Opinião

Resposta sobre possibilidade de autoaborto não deve vir do Supremo

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21 de abril de 2018, 10h10

A ministra Rosa Weber convocou audiência pública para debater a questão do aborto nos autos da ADPF 442, em que o Psol pede que a corte suprema exclua da incidência dos artigos 124 e 126 do Código Penal o autoaborto praticado até a 12ª semana de gestação, como ocorre em diversos países; requer o partido, pois, que o STF “descriminalize” o aborto praticado nas primeiras semanas de gravidez.

A questão do aborto pode ser emblemática para a discussão do ativismo judicial e sobre quem deve dar a “última palavra” sobre determinados temas em nosso Estado Democrático de Direito.

É sabido que, por duas vezes, em ações de controle abstrato, o STF esteve às voltas com a questão do aborto. Inicialmente, a corte autorizou as pesquisas com células-tronco embrionárias (ADI 3.510) e, em seguida, permitiu o aborto do feto anencéfalo (ADPF 54). Os argumentos utilizados pelos ministros nessas decisões não representaram a descriminalização do autoaborto em geral, pois baseados principalmente na inviabilidade da vida em ambos os casos, tanto do feto anencéfalo quanto dos embriões excedentes de procedimentos de fertilização.

Embora particularmente defenda a possibilidade do autoaborto nas condições apontadas pelo Psol, penso que a resposta para o problema não deve vir do STF.

Temos visto com frequência, inclusive nos votos dos ministros em polêmicas recentes, uma defesa sempre enfática das possibilidades da interpretação constitucional. Evidentemente que não nego o alcance da interpretação, mas é preciso buscar seus limites, aquele ponto em que a interpretação que se quer apenas concretizadora dos princípios constitucionais deixa de ser interpretação para resultar propriamente na criação de uma norma jurídica nova. Jeremy Waldron chama a atenção para esses casos envolvendo direitos fundamentais em que, segundo ele, o desacordo não afetaria apenas a sua aplicação marginal, mas o próprio centro ou núcleo da compreensão do que seria determinado direito, não sendo mais uma questão de interpretação[1].

Não nego, repito, que a atividade judicial, e a do juiz constitucional em particular, seja criativa e inclua inevitavelmente elementos morais. Não desmereço também a importância dos princípios jurídicos e constitucionais, com sua estrutura distinta das regras, muitas vezes com densidade semântica e valorativa capaz de impor decisões concretas, como nos casos já citados do feto anencéfalo e das células embrionárias. Mas há que se reconhecer em determinadas questões, à falta de maior especificação no texto constitucional, que tão somente os princípios, com sua reconhecida abertura, não constituem parâmetros normativos suficientes para a decisão.

No caso do aborto, existem concepções cognitivas e valorativas opostas a seu respeito, que não podem ser dirimidas com base nas previsões constitucionais gerais do direito à vida, da dignidade da pessoa humana ou do direito à intimidade. A tese concepcionista advoga que o início da vida começa com a fecundação, enquanto a tese sencientista defende que a vida passível de proteção jurídica se inicia com a maturação do sistema nervoso do embrião, coadunando-se, portanto, esta última teoria, com a defesa do aborto nas primeiras semanas. Tais teses, como dito, esbarram em insuficiências cognitivas (quando começa a vida humana?), que podem um dia ser superadas, mas exprimem sobretudo conflitos de valores e visões de mundo que não podem ser resolvidos de maneira racional.

Robert Alexy admite que em certas situações a colisão de princípios não pode ser resolvida através da ponderação e fala aí numa discricionariedade em favor do legislador. Seriam os casos de discricionariedade estrutural e epistêmica ou cognitiva; são aqueles em que não se chega a uma conclusão racional sobre qual valor ou princípio deve preponderar num determinado conflito e, portanto, deve prevalecer o que o autor chama de “princípio formal da competência decisória do legislador democraticamente legitimado”[2].

A legitimação do juiz constitucional para questões tão difíceis adviria, segundo alguns autores, da existência do que Dworkin chamou a “única resposta correta” existente nos chamados hard cases. Mas a tese é rejeitada por boa parte dos constitucionalistas modernos, como Alexy[3] e Zagrebelsky[4]. Um dos argumentos para recusá-la, que utilizei na minha tese de doutorado, seria o relativismo ou não cognitivismo moral, mesmo numa versão moderada. Ainda que se admita existirem verdades no campo moral, fornecidas por uma moral natural ou fruto do desenvolvimento histórico e social, numa determinada altura os valores são preferências ou atitudes, de maneira que não fornecem uma única resposta correta para certas questões morais[5].

No lugar de achar que a Constituição tem sempre resposta para as grandes questões sociais e morais, como o aborto e a eutanásia, é possível uma decisão do STF baseada num juízo de insuficiência normativa e epistemológica. A corte declara que não lhe compete ponderar entre os valores em choque, deixando a decisão para o legislador, num exercício de autocontenção ou reserva epistêmica. É difícil encontrar o ponto em que tal postura autocontida deve prevalecer, sendo talvez útil a consideração de Cass Sunstein de que “a incerteza moral, na qual a sociedade se encontra dividida” recomenda ao juiz constitucional uma postura minimalista[6].

Penso que uma decisão com esse feitio poderia inspirar mais confiança na nossa jurisdição constitucional por parte da sociedade e dos demais poderes e mesmo restaurar entre nós a importância do Poder Legislativo e da Política, com P maiúsculo. Sem falar que não correríamos o risco de uma decisão capaz de abortar definitivamente o debate. Com efeito, eventual negativa do Supremo, considerando que o aborto é inconstitucional, poderia se revestir da natureza de cláusula pétrea, tornando-se imutável.


[1] WALDRON, Jeremy. The Core of the Case Against Judicial Review. The Yale Law Journal, 115, pp. 1346-1406, 2006.
[2] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª edição. São Paulo: Malheiros, 2011, pp. 621-622.
[3] Ibid., p. 543.
[4] ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. 10ª edição. Madri: Editorial Trotta, 2011, p. 125.
[5] No prelo, com o título Neoconstitucionalismo e verdade: limites democráticos da jurisdição constitucional. Editora Lumen Juris.
[6] Apud MENDES, Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 120.

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  • Brave

    é desembargador do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, professor de Direito Constitucional do IDP-SP, doutor em Direito do Estado pela USP e mestre em Direito Público pela Universidade de Toulouse.

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