resposta para todo e qualquer caso. Não haveria espaço para o dissenso;

g) Na medida em que se deveria partir da ideia de um sistema íntegro e coerente de princípios, as colisões entre estes seriam apenas aparentes. Caberia ao intérprete integrá-los naquela unidade, por assim dizer, holística;

h) Ao concentrar o seu ideal regulador na figura de um juiz, Dworkin aposta no Poder Judiciário como o intérprete mais autêntico da Constituição.

Eis, de modo fatalmente resumido, parte do caminho de Dworkin para chegar à tese da “única resposta correta”.

Toda a obra de Dworkin faz jus àquilo que ele apontou como sua principal preocupação: ela é verdadeiramente coerente entre si. Não há como reivindicar a existência de uma única resposta correta sem considerar cada uma dessas partes que, juntas, compõem o seu direito como integridade.

É possível concordar com todas elas? Penso que não.

A ideia mesma de um sistema íntegro, coerente e completo de princípios é, por si só, problemática, por desconsiderar que qualquer sistematização, inclusive aquela que envolva princípios morais, não deixa de ter bases na linguagem e, logo, na lógica. O sistema jurídico é, ao mesmo tempo, um sistema de linguagem e um sistema lógico. E, como se sabe desde Bertrand Russell (An Inquiry Into Meaning and Truth, 1973), nenhum sistema lógico pode ser completo, bastante por si próprio: todos eles, em algum ponto, serão vítima de paradoxos, isto é, de falhas da razão, de situações nas quais o verdadeiro e o falso se identificam e se confundem, de situações para as quais não há qualquer resposta.

Relembremos o famoso exemplo do paradoxo do mentiroso. Alguém afirma: “Esta frase é falsa”. A afirmação é, por si só, paradoxal: se o falante está falando a verdade, tem de estar mentindo; ao mesmo tempo, se ele estiver mentindo, tem de estar falando a verdade.

Essas inconsistências da linguagem, dizia Russell, somente são solucionáveis com o recurso à metalinguagem, isto é, a níveis diferentes de linguagem. O nível 1 passaria a ser o objeto do discurso do nível 2, que seria o objeto do discurso da linguagem do nível 3, e assim sucessivamente. Ou seja, a linguagem de nível 3 fala sobre a linguagem de nível 2, que fala sobre a linguagem de nível 1. O problema é que o uso inevitável da metalinguagem cobra um preço muito caro: o sistema perde a sua completude.

No caso do paradoxo do mentiroso, por exemplo, o termo “frase” adquire dois significados diferentes: um como objeto e outro como metalinguagem. Ou, para deixar as coisas mais claras: “esta frase é falsa” trata-se, ela mesma, de uma frase. Uma frase que se refere, exatamente, a “esta frase”. No primeiro caso, cuida-se de metalinguagem (nível 2), enquanto, no segundo, tem-se linguagem objeto (nível 1).

Em se tratando dos sistemas jurídicos, essas contradições são comuns: por vezes, será inevitável que um dado encontre, no sistema, duas ou mais respostas contraditórias entre si, cabendo ao intérprete solucioná-la com o recurso a metarregras. O ponto é que é logicamente impossível que o sistema preveja uma única resposta para qualquer caso, ainda que essa resposta exija uma interpretação com base nos princípios que o sustentam. Afinal, mesmo a completa harmonização entre esses princípios é um ideal logicamente inatingível, sobretudo quando se lida com uma linguagem inevitavelmente ambígua e aberta.

De modo que a ideia de que os conflitos entre princípios são meramente aparentes representa, a meu ver, um equívoco da teoria de Dworkin. As colisões existirão, e caberá aos intérpretes solucioná-las da maneira mais racional possível.

Em segundo lugar, a vinculação conceitual do Direito à moral pode vir a significar uma perda de autonomia do sistema jurídico, que pode prejudicá-lo. O Direito, embora certamente deva buscar uma legitimação moral, possui uma racionalidade e uma função próprias (ou, nos termos de Luhmann, um código operacional próprio), que difere daquelas adotadas pela moral. Especialmente em uma sociedade complexa, um não pode se confundir com o outro.

Por terceiro, também há problemas sérios com o “juiz Hércules” idealizado por Dworkin. Como os chamados casos difíceis não raro envolvem relevantes controvérsias axiológicas, imaginar que a sua solução dependeria exclusivamente de termos todos tempo, paciência, conhecimento e isenção parece, no mínimo, presunçoso demais — veja-se, aliás, que, coincidentemente, o Hércules de Dworkin chegaria justamente aos dois princípios de justiça que este entende como a base de todo o sistema jurídico.

Pensando nisso foi que Aulis Aarnio perguntou-se: e se houvesse dois juízes Hércules, ambos igualmente racionais e com todos esses atributos preconizados por Ronald Dworkin[2]? Chegariam eles a uma mesma resposta? Ora, se admitirmos, por exemplo, a possibilidade de que duas pessoas, uma liberal e outra conservadora, sejam ambas igualmente racionais, isentas e estudiosas, é fácil perceber que os dois “juízes” Hércules, o liberal e o conservador, chegariam a respostas contraditórias para um mesmo caso jurídico.

Eu, pessoalmente, admito essa possibilidade, razão pela qual não posso concordar com a premissa endossada por Dworkin.

E esse ideal revela ainda mais: ao apostar as suas fichas em Hércules, Dworkin aposta no juiz de cada caso como o melhor intérprete dos princípios que fundamentam o Direito. Habermas, nesse aspecto, rotula o ideal dworkiniano como solipsista[3]. Concordemos ou não com a afirmação, parece-me, no mínimo, mais legítimo e democraticamente saudável que as principais controvérsias morais — ou as decisões sobre a recepção dessas controvérsias pelo Direito — sejam decididas com ampla participação daqueles que por elas serão afetados, tal como preveem as chamadas condições ideais de fala, de Habermas.

Daí é que não são poucas as críticas ao viés pouco democrático da teoria de Ronald Dworkin. Cass Sunstein, por exemplo, chega a falar que Dworkin parte de uma visão perfeccionista e excessivamente otimista do Poder Judiciário[4], enquanto Carlos Bernal Pulido[5] e Ran Hirschl[6] alertam que a tese da “única resposta correta” e a chamada “decisão por princípio” têm e tiveram como consequência natural a fragilização do Parlamento por meio daquilo que Hirschl chamou de “juristocracia”. Os argumentos são fortes.

Todas essas controvérsias teóricas acabam por envolver questões práticas bastante relevantes. Por exemplo, as conclusões sobre a possibilidade ou impossibilidade de uma única resposta correta para os assim chamados casos difíceis terão consequências diretas no que se deve entender por “segurança jurídica”. Ademais, o reconhecimento ou a negação de autênticas colisões entre princípios — e, logo, entre direitos fundamentais — definirá o modo como tais casos devem ser solucionados, bem como a própria abordagem a ser adotada pela teoria dos direitos fundamentais. Se admitirmos as colisões, devemos encontrar algum meio de solucioná-las, e a mais conhecida delas é, naturalmente, a chamada ponderação. Se as negarmos, por outro lado, não haveria nada a ser ponderado.

Outras críticas poderiam ser mencionadas. Por razões de espaço, optei por citar apenas algumas delas, dando maior atenção àquelas que considerei precisarem de maior esclarecimento.

Dworkin integra o rol dos maiores filósofos do Direito de toda a história. A despeito disso, como costuma acontecer com as grandes obras científicas da humanidade, também a sua deve ser e é passível de críticas e refutações.

E, quando elas são necessárias, cabe a nós fazê-las.


[1] PORTUGAL, André. Decisão Judicial e Racionalidade: Crítica a Ronald Dworkin. Porto Alegre: SAFe, 2017.
[2] AARNIO, Aulis et. al. Bases Teóricas de la Interpretación Jurídica. Madri: Fundación Coloquio Jurídico Europeo, 2010, p. 15-6.
[3] HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez. Madrid: Trotta, p. 294.
[4] SUNSTEIN, Case. A Constitution of Many Minds: Why the founding document doesn’t mean what it meant before. Princeton: Princeton University Press, 2011, p. 22-3 e 127.
[5] PULIDO, Carlos Bernal. O Direito dos Direitos: Estudos sobre a aplicação dos direitos fundamentais. Trad. Thomas Bustamante. São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 42-3.
[6] HIRSCHL, Ran. Towards Juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge: Harvard University Press, 2004, p. 11-2.

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