Ambiente Jurídico

Litígios climáticos, simpósio em Harvard e a jurisprudência brasileira

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21 de abril de 2018, 10h32

Spacca
É no trem, entre Boston e Nova Iorque, que escrevo esta coluna. Acabo de participar do Harvard Law Brazilian Association Legal Symposium, que trouxe como tema "Direito no Século 21". No evento organizado pela Harvard Law School, Harvard Law Brazilian Association e Associação dos Juízes Federais dos Estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, foram debatidos temas dos mais relevantes relacionados ao Direito, e nos quais nossa doutrina e jurisprudência muito ainda precisam evoluir, como neurociência, inteligência artificial, robotização, litigância climática, sustentabilidade, desenvolvimento, análise do custo-benefício e economia. E lá estavam grandes e conhecidos nomes do Direito brasileiro da academia e do Poder Judiciário, dividindo painéis com professores da Harvard Law School e de outras instituições que fazem parte da Ivy League.

A nova geração de juristas do país nos traz grande esperança. Apenas para citar dois nomes, os juízes federais Erik Navarro e Isabela Ferrari, o primeiro trazendo para o processo civil ideias nunca antes trabalhadas, e a segunda inovando na esfera do Direito Administrativo e propondo novas técnicas na prestação jurisdicional, ambos visiting scholars daquela exemplar instituição. Conheci ainda vários outros brilhantes pesquisadores brasileiros ainda mais jovens, separados de minha geração por mais de 20 anos. Esses moços e moças me fizeram sentir esperança no futuro do país e na evolução de nossa doutrina e na melhoria de nossa prestação jurisdicional. Com eles está o nosso futuro e possíveis respostas que o Estado (nas suas três funções), a iniciativa privada e a sociedade civil não conseguem dar para concretizar o direito fundamental ao desenvolvimento sustentável do Brasil.

Lá cheguei, confesso, com poucas esperanças para um próspero futuro próximo do nosso país. Aliás, sentimento que está impregnado em boa parte do povo brasileiro, pelo momento de divisão nacional e de crise política e social que estamos vivenciando. Mas, ao observar o entusiasmo dos jovens pesquisadores brasileiros abertos para ideias dos grandes centros de pesquisa mundial, saí bem mais otimista, ou menos pessimista. Fortalece esse sentimento a conversa que tive com o professor Mangabeira Unger, de outra geração, que disse acreditar que, após crises como esta, o país pode entrar certamente em uma nova onda de desenvolvimento como já ocorrido em outros momentos de nossa história.

Meu tema da palestra foi litigância climática, e o debate realizado com um amigo que muito estimo, professor Michael Gerrard, da Columbia Law School, diretor de um dos mais importantes centros mundiais de pesquisa sobre o Direito das Mudanças Climáticas, o Sabin Center for Climate Change Law. Aliás, também é editor e autor, ao lado da professora Jody Freeman, da Harvard Law School, da mais relevante e emblemática obra sobre o Direito das Mudanças Climáticas, em nível mundial, intitulada Global Climate Change and U.S. Law.

Fiz uma sugestão, semanas antes do evento, que foi aceita pelo professor Michael. Ele, por ser autor do mais completo relatório do globo, encomendado pela ONU, sobre litígios climáticos (The Status of Climate Change Litigation: A Global Review), falaria sobre litígios climáticos em nível mundial, e eu, sobre a realidade dos litígios climáticos no Brasil. O professor Michael trouxe em sua exposição um mapeamento detalhado dos mais importantes casos de litígios climáticos no mundo, que levam em consideração doutrina e jurisprudência aptas a promover o corte das emissões de gases de efeito estufa e, também, a implementar medidas precautórias para evitar os nefastos efeitos e consequências do aquecimento global, assim como promover medidas de adaptação e de resiliência.

Apresentei casos decididos pelo Superior Tribunal de Justiça que levaram, nas suas fundamentações, em consideração as causas antrópicas e os efeitos deletérios das mudanças do clima.

Reconhecidamente, é difícil para os operadores do Direito brasileiro, ainda que encontrem na legislação instrumentos processuais para a tutela do clima, ajuizarem ações consistentes que levem à apreciação do Poder Judiciário casos que envolvam as causas e as consequências das mudanças do clima. Falta, pois, para além da concretização do princípio da educação ambiental, uma doutrina sólida, capaz de embasar ações judiciais do estilo.

Não é demais referir o inegável fato que, ainda que esses processos cheguem conclusos para a prolação da sentença, se observará grande dificuldade para uma boa decisão, notadamente em um hard case, pois o juiz certamente terá que recorrer à doutrina e à jurisprudência estrangeira, especialmente norte-americana. O que nem sempre é fácil. Aliás, com essa preocupação, publiquei pela Columbia Law School os artigos Climate Change and Sustainable Development in Brazilian Law (disponível em: http://columbiaclimatelaw.com/files/2016/06/Wedy-2016-03-Climate-Change-and-Sustainable-Development-in-Brazilian-Law.pdf. New York: Columbia Law School, 2016. Acesso em: 20/4/2018), Climate Legislation and Litigation in Brazil (New York: Columbia Law School, 2017. Disponível em: http://columbiaclimatelaw.com/files/2017/10/Wedy-2017-10-Climate-Legislation-and-Litigation-in-Brazil.pdf. Acesso em: 20/4/2018) e, sobre decisões judiciais e desenvolvimento sustentável, Sustainable Development and the Brazilian Judge (New York: Columbia Law School, 2015. Disponível em: http://columbiaclimatelaw.com/files/2016/06/Wedy-2015-11-Sustainable-Development-and-the-Brazilian-Judge.pdf. Acesso em: 20/4/2018).

No Brasil, com efeito, é preciso avançar bastante em termos de Climate Change Law. Está muito pouco desenvolvida essa matéria, e o Direito das Mudanças Climáticas, de grande importância, é tratado como um “pequeno departamento” do Direito Ambiental brasileiro. Nos Estados Unidos, ao contrário, observam-se relevantes livros e artigos, com importância mundial, sobre Climate Change Law. Apenas para citar alguns: GERRARD, Michael; FREEMAN, Jody (Ed.). Global Climate Change and U.S law. New York: American Bar Association, 2014; GERRARD, Michael. Threatened Island Nations: legal implications of rising seas and a changing climate. Cambridge: Cambridge University Press, 2013; GERRARD, Michael. The Law of Clean Energy. Efficiency and Renewables. New York: American Bar Association, 2015; FREEMAN, Jody, The Uncomfortable Convergence of Energy and Environmental Law, 41 Harv. Envtl. L. Rev. 339 (2017); POSNER, Erik A; WEISBACH, David. Climate Change Justice. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2010; FARBER, Daniel: A U.S. Perspective, 2 Yonsei L. J. 1 (2011), Available at: http://scholarship.law.berkeley.edu/facpubs/2275. Accessed on: May 2nd, 2017; WOLD, Chris; HUNTER, David; POWERS, Melissa. Climate Change and the Law. New York: LexisNexis, 2013.

Todavia, como referido, surgem os primeiros litígios climáticos, sobre os quais vanguardistas decisões do Superior Tribunal de Justiça passam a formar nossa inicial jurisprudência. No AgRg em EDcl no Recurso Especial 094.873/SP, interpretando o artigo 27 do antigo Código Florestal, o STJ decidiu que é ilegal a utilização da técnica da queimada da palha na colheita da cana-de-açúcar por causar impactos negativos ao meio ambiente e emissão de CO2, contribuindo para o aquecimento global, além de causar danos respiratórios as pessoas, especialmente trabalhadores da lavoura.

Na decisão constou que a queima da palha da cana-de-açúcar causa graves danos ambientais e que, considerando o princípio do desenvolvimento sustentável, há instrumentos e tecnologias modernas que podem substituir a prática da queimada sem inviabilizar a atividade econômica. A corte esclareceu que a exceção à proibição das queimadas, prevista no parágrafo único do artigo 27 da Lei 4.771/65 (antigo Código Florestal), deve ser interpretada restritivamente quando o objeto estiver focado em atividades agroindustriais ou agrícolas, isso porque o interesse econômico não pode prevalecer sobre a proteção ambiental quando há formas menos lesivas de intervenção na natureza. De acordo com o ministro Humberto Martins, prolator do voto condutor:

“A interpretação das normas que tutelam o meio ambiente não comporta apenas, e tão-somente, a utilização de instrumentos estritamente jurídicos, pois é fato que as ciências relacionadas ao estudo do solo, ao estudo da vida, ao estudo da química, ao estudo da física devem auxiliar o jurista na sua atividade cotidiana de entender o fato lesivo ao Direito Ambiental. O canavial absorve e incorpora CO2 em grande quantidade, ao longo do seu período de crescimento que dura de 12 a 18 meses em média, e a queimada libera tudo quase que instantaneamente, ou seja, no período que dura uma queimada, ao redor de 30 ou 60 minutos. Portanto, a queimada libera CO2 recolhido da atmosfera durante 12 a 18 meses em pouco mais de 30 ou 60 minutos. Além disso, junto com o CO2, outros gases são formados e lançados na atmosfera”.

Consta no acórdão que “estudo realizado pela Universidade Estadual Paulista – Unesp, conclui que os HPA's (Hidrocarbonetos Policíclicos Aromáticos) liberados pelas queimadas causam câncer afetando o organismo dos trabalhadores dos canaviais, que ficam expostos à fumaça”.

O antigo Código Florestal Brasileiro, de fato, previa:

"Art. 27. É proibido o uso de fogo nas florestas e demais formas de vegetação. Parágrafo único. Se peculiaridades locais ou regionais justificarem o emprego do fogo em práticas agropastoris ou florestais, a permissão será estabelecida em ato do Poder Público, circunscrevendo as áreas e estabelecendo normas de precaução".

Portanto, de acordo com a decisão, a atividade deve ser desenvolvida com os instrumentos e as tecnologias industriais modernas, de redução de impacto ambiental e sem a utilização das queimadas nos canaviais para a colheita, pois aquelas contribuem de modo significativo para as mudanças climáticas.

Em outro leading case, o Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Recurso Especial 1.000.731/RO, decidiu, nos termos do voto condutor do ministro Antonio Herman Benjamin, citando expressamente o fenômeno das mudanças do clima causado por fatores antrópicos como fundamento, no sentido do cabimento de multa em virtude de infração administrativa decorrente de queimadas ilegais, que:

“A lei prevê a aplicação de multa pelo não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental. É certo que a expressão "não cumprimento" inclui atos de degradação não só por omissão, como também por ação. No caso, a conduta do recorrente por ter realizado queimada de uma área correspondente a 600 hectares sem autorização do órgão ambiental viola a lei. As queimadas são incompatíveis com os objetivos de proteção do meio ambiente estabelecidos na Constituição Federal e nas leis ambientais. Em época de mudanças climáticas, qualquer exceção a essa proibição geral, além de prevista expressamente em lei federal, deve ser interpretada restritivamente pelo administrador e juiz”.

Nos autos do Recurso Especial 650.728/SC, em caso de aterro e dreno ilegal de manguezal, o Superior Tribunal de Justiça, mencionando a mudança do clima como um dos fundamentos fáticos centrais da decisão, novamente com o voto condutor do ministro Antônio Herman Benjamin, deixou consignado que:

“Devido ao resultado da evolução do conhecimento científico e de mudanças na postura ética do ser humano frente à Natureza, atualmente se reconhecem nos manguezais várias funções: a) ecológicas, como berçário do mar, peça central nos processos reprodutivos de um grande número de espécies, filtro biológico que retém nutrientes, sedimentos e até poluentes, zona de amortecimento contra tempestades e barreira contra a erosão da costa; b) econômicas (fonte de alimento e de atividades tradicionais, como a pesca artesanal); e c) sociais (ambiente vital para populações tradicionais, cuja sobrevivência depende da exploração dos crustáceos, moluscos e peixes lá existentes).A legislação brasileira atual reflete a transformação científica, ética, política e jurídica que reposicionou os manguezais, levando-os da condição de risco sanitário e de condição indesejável ao patamar de ecossistema criticamente ameaçado. Objetivando resguardar suas funções ecológicas, econômicas e sociais, o legislador atribuiu-lhes natureza jurídica de Área de Preservação Permanente . Nesses termos, é dever de todos, proprietários ou não, zelar pela preservação dos manguezais, necessidade cada vez maior, sobretudo em época de mudanças climáticas e aumento do nível do mar. Destruí-los para uso econômico direto, sob o permanente incentivo do lucro fácil e de benefícios de curto-prazo, drená-los ou aterrá-los para especulação imobiliária ou exploração do solo, ou transformá-los em depósito de lixo caracterizam ofensa grave ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e ao bem-estar da coletividade, comportamento que deve ser pronta e energicamente coibido e sancionado pela Administração e pelo Judiciário”.

Finalizando o voto, o ministro afirma com precisão que “é inaceitável, após a Constituição Federal de 1988, que valorizou a preservação dos processos ecológicos essenciais (art. 225, § 1°, inciso I), e um desrespeito total ao Código Florestal de 1965, pretender-se dar ao manguezal outra destinação que não seja aquela condizente com a intocabilidade que a lei lhe atribui, como Área de Preservação Permanente”.

As decisões do Superior Tribunal de Justiça, neste cenário, estão de acordo com o estabelecido no Acordo de Paris, com a Constituição Brasileira e com a Política Nacional da Mudança do Clima. Em suma, é importante que o Poder Judiciário brasileiro leve a sério em suas decisões as graves ameaças impostas pelas mudanças climáticas como secas, enchentes, aumento das tempestades, do nível dos oceanos e os grandes prejuízos ambientais, sociais e econômicos decorrentes desses eventos não raras vezes catastróficos.

Fiz, por fim, essa abordagem no Harvard Law Brazilian Association Legal Symposium com o único intuito de provocar e despertar em nós mesmos, professores e operadores do Direito Ambiental brasileiro, a curiosidade e a motivação para o necessário avanço jurídico-científico — com solidariedade, troca de informações e integração fraterna de todos — neste tema de vital importância para as presentes e futuras gerações que possuem o direito fundamental ao desenvolvimento sustentável nesta era das mudanças climáticas.

Autores

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    é juiz federal, doutor e mestre em Direito. Visiting Scholar pelo Sabin Center for Climate Change Law da Columbia Law School – EUA e professor coordenador de Direito Ambiental na Escola Superior da Magistratura - Esmafe/RS.

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