Opinião

Quais cuidados devem ser tomados para aplicar a teoria da cegueira deliberada?

Autor

  • Felipe Fernandes de Carvalho

    é sócio do escritório Mudrovitsch Advogados doutorando em Direito Penal pela USP mestre pela mesma instituição e especialista em corrupção e crime organizado pela Universidade de Salamanca.

19 de abril de 2018, 6h22

A teoria da cegueira deliberada tem sido objeto de amplas discussões jurídicas no Brasil. Desde a sentença do caso do furto do Banco Central em Fortaleza, a teoria tem sido cada vez mais invocada para embasar acusações e condenações.

Utilizada também no caso mensalão e na operação "lava jato", a teoria da cegueira deliberada — que, grosso modo, busca equiparar a reprovabilidade de uma casuística (a) de conhecimento do acusado acerca do plano fático a outra de (b) falta de conhecimento do acusado do plano fático em razão de sua omissão deliberada para não obter esse conhecimento —, é um constructo de matriz anglo-saxã. Sendo assim, a sua incorporação ao Direito brasileiro, de natureza eminentemente romano-germânica, deve ser feita com algumas ponderações preliminares.

Com efeito, no próprio Direito anglo-saxão, especialmente no norte-americano, existem substantivas dúvidas a propósito dos requisitos de aplicação da teoria da cegueira deliberada. As cortes federais dos Estados Unidos possuem uma grande cisão no que atine aos requisitos de aplicação da teoria. Apesar de todas elas serem uníssonas quanto à necessidade de (i) o acusado acreditar que há alta probabilidade de ocorrência de um fato que, se confirmado no plano fenomenológico, pode tornar a sua conduta ilícita e (ii) o acusado ter empreendido medidas para evitar a tomada de conhecimento acerca desse fato (além de outros requisitos, como a disponibilidade de instrumentos pelo acusado para aferição do plano fenomenológico etc.), existe uma divisão a respeito da necessidade de (iii) o acusado estar imbuído de uma especial motivação para a omissão deliberada do plano fenomenológico[1].

Mais do que isso, discute-se, ainda, a própria possibilidade de aplicação do instituto em razão da falta de sua previsão legal, na medida em que a sua raiz está em uma proposta de Código Penal dos Estados Unidos (Model Penal Code), e não propriamente em um ato normativo[2].

Sem prejuízo dos debates no plano jurídico norte-americano, dos quais participam Husak e Callender[3], Robbins[4], Charlow[5] e Sarch[6], cada um com seus particulares apontamentos, subsistem claros problemas acerca da utilidade da incorporação dessa teoria na dogmática romano-germânica. A rigor, boa parte das casuísticas a que se prestam a aplicação da teoria da cegueira deliberada podem ser “solucionadas” mediante aplicação do instituto do dolo eventual. Nesse sentido, Ragués I Vallès aponta que, de fato, existe um espaço para aplicação da teoria da cegueira deliberada em sistemas jurídicos romano-germânicos, mas que ele é restrito[7].

Mais do que confrontar a utilidade e as hipóteses de cabimento da cegueira deliberada, deve-se ressaltar que, muitas vezes, na experiência brasileira, invoca-se a teoria sem necessidade prática. Decerto, ainda que não haja prova direta do conhecimento do acusado a respeito do plano fático, é possível que o arcabouço indiciário não permita ao julgador chegar a outra conclusão senão a de que o acusado tinha conhecimento integral do plano fenomenológico.

Exemplo disso está na sentença da Ação Penal 5047229-77.2014.4.04.7000, prolatada no âmbito da operação "lava jato". Nela, a teoria da cegueira deliberada foi invocada, mas a própria sentença fundamentou o conhecimento dos condenados pelos elementos indiciários que atestariam a existência desse elemento do dolo:

“(…) a utilização de estratagemas fraudulentos complexos para realizar os pagamentos, especificamente o emprego de pelo menos três pessoas interpostas, duas delas pessoas jurídicas de cujo quadro não participava, para a realização das transações fraudulentas é indicativo de dolo direto”.

Todas essas incursões teóricas e práticas, apesar de bastante superficiais em razão da limitação de espaço deste artigo, prestam-se a evidenciar uma pleura de dificuldades na aplicação da teoria da cegueira deliberada, as quais devem ser observadas antes da incorporação do instituto ao Direito brasileiro.

Em recente artigo publicado na ConJur[8], a teoria da cegueira deliberada foi utilizada como um apanágio para problemas da prova do conhecimento do acusado. No entanto, não foram feitas digressões acerca dos requisitos específicos para aplicação da teoria, tampouco sobre a necessidade concreta para utilização dela ou, ainda, sobre a falta de previsão legal do instituto.

Ressalvados os problemas de ordem legal — dado que inexiste previsão para sua aplicação —, não se nega que haveria espaço para a utilização dessa teoria no Brasil. Sem embargo, é imprescindível que os aplicadores do Direito sempre tenham em mente o contexto no qual a teoria foi desenvolvida, os seus requisitos e ponderem a necessidade da importação dela para embasar qualquer manifestação ou decisão.

Caso contrário, a teoria da cegueira deliberada pode acabar servindo como álibi argumentativo para a prova do elemento cognitivo do dolo em situações em que ele não esteja, de fato, presente[9].


[1] O posicionamento mais rígido, que exige três requisitos na aplicação do instituto da cegueira deliberada, é encampado pelas cortes de Apelação do Oitavo (Estados Unidos, Corte de Apelação do Oitavo Circuito Federal. Nº do recurso: 01-2912. Apelante: Charles A. Willis. Disponível em: <http://caselaw.findlaw.com/us-8th-circuit/1019462.html>. Julgado em 24 de janeiro de 2002), do Décimo (Estados Unidos, Corte de Apelação do Décimo Circuito Federal. Nº do recurso: 99-2188. Apelante: José G. Delreal-Ordones. Disponível em: <http://caselaw.findlaw.com/us-10th-circuit/1014016.html>. Julgado em 30 de maio de 2000.) e do Décimo Primeiro (Estados Unidos, Corte de Apelação do Décimo Primeiro Circuito Federal. Nº dos recursos: 02-12605, 021606 e 02-14586. Apelantes: Estados Unidos, Mauricio Javier Puche, Enrique Alfonso Puche e Gloria Exchange Corporation. Disponível em: <http://caselaw.findlaw.com/us-10th-circuit/1014016.html>. Julgado em 12 de novembro de 2003) dos Circuitos Federais dos Estados Unidos. De outro lado, aplicando a tese mais permissiva, estão as cortes do Segundo (Estados Unidos, Corte de Apelação do Segundo Circuito Federal. Nº do recurso: 03-1102. Apelante: Estados Unidos e Richard A. Svoboda. Disponível em: <http://caselaw.findlaw.com/us-2nd-circuit/1227159.html>. Julgado em 24 de Outubro de 2003), do Terceiro (Estados Unidos, Corte de Apelação do Terceiro Circuito Federal. Nº do recurso: 09-1575. Apelante: Richard Stadtmauer. Disponível em: <http://caselaw.findlaw.com/us-3rd-circuit/1537754.html>. Julgado em 9 de setembro de 2010.), do Quinto (Estados Unidos, Corte de Apelação do Quinto Circuito Federal. Nº do recurso: 02-400978. Apelantes: Estados Unidos e Juan Arturo Mendoza-Medina. Disponível em: <http://caselaw.findlaw.com/us-5th-circuit/1371004.html>. Julgado em 10 de setembro de 2003.), do Sexto (Estados Unidos, Corte de Apelação do Sexto Circuito Federal. Nº do recurso: 94-9478. Apelantes: Estados Unidos e Katherine Ann Mithcell. Disponível em: <https://cases.justia.com/federal/appellate-courts/ca6/11-3656/11-3656-2012-06-13.pdf?ts=1411024917>. Julgado em 13 de junho de 2012), do Sétimo (Estados Unidos, Corte de Apelação do Sétimo Circuito Federal. Nº do recurso: 07-1801, 07-2251 e 07-2596. Apelantes: Estados Unidos, Arthia Lamont Tanner Larry Scott e Lance Foster. Disponível em: <http://caselaw.findlaw.com/us-7th-circuit/1411912.html>. Julgado em 12 de setembro de 2008) e do Nono (Estados Unidos, Corte de Apelação do Nono Circuito Federal. Nº do recurso: 03-10585. Apelante: Estados Unidos e Carmen Denise Heredia. Disponível em: <http://caselaw.findlaw.com/us-9th-circuit/1043763.html>. Julgado em 2 de abril de 2007) dos Circuitos, devendo-se ressaltar que os tribunais do Primeiro e do Quarto Circuitos não possuem um posicionamento muito preciso sobre o tema.
[2] RAGUÉS I VALLÈS, Ramón. La ignorancia deliberada en Derecho penal. [s.l.]: Atelier, 2007, p. 82-85.
[3] HUSAK, Douglas N.; CALLENDER, Craig A. Willful ignorance, Knowledge, and the ‘Equal Culpability’ Thesis: a Study of the DeeperSignificance of the Principle of Legality. WLR, 1994.
[4] ROBBINS, Ira. The Ostrich Instruction: Deliberate Ignorance as a Criminal Mens Rea; 81 Journal of Criminal Law and Criminology 191. 1990.
[5] CHARLOW, Robin. Wilful Ignorance and Criminal Culpability. TLR, 70, 1992.
[6] SARCH, Alexander F. Willful Ignorance, Culpability, and the Criminal Law. 2014.
[7] RAGUÉS I VALLÈS, Ramón. La ignorancia deliberada en Derecho penal. [s.l.]: Atelier, 2007, p. 193.
[8] https://www.conjur.com.br/2018-abr-18/renee-souza-cegueira-deliberada-artigo-89-lei-86661993
[9] Esta, inclusive, é uma das advertências de Ragués I Vallès: “La inclusión de ciertos casos de ignorancia deliberada en el concepto legal de dolo en modo alguno puede ser vista como una vía para solventar de forma expeditiva los problemas que en ocasiones suscita la prueba del conocimiento exigido por el dolo eventual” (RAGUÉS I VALLÈS, 2007, p. 211).

Autores

  • é advogado da Mudrovitsch Advogados, mestrando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Corrupção e Crime Organizado pela Universidad de Salamanca e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).

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