Opinião

A Lei 13.546/17 e dolo eventual como exceção nos crimes de trânsito

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19 de abril de 2018, 12h28

A Lei Federal 13.546/17, que modificou o Código de Trânsito Brasileiro, entra em vigor nesta quinta-feira (19/4), após vacatio legis de 120 dias assinalada em seu artigo 6º, consoante parágrafo 1º do artigo 8º da Lei Complementar 95/98, que rege a matéria[1].

A novel legislação representa mais uma reforma nas engrenagens do CTB (Lei 9.503/97), com a pretensão de calibrar as disposições afetas aos crimes praticados na direção de veículos automotores para que funcionem como freios ao sanguinário sistema viário nacional[2].

Trata-se da sexta alteração no CTB relacionada às suas normas penais, na seguinte ordem cronológica, com os respectivos destaques: 1ª) Lei 11.275/06: acrescentou causa de aumento no homicídio culposo pela embriaguez; 2ª) Lei 11.705/08: primeira “Lei Seca”, revogou a aludida majorante pela embriaguez, e ainda modificou e atropelou o crime de embriaguez ao volante, ao exigir teor alcoólico taxativo no tipo penal; 3ª) Lei 12.760/12: segunda “Lei Seca”, retificou a redação do delito de embriaguez ao volante e viabilizou outros meios probatórios; 4ª) Lei 12.971/14: inseriu “pseudoqualificadora” pela embriaguez no homicídio culposo de trânsito no parágrafo 2º do artigo 302, com idêntica quantidade de pena da modalidade simples; 5ª) Lei 13.281/16: revogou a citada e desastrosa “pseudoqualificadora”; e, 6ª) finalmente, a recente Lei 13.546/17, ora comentada.

Em apertada síntese, foram quatro as modificações promovidas pela Lei 13.546/17 no CTB. A primeira cuida dos critérios para a dosimetria da pena, via adição do parágrafo 4º no artigo 291, pelo qual prepondera a avaliação da culpabilidade do agente e das circunstâncias e consequências do delito de trânsito na fixação da reprimenda, seguindo as diretrizes do artigo 59 do Código Penal.

A segunda e a terceira inovações tratam dos delitos de homicídio e lesão corporal culposos na condução de veículo automotor.

Para o homicídio culposo, cria-se uma qualificadora ao motorista que esteja sob influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência, pelo acréscimo do parágrafo 3º no artigo 302 do CTB, cominando patamar mais severo de pena de 5 a 8 anos de reclusão, superior ao do tipo simples do caput do dispositivo, de 2 a 4 anos de detenção.

Já na lesão corporal culposa também foi inserida qualificadora no parágrafo 2º do artigo 303 do CTB, sancionada com reclusão de 2 a 5 anos quando o agente estiver embriagado por álcool ou outra substância psicoativa e resultar lesão corporal grave ou gravíssima[3]. De igual modo, confere tratamento mais rigoroso que a infração de menor potencial ofensivo da figura simples do caput do artigo 303 do CTB, apenada com detenção de 6 meses a 2 anos.

A quarta mudança operada pela Lei 13.546/17 tem por objeto o delito popularmente conhecido como “racha”, do artigo 308 do CTB, mediante inserção da conduta de participar de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor ao tipo penal, além das práticas já previstas de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada, e manteve a exigência de gerar risco à incolumidade pública ou privada (crime de perigo concreto).

Como se nota, a principal novidade ocorre nas infrações penais que acarretam morte ou ferimentos por motoristas sob estado de embriaguez, antiga celeuma que acompanha o diploma de trânsito desde a sua entrada em vigor.

A Lei 13.546/17 deve arrefecer discussões e interpretações distorcidas acerca da banalização da aplicação do instituto do dolo eventual em detrimento da culpa consciente para os delitos de trânsito cometidos por motoristas embriagados com vítimas fatais ou feridas. Espera-se que enfim seja compreendido o equívoco na cognição do binômio morte e embriaguez como uma operação simplista e atécnica a ensejar a imputação autômata do dolo eventual.

Ao inserir a imprudência no ato de dirigir bêbado como circunstância qualificadora do homicídio culposo do artigo 302 do CTB, atrelada a reprimenda penal mais elevada, a nova redação legal consolida a culpa consciente como regra, pela qual o sujeito prevê a possibilidade do resultado danoso, porém crê que pode evitá-lo com sua habilidade[4]. Torna excepcional, mas não rechaça em definitivo (e nem poderia) a configuração do dolo eventual, que reclama representação e aceitação do resultado pelo agente e, sobretudo, indiferença deste às eventuais consequências de seu comportamento, com total desapreço à vida e à integridade física de terceiros, bens jurídicos tutelados pela norma[5].

A derrapagem legislativa, para não passar incólume, ocorre na qualificadora da lesão corporal culposa do artigo 303 do CTB. Isso porque as condições cumulativas (embriaguez e lesão grave ou gravíssima) rompem com paradigma do Direito Penal pátrio, que até então não distinguia o enquadramento jurídico em razão da gravidade dos ferimentos a título culposo, aspecto considerado somente na dosimetria da pena em sede de sentença condenatória[6].

O imbróglio deve se concentrar na solução jurídica para os acidentes com motoristas bêbados que ocasionem lesões leves, cenário que consubstancia grande parcela dos casos concretos. A nova lei restringe o debate, mas o mantém no tocante à possibilidade de concurso entre os delitos de lesão culposa leve e embriaguez ao volante dos artigos 303, caput e 306 do CTB. Diante do princípio da subsidiariedade, o delito de perigo (embriaguez ao volante) deveria ser absorvido pelos crimes de dano (lesão ou homicídio), porquanto a conduta típica do primeiro integra as figuras penais e existe para impedir a concretização dos segundos, evitando ainda o bis in idem quanto ao estado de embriaguez do agente.

Destarte, para o homicídio e para as lesões graves e gravíssimas culposos, a resposta criminal passa a ser mais técnica e adequada com as correlatas qualificadoras introduzidas. Já para a lesão leve, por ausência de previsão, a tendência será prevalecer a aplicação do concurso formal entre os delitos, na medida em que a absorção da embriaguez ao volante pela lesão culposa leve do caput do artigo 303 do CTB implica incongruente e esdrúxula pena mais branda para o motorista bêbado.

De qualquer maneira, a influência de álcool ou outra substância psicoativa torna incondicionada a ação penal nas lesões culposas de trânsito, na força do artigo 291, parágrafo 1º, inciso I do CTB, ao afastar a incidência do artigo 88 da Lei 9.099/95.

Ademais, vale lembrar que o crime de embriaguez ao volante não sofreu transformações com a reforma legislativa e, dentre os meios aptos a constatar a “capacidade psicomotora alterada”, elementar do tipo penal, estão a concentração etílica igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar, índices aferíveis, respectivamente, por exame de material hemático do motorista suspeito e pelo conhecido teste do “etilômetro”, que demandam a anuência do investigado pelo clássico postulado da não autoincriminação, sem prejuízo de emprego de outros meios probatórios, notadamente exame clínico, depoimentos e registros em áudio e vídeo[7].

A repercussão inicial ocorrerá nos plantões de polícia judiciária, sobretudo em relação às prisões em flagrante de motoristas suspeitos capturados, decretadas pelos delegados de polícia após a devida apreciação jurídica dos fatos e decisão pela classificação nas mencionadas novas qualificadoras do CTB[8], cujas penas máximas suplantam 4 anos e, em tese, obstam o arbitramento de fiança extrajudicial pela restrição injustificada do artigo 322 do CPP[9].

Entretanto, na apreciação judicial das custódias flagranciais, como regra não poderá o juiz de Direito determinar a conversão em prisão preventiva, visto que os requisitos do artigo 313 do CPP não arrolam crimes culposos nas hipóteses de admissibilidade da segregação provisória. Logo, ainda que a lei não admita a fiança na delegacia, no fórum a liberdade será concedida mesmo sem a contracautela econômica, salvo em raro descumprimento de medidas cautelares diversas impostas em casos anteriores, pela exegese extraída da conjugação do parágrafo único do artigo 312 com os parágrafos 4º e 6º do artigo 282, todos do estatuto de rito criminal[10].

Não obstante o tímido avanço implantado, as barbeiragens e a velocidade reduzida no aprimoramento dos crimes de trânsito, o legislador demonstra preocupação em trafegar por essa estrada sinuosa, com obstáculos no trajeto como a falta de conscientização e de prevenção eficiente, cuja vitória na linha de chegada depende da atitude cidadã de cada motorista.


[1] SILVA, Amauri. Mudanças no Código de Trânsito são respostas penais para proteger a vida. Revista Consultor Jurídico, 28.dez.2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-dez-28/amaury-silva-mudancas-codigo-transito-visam-proteger-vida>; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; EVANGELISTA JÚNIOR, Osvaldo. Lei 13.546/17: fim do dolo eventual nos crimes de trânsito? Boletim IBCCRIM. Ano 26, nº 303, p. 11-12, fev. 2018.
[2] As estatísticas denotam uma carnificina no trânsito brasileiro, com 38.651 pessoas mortas e 158.728 lesionadas em 2015, e 34.850 vítimas fatais e 180.443 feridas em 2016. BRASIL. Portal do Ministério da Saúde. Óbitos por acidentes de trânsito caem pelo segundo ano consecutivo. Disponível em: <portalms.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/42245-obitos-por-acidentes-de-transito-caem-pelo-segundo-ano-consecutivo>.
[3] Vislumbra-se questionável proporcionalidade na comparação entre a pena máxima de 5 anos cominada à nova lesão culposa grave ou gravíssima qualificada pela embriaguez, com a reprimenda máxima de 4 anos prevista para o crime contra a vida de homicídio culposo simples do caput do artigo 302 do CTB.
[4] BEM, Leonardo Schmitt; MARTINELLI, João Paulo. Novo capítulo sobre a discussão entre culpa consciente e dolo eventual. Revista Consultor Jurídico, 25.jan.2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-jan-25/opiniao-capitulo-culpa-consciente-dolo-eventual>; SUMARIVA, Paulo. Direito Penal: parte geral. Niterói: Impetus, 2016, p. 112.
[5] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Lei 13.281/16 avança mas não elimina controvérsias dos crimes de trânsito. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 28 out. 2016. Disponível em: <www.conjur.com.br/2016-out-28/lei-avanca-nao-elimina-controversias-crimes-transito>.
[6] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal: parte especial: arts. 121 a 183. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 153.
[7] TUCUNDUVA, Ricardo Cardozo de Mello (Coord.). Manual prático de apuração do crime de “embriaguez ao volante”. São Paulo: Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”, 2013, p. 15-21.
[8] As manifestações dos delegados de polícia devem ser exaradas com independência funcional, garantia consolidada em Constituições estaduais, como na Carta Paulista (artigo 140, parágrafo 3º), e que consiste na “autonomia intelectual para interpretar o ordenamento jurídico e decidir, com imparcialidade e isenção, de modo fundamentado”, consoante artigo 1º, parágrafos 1º e 2º da Lei Complementar 1.152/2011. LESSA, Marcelo de Lima; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; BARROS FILHO, Mário Leite de. Polícia judiciária de Estado e a independência funcional do delegado de polícia. In: SÃO PAULO (Estado). Arquivos da Polícia Civil – Vol. 53, São Paulo: Acadepol, 2015, p. 10-29.
[9] A leitura autêntica da prisão cautelar como exceção desde a etapa extrajudicial, de maneira a consagrar a presunção de não culpabilidade, revela descabida a restrição do artigo 322 do CPP, baseada na pena máxima cominada para a concessão de liberdade mediante fiança pelo delegado de polícia, e deveria abarcar todas ou ao menos um número maior de infrações penais. BARBOSA, Ruchester Marreiros. Fiança pelo delegado não se limita a crimes com penas até 4 anos. Revista Consultor Jurídico, 10 out. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-out-10/academia-policia-fianca-delegado-nao-limita-crimes-penas-acima-anos>.
[10] Há ainda a ressalva na hipótese do parágrafo único do artigo 313 do CPP, que autoriza a prisão preventiva se houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou se esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, independentemente do crime ou da quantidade de pena.

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